Brasil

A reconstrução da democracia precisa da participação popular

Brasil precisa aprender com sua história autoritária para não repetir os erros do passado.Tema foi debatido no painel “Democracia não é só eleição” da 7ª Brazil Conference

Texto: Redação / Foto: Dida Sampaio/Estadão

08 de abril de 2022 | 15h50


O painel “Democracia não é só eleições” realizado pela 7ª Brazil Conference Harvard & MIT neste 12 de abril, conta com transmissão ao vivo pela internet, a programação pode ser acompanhada pelo portal do Estadão, parceiro na cobertura do evento, além dos canais da conferência no Youtube e Facebook, a qualquer tempo.

Para debater o tema foram convidados o autor, jornalista e ex-deputado federal, Fernando Gabeira, o diretor na Fundação Ford Brasil, Atila Roque, o professor da FGV Direito SP e da FGV RI, Thiago Amparo, a cientista política e pesquisadora da WZB Berlin Social Science Center, Thamy Pogrebinschi e a professora de Governo em Harvard e moderadora da mesa, Frances Hagopian. O painel teve abertura da estudante de Harvard e líder do painel Helena Mello Franco.

Os convidados discutiram, a partir de suas experiências pessoais e profissionais, questões relacionadas às fronteiras da democracia na área de direitos sociais e civis e a relação entre democracia e desigualdade, como o declínio da participação social por meio de instituições participativas por meio dos conselhos na atual gestão federal e a presença da necropolítica que encontra apoio no racismo estrutural e também reduz a participação social nos mais diversos aspectos da democracia. Os painelistas apontaram também a necessidade de que pesquisadores, cientistas e intelectuais assumam papéis de liderança para que a sociedade possa de fato participar da democracia.

“A nossa concepção de mundo, não só em relação ao meio ambiente, com a relação às mulheres, os negros, as comunidades indígenas, aos pobres, que tem que ser mudada para que o Brasil possa, realmente, chegar a um nível de democracia mais avançado”, afirmou Gabeira. “Precisamos de gente olhando para frente com essa visão de disposição para a vida para que possamos reconstruir a democracia.”


Confira o evento na íntegra


Democracia não é só eleições

● Fernando Gabeira: Autor, jornalista e ex-deputado federal
● Atila Roque: Diretor na Fundação Ford Brasil
● Thiago Amparo: Professor da FGV Direito SP e da FGV RI
● Thamy Pogrebinschi: Cientista política e pesquisadora da WZB Berlin Social Science Center
● Frances Hagopian (moderação): Professora de Governo em Harvard



Helena Mello Franco - E aí galera, meu nome é Helena. E é um prazer que estamos aqui reunidos para o painel “Democracia não é só eleição”. Estamos aqui reunidos hoje justamente para tratar dos aspectos não institucionais da nossa democracia. Quando falamos sobre aprofundamento da democracia brasileira, pensamos no âmbito eleitoral, pensamos em como elegemos nossos governantes através de meios democráticos. Mas raramente tratamos das outras formas nas quais podemos verdadeiramente aprofundar a nossa democracia no dia a dia. Temos aqui reunidos hoje um escopo extremamente diversos de painelistas que tiveram experiências extremamente variadas relacionadas a nossa democracia, tanto na sociedade civil, tanto como acadêmicas e também na mídia. Portanto gostaria de passar a palavra para nossa incrível moderadora, a professora Frances Hagopian da faculdade de Harvard, que além de ser especialista em política comparativa da América Latina, também é líder do comitê do corpo docente do Brasil Office aqui em Harvard. Então Frances, a palavra é toda a sua.

