Brasil

Brasil precisa dar oportunidade e acesso à educação para revelar nossos talentos

Temática foi debatida por convidados do painel “Tecnologia, Desenvolvimento e Justiça” na 7ª Brazil Conference

Texto: Redação / Foto: Tiago Queiroz/Estadão

08 de abril de 2022 | 15h50


O painel “Tecnologia, Desenvolvimento e Justiça” realizado pela 7ª Brazil Conference Harvard & MIT neste 12 de abril, contou com transmissão ao vivo pela internet, a programação pode ser acompanhada pelo portal do Estadão, parceiro na cobertura do evento, além dos canais da conferência no Youtube e Facebook, a qualquer tempo.

Foram convidados para o debate o fundador do Tecnogueto, Rodrigo Ribeiro, cofundador do Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI), Saulo Barreto, o matemático e diretor da Escola de Matemática Aplicada da FGV, César Camacho e, como moderadora, a estudante na Escola de Governo de Harvard Nathalie Gazzaneo. A CEO Movimento Black Money, Nina Silva não pode participar do evento por problemas de conectividade com a internet.

Os convidados relataram o que os motivam para idealizar, criar e desenvolver seus projetos sempre com a preocupação de gerar oportunidades em todo o país.

Como é o caso da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), idealizada por Camacho, o desafio se tornou um sucesso é exatamente o vínculo entre as universidades e as escolas brasileiras de ensino fundamental e médio. “A educação pública brasileira não acompanhou o desenvolvimento da ciência brasileira. E então, que coisa mais natural do que supor que as universidades podem ajudar nesse processo de aprendizado e encaminhamento de jovens talentosos para carreiras mais frutíferas. Então, como realizar essa interação? A interação se faz mediante uma competição, que chamamos de olimpíadas de matemáticas”, explicou.

Já a criação da Tecnogueto, de acordo com Ribeiro, surgiu não apenas de sua vivência na área de tecnologia, mas no momento em que ingressou no mercado tecnológico percebeu ser um dos poucos a ingressar nessa carreira. “Precisamos olhar, cada vez mais para a base, para pessoas de periferia, da favela, pessoas pretas, que é de onde eu vim, onde existem milhares de pessoas extremamente talentosas, pois o Brasil, infelizmente, ainda é uma máquina onde morrem talentos por conta da falta de oportunidade e acesso.”


Confira o evento na íntegra


Tecnologia, Desenvolvimento e Justiça

● Nina Silva: CEO Movimento Black Money
● Rodrigo Ribeiro: Fundador do Tecnogueto
● Saulo Barreto: Co-fundador do Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI)
● Cesar Camacho: Diretor da Escola de Matemática Aplicada da FGV
● Nathalie Gazzaneo (moderação): Estudante na Escola de Governo de Harvard