Frances Hagopian - Muito obrigada, Helena. Bem-vindos a todos e a todas. E é uma honra para mim ser chamada a moderar esse painel com tão distintos participantes. E agradeço esse convite dos alunos da Harvard e MIT. E só quero dizer que é uma honra participar desta mesa. Falamos muito hoje em dia da democracia brasileira e por boas razões. Porque talvez esse momento é o mais perigoso para o futuro da democracia no Brasil que tem quase 60 anos. Vocês ouviram a entrevista conduzida pela Helena e Miguel Campos com o doutor Fernando Henrique Cardoso sobre os grandes desafios que enfrenta o Brasil neste momento tão desafiante. É o momento em que temos mais de 350 mil brasileiros mortos pela pandemia. A perspectiva comparativa do doutor Cardoso de longo prazo nos lembra que os desafios de desigualdade e o surgimento de forças populistas e até autoritárias, não são apenas desafios que enfrenta o Brasil, mas muitos países em desenvolvimento e também em países desenvolvidos. Mesmo assim é desalentador dizer que depois de enormes mudanças nos últimos trinta anos nas dimensões institucionais e eleitorais que garante que essas eleições têm sido livres e justas; que as instituições políticas têm sido capazes de canalizar e responder às preferências dos eleitores; o que a democracia brasileira parece estar em crise. Nós reunimos, então hoje, não apenas para declarar que a democracia brasileira é fraca, ou que está ameaçada ou que é pouco funcional. Nem para declarar que os partidos políticos são fragmentados e polarizados, tudo isso sabemos. E não obstante a enorme importância dessas perguntas, essas questões já foram debatidas várias vezes nas edições anteriores dessa conferência. Hoje, olhamos para o problema da democracia de outra perspectiva que esperamos que abrirá uma discussão mais profunda sobre a envergadura dos desafios que enfrentam a democracia, consciente que democracia significa mais que meramente um regime em que os governantes são escolhidos pelo meio de seleções e que engloba, também, noções de império da lei, de direitos e a participação política, tanto como a igualdade, sinal de condição, ou pelo menos de acesso às oportunidades de participar na vida econômica, na vida política e na vida social do país. E nos indagamos aqui se outras deficiências na democracia brasileira, tais como a violação sistemática dos direitos civis em diferentes partes do país; o enfraquecimento dos mecanismos de participação eleitoral; o acesso desigual à Justiça e aos serviços públicos, tanto como as desigualdades econômicas e sociais que ainda definem o Brasil; encontram-se a base das fraquezas institucionais em plena vista. Essa é uma pergunta que espero que possamos debater. Até a gestão governamental, que não é uma definição de democracia, mas pensamos se até a gestão governamental, por ter um impacto diário sobre a vida dos cidadãos, pode ter impacto também nas atitudes deles em relação ao regime político do país. Os painelistas serão convidados a discutir, a partir de suas experiências pessoais e profissionais, questões sobre quais são as fronteiras da democracia na área de direitos sociais e civis? Quais são os direitos que, se respeitados, aprofundaram a democracia? Qual é a relação entre democracia e desigualdade? Como reformar para diminuir a desigualdade e aprofundar a democracia? E como construir um aparato estatal mais democrático? Bom, vou agora apresentar os palestrantes na ordem em que eles falarão. A primeira palestrante será a doutora Thamy Pogrebinschi. Thamy é pesquisadora sênior da WZB Berlin Social Science Center, um dos mais prestigiados institutos de pesquisas de Ciências Sociais no mundo. Ela é docente da Berlim Grad. School da Universidade Humboldt em Berlim. Como coordenadora do projeto latino, que significa inovações pela democracia na América Latina, ela criou o maior banco de dados existente sobre inovações democráticas na América Latina. E no Brasil foi professora do antigo INPERJ, do IESP-UERJ e da FGV-Rio. Possui diversas publicações internacionais sobre participação democrática. Além de livros da teoria política, publicados no Brasil. Ela é expert do mundo na área de democracia participativa. O segundo palestrante será o doutor Tiago de Souza Amparo. Tiago é professor da FGV São Paulo na área de direito e ministra cursos sobre direitos humanos, direito internacional, políticas públicas, diversidade e discriminação. É advogado, com bacharelado pela PUC São Paulo, mestrado em direitos humanos e doutorado pela Central European University em Budapeste, na Hungria. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia, Nova York. E ele é especialista em Direito Constitucional, políticas públicas e empresariais de diversidade e antidiscriminação. Ele tem uma coluna semanal na Folha de São Paulo. Imagino que todo mundo conhece essa coluna. Participa da aliança jurídica pela Equidade racial. Foi secretário-adjunto de Direitos Humanos e Cidadania na Prefeitura de São Paulo, em 2017. Nosso terceiro palestrante é o Atila Roque. Ele é diretor da Fundação Ford no Brasil. Formado em história pela UFRJ e mestre em Ciência Política pelo IUPERJ. Exerceu o papel de liderança em diferentes espaços na sociedade civil no Brasil e no exterior, como a Associação Brasileira das ONGs e Open Government Partnership. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos Estados Unidos e do Instituto de Estudos Socioeconômicos. Antes de assumir a Fundação Ford em 2017, ele foi diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil e faz parte do Conselho-Diretor do grupo de Institutos, Fundações e Empresas. Enfim, um importante Líder no Terceiro Setor. Nosso último palestrante será o senhor Fernando Gabeira. Escritor, conhecido por todos, jornalista e ex-deputado federal do Estado do Rio de Janeiro e ex-militante político. Começou sua carreira como jornalista no Jornal do Brasil em 1964 e no final dos anos 60 foi preso e exilado após ingressar na luta armada contra a ditadura militar. Desde que retornou ao Brasil em 1979, Gabeira publicou diversos textos críticos a ditadura, dentre eles “O Que é isso, Companheiro?” Já no começo de sua carreira política em 1986 ao se filiar ao Partido Verde e em 1994, foi eleito deputado federal pela primeira vez. Hoje é comentarista da GloboNews e assina uma coluna semanal no jornal O Globo. Cada palestrante vai apresentar algumas reações sobre o tema do painel por volta de 8 minutos, baseados em anseios, estudos e experiências com a democracia para além do âmbito eleitoral do Brasil. Depois colocarei mais perguntas para abrir e aprofundar mais a discussão do segundo turno. Nesse segundo turno, os palestrantes terão a liberdade de responder, não apenas às minhas perguntas, mas também às intervenções dos outros painelistas. Sem mais, passo a palavra para Thamy.

Thamy Pogrebinschi - Oi, boa noite a todas e todos. Obrigada por esta excelente introdução. É um privilégio ter você como moderadora da mesa e já começou nos apresentando com tanto cuidado, eu queria também acrescentar que você é uma grande brasilianista, com as suas análises políticas sobre o Brasil, sobre nosso processo de democratização, que são fundamentais e que deveriam ser tão lidas no Brasil quanto são internacionalmente. Bom, é claro que quero agradecer o convite e parabenizar os estudantes de Harvard e do MIT pela organização, especialmente a Helena por ter sido tão atenciosa, tendo o cuidado de todos os detalhes e garantindo que tudo funcionasse perfeitamente hoje. Bom, eu acho o tema dessa mesa muito importante. Neste ano de pandemia, tenho evitado eventos, mas não queria me afastar deste debate. É instigante porque nos convida a recuperar uma dimensão normativa da democracia, de como as coisas deveriam ser. E é importante porque é definitivamente essencial alcançar além das instituições representativas nesse país onde nenhum dos três poderes parece cumprir dignamente suas funções constitucionais. E acho que neste momento, pegando agora o caminho da fala da Fran no início, acho que falar em crise é pouco, né?! A democracia brasileira está claramente em colapso, sufocada por um projeto autoritário perverso. E se a democracia brasileira hoje está morrendo e morrendo sufocada, uma das razões para isso certamente é a capacitação social que vem sendo solapada. E seja porque a estrutura institucional da participação que foi prevista pela Constituição de 1988, vem sendo desmontada desde o Governo Temer, claramente, foi solapada pelo governo Bolsonaro e seja porque o atual governo vem fazendo sucessivas tentativas de controlar e criminalizar as ações da sociedade civil. O título dessa mesa é provocativo, em alguma medida, pois de certa forma as eleições foram consideradas centrais nas definições de democracia e suas avaliações, e ainda mais é aquela pode ser vista como o coração da democracia; a participação social é o seu pulmão. Sem uma sociedade civil livre e ativa, sem espaços institucionais de participação da cidadania as instituições representativas ficam sem oxigênio, não respiram e aí a democracia agoniza. Eu acho que isso é um pouco que a gente pode me ver agora. Até pouco tempo atrás indicadores de qualidade da democracia mostraram que o Brasil vinha alcançando alguma estabilidade institucional. Por outro lado, as pesquisas de opinião pública vão mostrar um crescente, um altíssimo, índice de falta de confiança nas instituições representativas. Mas curiosamente, e também paralelamente a isso, no Brasil, desde, pelo menos, a virada do fim do século, e ainda nos anos 1990, mas muito claramente a partir dos anos 2000, o Brasil virou um estudo de caso internacional como laboratório de inovações democráticas. Um terreno profícuo de experiências, de participação cidadã e com experiência com impacto significativo nas políticas públicas, o que é, também, muito importante. De fato, graças à Constituição de 1988, às lutas da sociedade civil no processo de democratização, o Brasil se tornou o país com maior número de diversidade nessas instituições. Os mecanismos, processos de participação da sociedade com o objetivo de melhorar a qualidade da Democracia. Acho importante destacar isso quando a gente fala em inovações democráticas, ou ao menos nessa perspectiva que eu acredito que é importante mencionar para perceber o impacto da participação na democracia. É preciso pensar que esses são mecanismos, são processos das instituições que, não apenas tentam incluir o cidadão no processo de formações políticas públicas ou no processo decisório no sentido de aumentar o número de pessoas participantes, mas a tentativa de através da participação melhorar democracia e de alguma maneira fortalecer alguma das dimensões na qualidade da democracia e produzir algum tipo de impacto nas políticas públicas. Enfim, o Brasil vem vivenciando isso claramente ao longo das últimas décadas. Esse é um processo em clara ascensão desde a promulgação da Constituição de 1988 onde assistimos uma institucionalização crescente da participação social e a fundação, a criação de uma estrutura de participação social nas três esferas do Estado. E ao longo desses anos, até pouco tempo essas inovações democráticas, as instituições participativas tiveram seu impacto demonstrado por diversos estudos. Curiosamente, muitas vezes, mais conhecidos internacionalmente do que dentro do próprio Brasil. Então só para a mencionar rapidamente, no nível local, as instituições participativas demonstraram de acordo com diversas pesquisas que através da participação cidadã no processo de formação de políticas públicas, pode aumentar a igualdade de participação, incluindo mais mulheres, mais pessoas de baixa escolaridade, na definição das políticas e na formação do próprio orçamento, que é o caso da experiência do orçamento participativo que se tornou um produto de exportação democrático brasileiro. Há estudos que mostram como os experimentos participativos levaram a melhorar a carta de serviços públicos; o maior acesso a bens sociais primários (habitação, educação, assistência social); aumento do bem-estar dos cidadãos. Há estudos que mostram como a presença de instituições participativas diminuiu, em algumas cidades, a mortalidade infantil e o aumentou a frequência escolar; empoderou as mulheres; aumentou os investimentos em saúde; aumentou a redistribuição e ampliou o acesso aos serviços essenciais. Só para