Nathalie Gazzaneo: Obrigada pela presença de vocês aqui nessa conversa da Brazil Conference de segunda-feira à noite. Quando pensamos nesse painel, pensamos no seguinte: quando pensamos, quando olhamos para o Brasil com que sonhamos, que queremos construir; desejamos construir um país que seja, também, um protagonista na economia digital, que produza tecnologias de ponta. Isso, por si só, já é bastante ambicioso, mas pensamos também que só a tecnologia e o desenvolvimento não são o bastante. E é preciso que, na construção desse modelo de economia digital para o Brasil, possamos também garantir que mais brasileiras e mais brasileiros, não só uma pequena minoria da população, tenham condições técnicas e éticas para construir e serem agentes ativos dessa mudança. Em outras palavras, junto com o desenvolvimento tecnológico também precisamos construir as condições para que esse desenvolvimento seja feito de forma justa e inclusiva. Isso parece bastante idealista e é. Mas os três palestrantes que vamos conversar hoje, cada um a seu modo, mostram para nós que existem diferentes caminhos e que já estão percorrendo esses caminhos que nos enchem de esperanças de que não só é possível unir tecnologia, desenvolvimento econômico e social, como é possível fazer isso hoje. Porque é exatamente isso que eles já fazem. Então é uma honra para todos nós da Brazil Conference poder ouvir e aprender hoje com Rodrigo Ribeiro, que é fundador do Tecnogueto que é uma empresa social de educação gratuita, de educação em tecnologia, que tem como objetivo ajudar pessoas de guetos sociais no Brasil a se inserirem no mercado de tecnologia. Também vamos conversar com o professor Cesar Camacho, que é diretor da Escola de Matemática Aplicada da FGV. É ex-presidente do Instituto de Matemática pura e aplicada (IPA), idealizador e primeiro realizador da Olimpíada Brasileira de Matemática das escolas públicas que, eu me arrisco a dizer sem medo de errar, que é a mais bem-sucedida política pública para o ensino de matemática de maneira inclusiva no Brasil. E também teremos a chance de conversar com Saulo Barreto que é cofundador do Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI) que está transformando Santa Luzia do Itanhy, uma cidade pequena no sul de Sergipe, um dos municípios com menor IDH do Brasil na Capital Mundial das Tecnologias Sociais. Muito obrigada por vocês estarem conosco hoje. Eu gostaria de começar a nossa conversa hoje perguntando, ah, uma observação antes de continuarmos, a Nina Silva, também era nossa palestrante hoje, ficamos até o último minuto tentando nos conectar, porém ela teve problemas com a conexão e infelizmente não pode participar, mas a Nina é parte integral desse painel e está conosco aqui. Ela é parte completa da conversa que teremos hoje.         Então, eu gostaria de iniciar perguntando para os três sobre a mudança que vocês já realizam no Brasil. Como vocês alinham a tecnologia, o desenvolvimento, a justiça e a inclusão? E professor Cesar, eu gostaria de conversar com o senhor, acho, talvez, se existe um consenso entre quem pensa o desenvolvimento e a inserção do Brasil na economia digital; esse consenso seria o que é preciso democratizar o ensino das chamadas disciplinas STEM no Brasil, que são as disciplinas de Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática. Então, se é fundamental democratizar esse ensino para que o Brasil possa estar na economia digital? E para muita gente esse objetivo é muito difícil, parece impossível de se conseguir ensinar em grande escala e com qualidade disciplinas STEM. Mas todos os anos desde que o senhor idealizou e realizou pela primeira vez a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, o senhor nos prova o contrário, nos prova que é possível fazer isso e hoje já são quase 20 milhões de estudantes brasileiros participando da OBMEP e em mais de 99% dos municípios brasileiros. Alunos que aprendem e praticam a matemática juntos, então isso me faz pensar muito que se conseguimos fazer isso com a, talvez, disciplina mais difícil e mais abstrata que é a matemática; me faz ter esperanças que também conseguimos fazer isso com as outras disciplinas dessas áreas tecnológicas. Então, gostaria de começar perguntando ao senhor, qual foi o segredo na concepção e qual é o segredo na realização da OBMEP que permite que essa política pública ofereça uma educação técnica de qualidade com uma inclusão tão grande quanto a que ela alcança.