mencionar claramente estudos publicados nessa área. No plano nacional há, também, pesquisa que mostra como as instituições participativas aumentaram a capacidade de respostas das instituições representativas, de algum modo levando leis e políticas a se tornarem não só mais legítimas, mas também mais próximas das diferenças entre cidadãos e cidadãs. E em alguns momentos, possivelmente tornaram o Congresso e o Executivo Federal mais responsivos, respondendo melhor aos interesses das pessoas na formulação de políticas porque se contou com a participação no processo de sua formulação. Bom, mas claramente esse cenário muda a partir do início do processo de ruptura democrática que começou a alinhavar em 2016 e atinge seu ponto culminante exatamente 2 anos atrás. Ironicamente ou não, completadas ontem com a edição do Decreto nº 9759 de 11 de abril de 2019, que teve por finalidade revogar a política nacional de participação social no Sistema Nacional de Participação Social que, enfim, na prática visando extinguir ou limitar todas as ações do então chamados colegiados existentes no país no nível federal. Enfim, conselhos, conferências nacionais, comitês, câmaras, instituições que propõem diretrizes de políticas públicas, que participam de sua elaboração; que acompanha sua implementação, além de fiscalizar e controlar a implementação dessas políticas, e de alguma forma geral também as atividades dos poderes. Então como uma canetada só, há dois anos, um dia atrás, o Bolsonaro desmontou a arquitetura institucional da participação social no Brasil. Uma arquitetura institucional que foi construída ao longo de muitos anos, com a participação social e por governos distintos, com projetos políticos distintos, com diferentes lógicas da participação. Na ocasião, em 2019, o STF supostamente preservou as instituições participativas que tinham sido criadas por lei, mas isso não foi suficiente, né?! Essas que foram poupadas e vem sendo poupadas, também vem sendo sufocadas pelo atual projeto autoritário do governo. Mas eu queria mostrar isso para vocês com alguns dados, na verdade. Eu acho que aqui nesse momento a política do Brasil está precisando bastante de ciência, de argumentos empiricamente demonstráveis. Então, preparei três gráficos porque eu queria mostrar rapidamente para tentar contar essa história que eu contei. E o que vem depois eu vou deixar para o segundo turno quando eu sei que a Fran tem perguntas interessantes para nós. Bom, o primeiro gráfico claramente mostra que esse é o conjunto das ações democráticas no Brasil de 1990 até 2020, são dados do meu projeto latino aqui em Berlim. E basicamente aí estão inseridos instituições, mecanismos e processos de participação cidadã que, de algum modo, buscam fortalecer a democracia ampliando algumas das dimensões da qualidade da democracia e com desenho institucional que permita o impacto em políticas públicas. Aqui se consideram, não apenas iniciativas do Estado nas típicas instituições participativas que foram criadas pelo Estado, mas é todo o tipo de autoria, de implementação dessas iniciativas. O Estado implementou muitas em parceria com a sociedade civil como o apoio de organizações internacionais. E a sociedade civil, também muito claramente, e eu vou falar sobre isso logo, também é uma forte impulsionadora desse processo de inovação democrático. Então o que percebemos aqui é que, claramente, ao longo dos anos 1990 há um crescimento do número de inovações democráticas como uma consequência do processo de institucionalização, propiciado pela Constituição de 1988 e determinado, também, por diversas legislações subsequentes. E percebemos um aumento, também, a partir dos anos 2000 quando, na verdade, o que se tem é uma manutenção do número de inovações anteriores. Mas elas se expandem em conteúdo, se intensificam em frequência e assumem um papel mais importante no processo decisório. Para esclarecer, aqui esses dados levam em consideração a diversidade dos desenhos institucionais e não cada uma das instâncias, afinal de contas de outro modo também seria impossível. Ainda em 1999, haviam mais de 30 mil conselhos municipais, então todo município brasileiro tem, pelo menos, um conselho de saúde. Então, a ideia é que, basicamente, ele vai medindo por ano, quantas novas instituições, processos ou mecanismo de participação foram criados. Nós vemos um crescimento até 2016, quando há então uma queda drástica entre 2016 e 2019. E aí vocês percebem um súbito crescimento agora em 2020. No próximo gráfico, temos a distribuição das inovações democráticas ou pela origem, pela instituição ou organização responsável por criá-la, adotá-la ou implementá-la. Então considerado o governo, com todas as suas parcerias e a sociedade civil. Claramente, percebemos algo que já é conhecido pela literatura que, de algum modo, no Brasil, assim como na América Latina, a participação social sempre foi orientada pelo Estado, impulsionada pelo Estado, pelo Governo. Daí a ideia da participação social enquanto instituições participativas que foram consolidadas de alguma maneira dentro da estrutura do Estado. E claramente se percebe como esse é um processo em ascendência e que a partir de 2016 há um declínio até que simplesmente chega a nulo, não há mais absolutamente a criação de nenhum tipo de inovação democrática desde 2019. Por outro lado, vemos que a sociedade civil, de algum modo, tem um crescimento extremamente grande em 2020, que são as respostas à pandemia. E como o tempo acabou eu vou deixar para falar isso na nossa discussão final. Obrigada!

Frances - Desculpa, é muito chato e difícil esse Zoom.

Thamy - Não há problemas, eu só tinha mais um gráfico.

Frances - Não tinha como mostrar a placa de dois minutos, um minuto, (risos) desculpe gente! Mas agora passo a palavra para Thiago.

Thiago Amparo - Muito obrigado pelo convite e é um prazer enorme estar aqui junto também com pessoas que eu admiro muito. Basicamente pende para refletirmos sobre democracia além das eleições, então eu penso que algumas teses são essenciais para conseguirmos desenvolver essa temática. Primeiro, uma das teses principais é pensar que a democracia ou a democratização no Brasil ela requer lidar com o passado e com o presente autoritários. Isso significa em dois sentidos: de um lado é enfrentar efetivamente na justiça de transição que o Brasil ainda carece muito e aí falo de transição da época da ditadura, não somente as iniciativas louváveis que aconteceram como, por exemplo, a questão da Comissão da Verdade e outras iniciativas; mas também pensar formas de efetivamente reformar as instituições, o controle sobre as Forças Armadas; pensar o todo discurso de apologia à ditadura. Então repensar o período de transição no contexto de hoje. Outro aspecto também sobre pensar em como lidar, em como nós lidamos com o passado e presente autoritários é pensar como autoritarismo não é, simplesmente, o autoritarismo das armas, mas também o autoritarismo cotidiano no contexto brasileiro. O Brasil é um país que é acostumado com mandos e desmandos todos os dias, com aquela frase comum que diz “com quem se fala”, e alguns vão dizer com aquela ideia de castas né? De um sistema onde alguns são mais privilegiados em relação aos outros e não é, simplesmente, uma divisão socioeconômica, é, também, um sistema engendrado de castas na sociedade brasileira. E aí castas, no sentido como o termo tem sido utilizado no debate, inclusive americano, comparando o racismo nos Estados Unidos com um sistema como o da Índia e outros países. Na segunda tese, além de lidarmos com o passado e presente autoritários, a segunda tese que eu proponho para pensarmos em democracia além de eleições é pensar que a deterioração democrática ou essa crise democrática não é simplesmente gradual, mas ela é endêmica. E aí penso que muitas vezes nos discursos brasileiros se fala que a democracia está hoje em crise como se não houvesse uma história de flagelos antidemocráticos na história brasileira. E dependendo de para quem você pergunta, o autoritarismo já acontece hoje em dia, né?! Basta ver, por exemplo, os altos índices que o Brasil tem de pessoas sendo mortas pela Polícia que é cinco vezes maior do que, por exemplo, nos Estados Unidos. Quanto ao Brasil, já escrevi uma vez em um texto dizendo que o Brasil é dividido entre uma parte que morre pisoteado pela fome, pela desigualdade ou pela Polícia; e outra que lê sobre o autoritarismo no jornal. Precisamos construir pontes entre esses dois brasis, para que possamos efetivamente entender que a deterioração democrática não é simplesmente gradual, ela é, também, endêmica e acontece hoje para boa parte da população sujeita a autoritarismos cotidianos. Outro aspecto também importante, a terceira tese que eu acho importante levarmos em consideração é de que a violência política no Brasil também é estrutural. E aí violência política, não falo só violência contra pessoas eleitas, mas também; mas eu digo sobre violência política, no sentido de uso político da violência. Sobre a violência contra pessoas eleitas basta ver por exemplo, há estudos recentes sobre os ataques físicos, ameaças e efetivamente assassinatos de candidatos e pessoas eleitas no Brasil afora. E basta ver, não somente o caso da vereadora Marielle Franco, mas também muitos outros casos que são apresentados. Temos um relatório recente da Justiça Global que trouxe isso em dados, mostrando o aumento da violência política no contexto brasileiro. Mas não é só a violência política contra pessoas eleitas ou candidatos, mas, também, o uso político da violência. Quando temos um país onde a principal plataforma política do presidente eleito é um sinal de arma com as mãos, ou seja, sinalizando que se deveria metralhar os oponentes, uma frase utilizada pelo presidente da República durante a campanha; não estamos em uma democracia plena. Porque democracia, na verdade, é um governo em que você tem um embate não violento de ideias e não a promoção e o uso político da violência em si. E também no contexto brasileiro podemos ver que existem todos os critérios e todas as facetas do que comumente se tem chamado de necropolítica, pensando na teoria do Achille Mbembe. Dá para ver, por exemplo, uma necropolítica, pensando necroeconomia, no sentido de uma política não somente de morte, mas de efetivamente da micropolítica que mata e deixa morrer. Então, nós vemos que triplicou o número de pessoas abaixo da linha de pobreza, em uma pesquisa lançada essa semana no Brasil. Há também outro critério utilizado pelo Achille Mbembe para definir a necropolítica que é um sistema de vigilância constante e no contexto brasileiro há muitos territórios onde as pessoas não podem sair livremente à noite, seja pelo crime organizado, seja pela milícia, seja pela Polícia. Há o confinamento de populações inteiras que é outro critério da necropolítica, e o Brasil é um dos países que mais prende no mundo. O número de mulheres encarceradas nos últimos dez anos aumentou, salvo me engano, mais de 600%. Há mortes em larga escala, como eu disse, temos 5 vezes mais pessoas mortas pela polícia no Brasil do que nos Estados Unidos. E também há o que Achille Mbembe chama de novo racismo, em que se dá a ideia de um racismo cotidiano; doses diárias de racismo que acontecem todos os dias. Então, isso compõe que a violência é endêmica no Brasil, uma violência política, não somente contra leis, mas, de fato, o uso político da violência. A quarta tese que eu trago aqui, e que já foi falada pela professora Thammy, é a da desigualdade da participação. E aí nesse sentido, não somente uma falsa democracia no ponto de vista eleitoral, mas também uma falsa democracia até dentro dos próprios partidos políticos, não só na participação em processos democráticos. O fato de nós termos, por exemplo, 900 casas legislativas no âmbito municipal que não possuem sequer uma única mulher eleita; sabemos que somente 16% das candidatas eleitas na eleição 2020, nas eleições locais são pessoas negras, são mulheres. Quando olhamos nosso Congresso Nacional que tem em torno de 15% de mulheres, isso mostra efetivamente que há uma desigualdade, não eleita; sabemos que o acesso a ser candidato, porque há candidatos e candidatas mulheres, e há candidatos e candidatos negros nas eleições; mas há entraves tanto de distribuição de recursos, quanto falta de democracia nos partidos políticos faz com o que você não tenha como resultado uma eleição competitiva de mulheres e homens negros. E além disso, em quinto lugar, nós temos, também, a desigualdade socioeconômica. Essa desigualdade que nós temos não é simplesmente um fato da vida, mas ela é, de fato, o resultado de escolhas políticas distributivas. Quando nós vemos, por exemplo, o estudo do INESC, uma organização no Brasil, sobre o orçamento 2020, olhou aqui neste governo previews igualmente 35% sobre recursos de comunicação do Governo Federal e reduziu em 43% os recursos destinados à direito e cidadania, ou seja, políticas pelas mulheres, políticas para pessoas negras, políticas para pessoas com deficiência. Dados do Justa, por exemplo, uma organização em São Paulo que trabalha com dados de assistência criminal mostra que o orçamento do TJ, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que em torno de 12,4 milhões, em 2018, é maior do que 12 setores inteiros da administração do Governo Estado de São Paulo. Ou seja, gasta-se muito e muito mal em diferentes esferas no contexto brasileiro. Ou seja, no Brasil costuma-se falar que é muito desigual e como se as igualdades fosse um fato da vida e não uma produção das próprias condições, não somente econômicas, mas do próprio conflito distributivo em que pessoas mais pobres, que são a maioria da população brasileira e com maior número de pessoas negras, constantemente perdem. Então, acho que para falarmos, e aí eu encerro, para falarmos de democracia no Brasil a além das eleições é necessário nós pensarmos como nós lidamos com passado e o presente autoritários; é necessário pensarmos que a violência, a deterioração democrática, não é algo simplesmente gradual que acontece só agora, mas algo endêmico; é pensar que há um uso político da violência e tem que termos parcelas consideráveis da população que são, constantemente, alvo dessa violência; é pensar a desigualdade da participação, não só no processo participativo do Estado, mas também pensar no acesso a instituições de poder, como partidos políticos e pensar, por fim, que a desigualdade socioeconômica não é só um fato da vida, apenas inevitável, mas ele é fruto de escolhas políticas, inclusive, distributivas. Obrigado.