Cesar Camacho: Pois não, obrigada Nathalie pela apresentação e pela possibilidade de participar desse painel. Gostaria de começar saudando também, meu colega Saulo e também Rodrigo Ribeiro por me acompanhar nessa interessante conversa. De fato, a matemática é considerada na escola como um bicho papão. Então, é realmente surpreendente que todos os anos, em uma data pré-determinada, se reúnam 18/20 milhões de estudantes fazendo uma prova e que esse número não diminua ano a ano. Existem vários motivos para isso, eu posso caracterizar esses motivos para esse surpreendente fato por 4 razões que chamo de pilares da OBMEP. A primeira é que a OBMEP é uma atividade feita em colaboração entre a universidade, o ensino superior, e a escola pública inicialmente, mas mais recentemente, as escolas privadas também. Essa colaboração é bastante singular e interessante porque o ensino superior brasileiro contém a comunidade científica e é uma comunidade de primeira linha no país, na América Latina e no Mundo em várias especialidades; nisso, incluindo, a matemática. E por outro lado, nesse período em que se construiu a educação superior, iniciada na década de 1950, com a criação do CNPQ e da CAPES, como órgãos de fomento; houve um descuido da educação pública brasileira. A educação pública brasileira não acompanhou o desenvolvimento da ciência brasileira. E então, que coisa mais natural do que supor que as universidades podem ajudar nesse processo de aprendizado e encaminhamento de jovens talentosos para carreiras mais frutíferas. Então, como realizar essa interação? A interação se faz mediante uma competição, que chamamos de olimpíadas de matemáticas, que consistem de duas fases, que chamamos de provas. A primeira fase consiste em uma coleção de 20 perguntas de múltipla escolha, com objetivo de selecionar, em cada escola, 5% dos alunos. Os 5% com o melhor rendimento são selecionados nessa primeira etapa com a colaboração dos professores das escolas públicas. Esse 5%, que no caso de 18 milhões de participantes, corresponde a 900 mil, passam para uma segunda fase que consiste de 4 a 6 problemas de matemática, dessa vez para serem resolvidas com uma argumentação, são provas dissertativas. Essas provas, esse é o primeiro segredo, já que você se referiu a segredos. Essas provas são elaboradas pela nata da matemática brasileira. Então, elas são atraentes, desafiadoras, muito interessantes e sobretudo não contém erros. Já houveram 15 olimpíadas e elas se dividem em três níveis de acordo com a idade dos estudantes; de fato, mais recentemente, tivemos 4 níveis, pois a olimpíada acontece para estudantes a partir do 4º ano do ensino fundamental. Cada uma dessas provas tem 20 perguntas e são 4 níveis, então são 80 perguntas; depois vem a segunda fase, dissertativa, que tem de 4 a 6 perguntas; então o total de perguntas em 15 olimpíadas supera 1200 perguntas. Não houve um único erro detectado nessas perguntas. Então, essa é a contribuição da comunidade matemática brasileira organizada através de uma instituição que tem poder de convocação que é o IPA. E esse poder de convocação vem da excelência matemática que a instituição possui. Do lado da escola, e em torno dos ganhadores dessas medalhas das olimpíadas; são 500 medalhas de ouro, 1500 medalhas de prata e 4500 medalhas de bronze, um total de 6500 medalhas todos os anos. Esses medalhistas, quando localizados, nos transparecem a influência dos professores na preparação deles para a prova. Então isso significa que os professores passam a se envolver com esse procedimento, nessa competição, e ganhar essas medalhas. Essa é a primeira, vamos dizer, o primeiro pilar da OBMEP, o vínculo entre o ensino superior e a escola. O segundo pilar corresponde ao fato de que esse é um projeto financiado e apoiado pelo Governo Federal e sendo assim, ele garante o apoio das secretarias de educação e encoraja diretores e professores a colaborar na OBMEP. O fato desse projeto ser encampado pelo Governo Federal implica na sua elevada capilaridade, isso é muito importante para termos esses 18, 20 milhões de participantes. O terceiro pilar são os benefícios que a premiação da OBMEP oferece aos alunos ganhadores. Todos os alunos, os 6500 alunos premiados a cada ano, recebem uma bolsa de iniciação científica júnior do CNPQ no valor de 100 reais por mês. O que para um estudante do Ensino Médio ou do Ensino Fundamental, em uma cidade pequena no interior do Brasil, significa um apoio muito importante. Além disso, quando um estudante medalhista ingressa na universidade, ele recebe uma bolsa de iniciação científica do CNPQ durante dois anos no valor de 400 reais por mês. E depois disso, uma bolsa de mestrado da CAPES, logo após o fim da iniciação científica. Recentemente fui informado que esse último item da bolsa de mestrado aparentemente será suspenso pela CAPES, o que seria uma pena. O quarto pilar são as bolsas de manutenção em programas de graduação. O conjunto de estudantes que terminam o Ensino Médio e ganham uma medalha na OBMEP, o perfil desses estudantes é ir para uma universidade. Todos querem ir para uma universidade, mas isso não acontece. Isso não acontece porque, em muitos casos, o aluno mora em uma cidade pequena no interior do Brasil, pode acontecer de ser arrimo de família, e ir para uma universidade significa ele ir para uma capital onde terá que se manter e, além disso, estudar e ainda enviar dinheiro para a família. Então, essa bolsa de manutenção, nós não conseguimos convencer o Governo Federal a pagar. Mas seria crucial porque esse passo para a universidade é onde se realiza a última etapa desse projeto. Então, o que acontece? Instituições como a FGV-Rio, estão oferecendo bolsas para os alunos da OBMEP que querem cursar a graduação ou seguir essa carreira na FGV-Rio. Então a FGV tem matemática aplicada, ciência de dados e inteligência artificial, direito, economia, ciências sociais, administração e para qualquer uma dessas carreiras, uma vez que o aluno além da medalha, passa no vestibular da FGV-Rio, ele recebe uma bolsa de manutenção de 2000 reais por mês. Nesse último ano, nessa última seleção, os alunos que iniciam a graduação na FGV-Rio são 72 alunos que recebem essa bolsa. É um número significativo, mas ainda aquém do que realmente seria necessário para essas pessoas terem um futuro digno das ambições que carregam. E finalmente, eu posso dizer que o que explica, também, a olimpíada é a visão que os estudantes têm da OBMEP. Como eu tenho muitos alunos na FGV que provém da OBMEP, nesse momento mais do que 200 alunos, então eu converso com eles frequentemente e quando pergunto sobre como eles conheceram a OBMEP, a resposta é sempre a mesma. Eles dizem “um dia cheguei a escola e a professora nos disse que havia uma prova chamada OBMEP, colocou diante de nós essa prova e fizemos”. Em geral, não se ganham medalhas, em geral a reação é “fiz a prova, mas não ganhei nada, mas teve uma menina na escola que ganhou uma menção honrosa e a escola fez uma festa. Então para o ano seguinte, eu estudei com afinco e consegui uma medalha de bronze porque errei uma questão, se eu tivesse acertado, ganharia uma medalha de prata; mas a medalha de bronze foi suficiente para dar alegria para toda escola.” Esse menino existe é um aluno da FGV, a partir da terceira olimpíada que ele participou, ele começou a ganhar medalhas de ouro. Então, esse é o ponto de vista do aluno que de certa forma explica o sucesso, também, da olimpíada.