Frances - Muito, muito obrigada. Vejo que você tem medo da moderadora autoritária que vai entrar se você passar do tempo. Mas isso é porque temos pouco tempo, gente e as discussões são tão ricas. Mas sem mais, passo a palavra para o Átila.

Atila Roque - Oi, boa noite e muito obrigado. E antes de mais nada queria fazer também o meu agradecimento aos estudantes de Harvard e do MIT pelo convite e em particular, também à Helena por todo cuidado que teve conosco. E falar da minha satisfação de estar nessa mesa com pessoas que admiro tanto, que gosto tanto e que acompanho há tanto tempo, em particular meu amigo Thiago, o Gabeira, a Thamy que estou conhecendo pessoalmente agora, mas que já conhecia o trabalho. Acho que Thiago já fez um pouco do que eu queria fazer, que é um pouco contextualizar o ambiente histórico, talvez no qual conversamos sobre democracia no Brasil. E aí assim começo dizendo que, de certa maneira, a discussão sobre democracia no Brasil sempre, e sobretudo, a partir da década de 1980 e 1990, trouxe junto o debate sobre a democracia para além do voto; a democracia para além das eleições. Isso sempre esteve muito presente desde a década de 1980 com o surgimento dos chamados novos atores sociais, as temáticas sobre o meio ambiente, gênero e outras. Começou essa discussão e sempre esteve muito marcada pela situação. Mas eu queria dar um passo atrás e um pouco como Tiago e dizer o seguinte: é muito difícil pensarmos o Brasil se não pensarmos um pouco como que o Brasil se organiza. Como a política, o poder, a cultura, a sociedade brasileira, se organiza. E eu, talvez simplificando um pouco, eu diria que o Brasil se organiza, por mais que às vezes não goste de se ver assim, em torno de três grandes eixos. O primeiro desses é o eixo que eu, na falta de outra forma de dizer, é um eixo que apresenta um profundo desprezo pela própria ideia de igualdade. O Brasil se especializa em criar muitas maneiras de você afastar, separar e hierarquizar as pessoas. Esse é o país do “você sabe com quem está falando?” e “ponha-se no seu lugar”, e por aí vai. Então, o primeiro ponto que atravessa nossa história é esse profundo desprezo pela igualdade. Um segundo, sendo esse um tripé, um lado é o meu lado direito da tela e o outro o lado esquerdo; na outra ponta está aquilo que eu gostaria de sublinhar, mas que o Thiago já falou disso muito bem, então não vou me alongar, é a dimensão da violência. O Brasil é um país, sempre foi, ainda que muitas vezes tenha tentado apresentar uma outra visão, mas sempre foi muito violento. É uma violência seletiva, uma violência marcada, mas uma violência que atravessa, também, a história desse país e é uma violência que sempre teve uma função política muito clara de ajudar a organizar o lugar que cada um poderia reivindicar no debate, na disputa pelos diferentes recursos. E uma terceira dimensão, e aí essa talvez seja aquela que esteja no centro porque ensina, foi ela que ensinou tanto o desprezo pela igualdade, quanto apreço pela violência; que é o racismo. O racismo estrutural que informa o modo como esse país se organiza, então, nós podemos discutir as diferentes maneiras como esse racismo se manifesta, inclusive, também, como ele se apresenta ao longo da história, porque não é exatamente a mesma coisa e aí ele tem uma característica no pré-abolição e outras diferentes no pós-abolição. Mas de qualquer maneira, é um uma característica intrínseca na nossa estrutura de sociedade que organiza muito fortemente o poder e a distribuição de todas as coisas. Ou seja, esses três elementos dizem muito da crise que estamos vivendo atualmente, mas não apenas, eles dizem muito da nossa história. E aí em relação ao sistema político e a democracia, uma outra coisa, dito isso sobre três pilares; olhando para o nosso sistema político, olhando para maneira como o Brasil, em diferentes momentos da história, organizou a participação, eu também não vejo, e diante de acadêmicos e pessoas tão bem informadas sobre tudo isso, correndo o risco de uma certa simplificação, o nosso sistema político se especializou, pelo menos desde a abolição, vamos colocar a partir daí, desde a República e abolição; em controlar de uma maneira muito parcimoniosa os espaços de participação e os espaços de autorização para essa enorme massa. Um país com esse patamar de desigualdade, com esse racismo e com esse desprezo pela igualdade, é o dilema que é o sistema político de certa maneira no Brasil. Na teoria, mas no Brasil sempre tentou resolver; como avançar minimamente numa estrutura democrática que permitisse certa racionalidade na governança, mas ao mesmo tempo, não avançar o ponto de romper com esse padrão que organiza o país. Avançar, mas reservando um espaço muito particular para as nossas elites ou para aqueles que se beneficiam do sistema de poder. E vemos isso desde a política do Café-com-leite, pré 30, vimos depois, em alguns momentos, com as crises que geram as rupturas de 1937, como o Estado Novo, depois em 1964, com a ditadura e depois com a transição. Mas vamos ver as diferentes maneiras desse arranjo se organizar sempre sob pressão, e aí novamente ao longo da história essa pressão se expressa de muitas maneiras, mas sempre sob a pressão da sociedade; sob a pressão desses que estão sendo excluídos. Talvez o período mais virtuoso foi aquele que gerou mais expectativa e por isso que sofremos tanto, toda minha geração, a geração do Gabeira, certamente, sofre muito com o que está vivendo porque parecia, na parte da década de 1980, 1990 e nos anos 2000, que nós, com todas essas contradições, estávamos conseguindo dar passos muito efetivos em romper com essa tradição e a melhor maneira de romper com a tradição é permitir que os excluídos falem, participem, possam trazer a sua voz. Estava acontecendo por fora e por dentro do sistema político. A Thamy trouxe de maneira bastante interessante, de forma muito rica, a experiência dos diferentes conselhos participativos que foram desmontados recentemente. Aquilo foi um experimento de democratizar a democracia como o Boaventura Santos, sociólogo português, costuma trazer. A experiência do orçamento participativo foi outro momento em que se tentou trazer para a esfera das finanças do Estado, da economia, essa dimensão. Então, quando nós nos deparamos, como estamos nos deparando hoje, com a situação em que a democracia está submetida; mais do que a democracia, a própria ideia de um Brasil que caminha em direção à igualdade; está submetido a um ataque brutal, feroz, evidentemente que essas tensões históricas adquire um caráter mais intenso. Isso produz, a situação que estamos vivendo hoje, um sentimento profundo, não apenas de crise política, mas quase de crise civilizatória. O que parece estar em disputa hoje não é nem mais se vamos conseguir alcançar um patamar de acomodação do sistema político que nos permita seguir nessa administração difícil das desigualdades e da má distribuição do poder. Estamos diante de um momento em que a sociedade está sendo convidada, estamos sendo colocados na parede, para fazer escolhas muito profundas sobre quem deve viver, quem não merece viver; como diz a Judith Butler “quem é merecedor de luto e quem não é merecedor de luto”. Isso sempre esteve presente, dado a característica da violência, o Thiago trouxe isso muito bem, mas talvez agora com quando estamos diante do contexto em que, mais do que nunca, a luta política passa pela mobilização das paixões e as paixões elas são as paixões positivas e negativas, quiserem colocar assim, é o amor é uma paixão, mas o ódio também é. Isso está sendo trazido num contexto, no momento, em que a sociedade vive uma situação de desgaste por conta da violência e toda agenda da segurança pública e como ela foi tratada ou não foi tratada. Ela contribuiu muito para isso, mas mais recentemente, a pandemia. A pandemia joga isso no nosso colo nos coloca diante de uma política da morte. Uma política que promove e celebra a cena com a morte como uma morte necessária, que uma parte da população precisa experimentar. Na verdade, é isso que está sendo dito e talvez para concluir, e para não passar do tempo proposto, antes que a Frances brigue comigo [risos], o que está colocado para nós como sociedade civil, intelectuais, pessoas com alguma influência, e sobretudo, as lideranças políticas e as lideranças institucionais; o que se reivindica hoje talvez seja a coragem de reconhecer a profundidade do dilema civilizacional. Não se trata, eu estava assistindo a entrevista do Fernando Henrique, não se trata, simplesmente, de respeitar as regras dos jogos. Infelizmente, nós estamos em uma situação que, eu acho, ultrapassamos esse patamar e requer comunhão. Em outros momentos da história, isso ocorreu. Que faça um pacto efetivo pela vida, pelas civilizações e pela democracia. Esse pacto tem que ser amplo, mas precisa de coragem das lideranças políticas, coragem das instituições; porque se não houver essa coragem posta à mesa, aquilo que eu relatava, o desprezo pela desigualdade, o racismo e o apreço pela violência; estão hoje encontrando um terreno, um território muito amplo para avançar e se impor, talvez, de uma maneira que talvez nunca tenha conseguido se impor; como aquilo que vai definir o próximo século, definir da próxima temporada do Brasil. Então, cabe, ninguém escolhe por isso, mas cabe a essas lideranças e a essas pessoas. Nós estamos nesse lugar hoje, a responsabilidade, e talvez não estejamos nem a altura, mas isso também não importa. Mas cabe a nós a responsabilidade de dizer se vamos seguir assim ou se vamos parar e tentar recuperar, minimamente, uma experiência que parecia possível e que hoje parece tão ameaçada. Bom, vou parar aqui, acho que eu já estou quase no meu limite, então, obrigado.

Fernando Gabeira - Muito obrigado e boa noite a vocês todos, suponho que seja a noite aí. Estou muito feliz em participar desse seminário de uma universidade tão prestigiada e também com pessoas tão interessantes como acabo de ouvir. Por favor, não me dê a palavra final porque eu nunca terei a palavra final, eu sou muito indeciso para isso. Mas eu queria começar essa minha intervenção com um título. O título é, por favor também não me tome como muito meticuloso, o título “A democracia para além das eleições” supõem que as eleições sejam um evento democrático. Eu não podia passar em branco neste título porque é uma das minhas teses, tanto em entrevistas, com o também no meu próprio livro “Democracia Tropical”, afirmação de que as eleições brasileiras foram viciadas no nosso processo de redemocratização e elas foram tão viciadas e tão problemáticas que eu as considero um dos elementos principais na decadência que a nossa democracia vive hoje. Por quê? Porque as eleições brasileiras desde o princípio do processo de redemocratização, quando nós voltamos para o Brasil depois da ditadura militar, sempre foram eleições muito caras. Eleições que envolveram muito dinheiro, milhões de dólares foram jogados nessas eleições e elas estabeleceram uma aliança de quase todos os partidos que disputavam as eleições com os empresários que fornecem para o Estado, que tem negócios com Estado, ou que têm pretensões de ter negócios com o Estado. Isso criou uma associação entre empresários e políticos que ficou muito clara para a população quando apareceram os casos de corrupção e contribuíram muito também para arruinar o prestígio da elite política. Mas esse processo eleitoral, ao optar por esse caminho, ele também foi deformante no sentido de que esse volume enorme de dinheiro era utilizado, também, na produção de grandes programas de televisão. Eram contratados muitos publicitários competentes, criavam-se os cenários e as pessoas eram levadas a acompanhar uma eleição muito mais pelo caminho emocional e muito mais por um processo de identificação com a personalidade dos candidatos e com sua trajetória e não com seu programa político. E esse encontro de empresários com políticos representou que, também, alguns políticos começaram a querer mimetizar a vida dos empresários, o estilo de vida dos empresários. Um dos exemplos mais clássicos é o do ex-governador do Rio de Janeiro que disputou as eleições aqui em 2010 e que hoje está na cadeia condenado a mais de 300 anos de prisão. Ele passou a comprar helicópteros e a frequentar os melhores restaurantes do mundo. Ele queria viver como um milionário. Essas questões todas acabaram abalando muito porque os partidos que entravam no governo, ainda que derrotados e minoritários, chamados para o governo eles ocupavam os postos eram destinados a eles no governo com objetivos de financiar a sua campanha eleitoral. A ideia de eleição não era mais a ideia de conquista do eleitorado através do programa, mas era a ideia de levantamento de fundos para ter impacto financeiro e, consequentemente, o resultado eleitoral. Isso contribuiu parcialmente para que surgisse essa figura do presidente do Brasil hoje que, em primeiro lugar, usou uma outra plataforma para se eleger, ele já experimentou uma plataforma nova que não foi a televisão; e em segundo lugar se apresentou com uma pessoa que não participava dessa elite, que era contra esse sistema. Apesar de que o método de corrupção que ele utiliza é um pouco diferente do método de corrupção dos outros que estavam associados aos empresários. O método de corrupção dele e da família, é de ocupar espaços na máquina pública, contratar muitos funcionários amigos e parentes e fazer com que o dinheiro desses funcionários, amigos e parentes seja devolvido para eles. É um processo que se chama “rachadinha” e que é a divisão do salário dos funcionários com um representante político. Eu imagino que existem muitas pessoas que não falam português nos ouvindo, se vocês tiverem a oportunidade, aqueles que falam português, expliquem o que é fenômeno chamado “rachadinha” que é muito popular, muito conhecido hoje no Brasil. Portanto, as eleições não foram, apesar de serem, teoricamente, uma festa democrática; elas não contribuíram tanto com o processo democrático brasileiro. Foi através dessa corrosão da elite política brasileira que houve esse desencanto, e um aventureiro de extrema-direita ocupa esse espaço na Presidência. Portanto, esse momento é muito difícil. Então, além da eleição, que não foi assim tão importante para nossa democracia como poderia ser, nos ajudou até a ficar mais próximos dessa situação autoritária; nós temos uma Constituição que, um dia, disse como fazer com que a democracia funcione no Brasil. Por exemplo, ela diz que todos nós temos direito a saúde; ela diz que todos nós temos direito a um meio ambiente saudável e é evidente que isso está em contradição com as políticas de destruição da natureza; com a política de destruição da fauna; de desmatamento de vários ecossistemas brasileiros; da Amazônia, Pantanal e Mata Atlântica; tudo está em contradição. Mas o menos democrático de tudo é o fato de que a nossa geração de políticos no Brasil não conseguiu superar um problema essencial. Apenas 50% da população tem acesso a saneamento básico e água potável. E isso é um fator vital para você definir a ausência de uma democracia; é um ambiente em termos de condições de vida. Da mesma maneira, quando nós avançamos um pouco na própria Constituição, vemos que há dois artigos protegendo as comunidades indígenas; protegendo as etnias do Brasil; protegendo e garantindo a sua terra, garantindo sua cultura, isso em termos escritos. Mas o trabalho da sociedade abrangente, o apoio do governo, a inspiração do governo tem sido de destruir progressivamente essas comunidades. Seja pela busca de ouro; pela introdução de garimpo, que envenena as águas e todo lugar. Também como o desmatamento e o próprio crime e contra essas lideranças indígenas. Portanto, a nossa Constituição tem uma visão democrática e que me parece muito interessante. Ela supõe que nós temos que viver numa pluralidade de culturas e que a pluralidade de culturas é tão importante para nós como a pluralidade da vida natural. Assim como temos que manter as espécies, as diversas espécies sendo isso essencial para qualquer vida, também é necessário manter as diferentes culturas. Essa concepção foi consagrada no Brasil em 1992, quando fizemos a grandes conferências do meio ambiente e em uma conferência paralela, que tinha a presença de vários líderes mundiais se decidiu que a presença de várias culturas, a sobrevivência dessas culturas é tão importante para humanidade quanto a sobrevivência das plantas, dos animais nos ecossistemas, que nos mantêm vivos. O Brasil hoje é uma potência ambiental, mas que ao mesmo tempo o país que mais destrói o meio ambiente. Então, essa contradição é uma contradição importantíssima, porque é um país de costas para o seu futuro, de costas para sua possibilidade. Vocês que vivem nos Estados Unidos, quando vocês examinam o programa do Joe Biden, vocês veem a importância que existe, que é dada para a questão do meio ambiente. Como ela se articula, inclusive, com várias atividades econômicas destinadas a recuperar emprego, a restabelecer, também, uma democracia mais material. No entanto, o Brasil que tem todas essas possibilidades volta as costas para isso. Ele tem uma concepção e utiliza uma concepção que é uma concepção de desenvolvimento do século passado, que é a destruição do ecossistema e a incapacidade de perceber que é preciso manter esse carbono que está preso a natureza ali onde ele está, isso tem um valor importantíssimo, e é preciso utilizar o conhecimento para desenvolver também muitas capacidades econômicas que a própria floresta tem. Isso, infelizmente, no Brasil hoje não existe e é uma dificuldade, porque nós precisamos ampliar e melhorar a vida das pessoas que vivem nas florestas. Precisamos melhorar a vida das comunidades indígenas e garantir sua autonomia cultural, mas isso só pode ser feito através de uma outra concepção. Da mesma maneira existem aspectos da democracia que não precisam avançar no Brasil, esses aspectos já foram mencionados pelo Thiago, foram mencionados pelo Atila também. Eu, recentemente estava lendo um livro escrito por um grande intelectual brasileiro chamado Joaquim Nabuco e esse livro era sobre a abolição da escravatura, foi escrito em 1893 ou 83, se não me engano; mas eu acho que foi 93, século 19. Então ele dizia o seguinte, que nós fomos conquistar a abolição da escravatura no Brasil, mas é uma ilusão pensar que essa tarefa consiste apenas nisso; o racismo vai continuar existindo na sociedade brasileira por muito tempo. E hoje, nós vemos como isso está impregnado na sociedade brasileira, como nós sentimos isso, por exemplo, na relação da Polícia com as pessoas negras no Brasil. A quantidade de crimes que acontecem no Brasil com a população negra e com certa, quase, indiferença. Às vezes, nós precisamos utilizar um crime de muita repercussão nos Estados Unidos para fazer o que, de certa maneira, a própria sociedade brasileira se dê conta dessa situação. E as nossas polícias não são educadas para isso. As nossas polícias são educadas para desconfiar do homem e da mulher negra, mais do que isso, os nossos policiais informais; aqueles que trabalham supermercados; aqueles trabalham protegendo a propriedade privada; também são educados para matar, para desconfiar e matar quando isso acontece. Então nós precisamos tratar esses problemas todos em conjunto, da mesma forma a questão das mulheres, por exemplo o impacto ou como passou despercebido no Brasil sendo que aí nos Estados Unidos fala-se muito em agressão a mulheres; em abuso de mulheres. Aqui no Brasil, em uma Assembleia Legislativa, numa casa pública diante de uma câmera estática, uma câmera que não se mexia, quer dizer, não alterou o ângulo; um deputado abusou de outra deputada; passou a sua mão na deputada sem que ela permitisse. Isso foi filmado e, felizmente agora, ele foi suspenso. Quando isso chega a acontecer numa casa pública, entre representantes públicos, diante de uma câmera que ele sabia que estava ali, uma câmera estática que não ia mentir, nem falsificar o fato; é porque, realmente, o machismo está tão introjetado que ele não teme. Como não temem muitas pessoas que são violentas com as mulheres no Brasil. Eu acho que essa questão, também no Brasil, não está resolvida. Lembro que levantamos uma forma mais sistemática na campanha de 1986, no Rio de Janeiro, como candidato a governador, uma grande manifestação chamada “Fala Mulher”; quando a questão da mulher veio à tona. Não foi a primeira vez, mas veio à tona com os atos de massa e hoje cresce no Brasil. Então, se nós observamos essa questão do meio ambiente, das comunidades indígenas, das etnias indígenas, dos negros, das mulheres, nós vemos que parece que não há democracia e, mais ainda, para os pobres não há democracia. Nós estamos no auge da pandemia que nos levou quase 350 mil vidas e possivelmente levaram mais. A previsão da Universidade de Washington é que percamos 600 mil pessoas até julho. Mas estamos muito preocupados em determinar, por exemplo, um lockdown, mas nós não estamos preocupados tanto quanto as pessoas se deslocam para ir para o seu trabalho. A dificuldade que elas têm para ir para o seu trabalho, elas não têm máscaras, às vezes são colocadas em ônibus pequenos e nós temos uma imensa frota de ônibus de turismo está parada, que poderia ser utilizada para isso. Bom, então é tudo. É a nossa concepção de mundo, não só em relação ao meio ambiente, com a relação às mulheres, os negros, as comunidades indígenas, aos pobres, que tem que ser mudada para que o Brasil possa, realmente, chegar a um nível de democracia mais avançado. Eu espero que isso possa acontecer depois desse grande desastre que nós sofremos que é a ascensão de um governo de extrema direita. É um governo que falsificou as eleições à sua maneira, de uma forma mais grave, através das fake news na internet. Ele falsificou as eleições, o governo que tem a morte como a sua política essencial que é típica de governos fascistas, também a morte como uma presença próxima que o governo defende o armamentismo. E o volume de armas no Brasil triplicou no período que o Bolsonaro está no governo. Ele faz projetos para que as cadeirinhas que as crianças andam nos carros; elas podem, caso o pai não proteja a criança no carro, nas cadeirinhas, não serão mais multados; é liberdade dele colocar em risco a vida da criança. Também na pandemia, a política é uma política de “imunidade de rebanho”. Vamos deixar que morram o máximo possível de pessoas para que consigamos imunidade, algo que não está acontecendo e que não vai acontecer. Estão morrendo muitas pessoas, mas é uma política homicida que não merece nenhuma consideração. Qual a saída para isso? Só para finalizar, a saída para isso no meu entender, uma vez que a política da morte está instalada, é uma grande aliança. Uma aliança pela vida, que una a todos o que querem, realmente, alterar esse estado de coisas e que tenha a mesma disposição. Eu imagino que esteja no ponto final, né?! E que tem a mesma disposição que os ingleses estiveram na guerra, em que há todos contra um adversário comum. É muito difícil isso no Brasil, como foi difícil na Inglaterra. Quando você fala de uma união de todos, existem os caçadores de hereges: “não, você não pode porque no verão passado você fez uma coisa errada”; “aqui ele não pode, porque no outro verão, também, ele fez algo errado”. Mas nós precisamos de gente olhando para frente com essa visão de disposição para a vida para que possamos reconstruir a democracia e reconstruir, também o processo eleitoral que já deu um passo, uma vez que o processo eleitoral no Brasil hoje já é financiado com verbas públicas e já é um avanço em relação esse passado recente que eu denunciei. Era isso que eu queria falar. Eu lamento, mas quis sintetizar um pouco para poder estar dentro do tempo.

Frances - Não, não, por favor é que o tempo acabou, já recebemos mensagens da equipe técnica, então estou obrigada a encerrar. Mas antes de tudo, quero agradecer todos os participantes desse painel fascinante e gostaria de dizer que vocês me inspiram. E que estou sempre torcendo por vocês e pela democracia brasileira. E espero melhores tempos para o seu país. Boa noite a todos e muito obrigada!




Expediente

 Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editor de Política Eduardo Kattah / Editores Assistentes Mariana Caetano e Vitor Marques / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo e William Mariotto / Designer Multimídia Bruno Ponceano, Dennis Fidalgo, Lucas Almeida, Vitor Fontes e Maria Cláudia Correia / Edição de texto Fernanda Yoneya, Valmar Hupsel e Mariana Caetano

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