 Nathalie: Incrível, professor, não há como não se entusiasmar cada vez que se escuta mais sobre a OBMEP. Obrigada por ter compartilhado os 4 pilares conosco. Rodrigo, eu gostaria de continuar com você, para falarmos um pouco sobre o Tecnogueto. Muita gente acha, existe também esse senso comum que confundimos as coisas, achamos que o país está caminhando bem na economia digital quando as pessoas passam a usar novas tecnologias, se tornam consumidoras de novas tecnologias. Mas sabemos que a chave mesmo só vira, em termos de desenvolvimento, quando passamos a oferecer os meios para que mais pessoas se tornem, não só consumidoras, mas também sejam idealizadoras, produtoras e agentes ativos na produção dessas novas tecnologias. É o que chamamos de democratizar o desenvolvimento. Hoje, no Brasil, quase 80% das pessoas com mais de 10 anos tem um celular, então podemos dizer que elas são consumidoras de tecnologias móveis, sejam aplicativos e afins. Mas cerca de apenas 1% dos brasileiros sabe programar. Então, o que eu gostaria de te perguntar é como o Tecnogueto está trabalhando para transformar essa realidade? Como a ideia do Tecnogueto surgiu e quais são os pilares que vocês desenvolvem? Os desafios que vocês encaram? Enfim, essas são algumas das minhas curiosidades.

Rodrigo Ribeiro: Primeiramente, obrigado pela oportunidade de participar dessa mesa com vocês e por poder falar com as pessoas que nos veem de casa. Vou apenas me descrever para pessoas que possuem baixa ou nenhuma visão: sou um homem preto, uso barba, uso óculos de armação preta, tenho cabelo comprido com dreads até a altura do ombro. Uso uma camisa vinho e atrás de mim temos uma parede branca onde ao meu lado esquerdo há o pedaço da minha cama, e ao meu lado direito há uma planta. É isso. Acho importante esse primeiro passo e acho que o segundo passo importante, também, é de antes de falarmos da evolução tecnológica de um país, precisamos voltar um pouco e pensar no todo. De uma forma geral, o Brasil é um país grande, extremamente rico; estávamos falando disso antes de começarmos a mesa; com vários Estados, várias pessoas, várias culturas onde acabamos não explorando a capacidade de várias pessoas e acredito que o depoimento do professor César deixou isso muito claro. Portanto, temos pessoas incríveis no Brasil que acabam por não ter a oportunidade para explorar, ou melhor dizendo, extrapolando essa capacidade seja no que for; seja em matemática, seja em ciências, seja em história, seja com tecnologia, enfim. Infelizmente, isso acontece muito e nós temos que dar um passo atrás para lembrar as pessoas que 30% das pessoas no Brasil não possuem acesso à internet em casa. Então falamos muito dessa evolução tecnológica, falamos muito sobre aprender a programar, mas 30% dessas pessoas não têm internet em casa. E se formos colocar aqui as pessoas que ganham até um salário mínimo, as famílias em que se ganha até um salário mínimo, que é a grande maioria da população brasileira, esse número cai pela metade; contra a Classe A, apenas 1% das pessoas não têm acesso à internet. Outra coisa que é extremamente importante de falar sobre é a questão do acesso a equipamentos. Sem os equipamentos, não se consegue aprender e exercer essa profissão, ou qualquer outro tipo de profissão tecnológica. Equipamentos que eu digo são computadores, notebooks; os celulares ajudam, mas não são o ideal para aprendermos essas tecnologias. E esse número de pessoas que não possuem esses equipamentos em casa, é de 71% das classes D e E, entre 9 e 17 anos, não possuem esses equipamentos em casa. Esse também é um dado que acho importante trazer e mostrar para as pessoas que não é pura e simplesmente querer aprender a programar, não é só colocar isso como parte da grade curricular da escola, porque existem vários outros obstáculos que precisamos analisar e falar sobretudo. Outro ponto importante é que 40% dos dormitórios no Brasil, são ocupados por, no mínimo, 3 pessoas. Então estamos falando que dificilmente uma pessoa vai conseguir ter total concentração para aprender uma nova profissão, ou ser autodidata, que é o que acontece com a grande maioria das pessoas que trabalham com tecnologia, elas acabam por serem autodidatas; mas trazendo para o contexto brasileiro, isso também é importante destacar. E mais um ponto é que 5% da população brasileira fala inglês e sendo que apenas 1% da população é considerada fluente; ou seja, pessoas que conseguem se comunicar bem, tanto falar, como ouvir e compreender claramente que qualquer outra pessoa fala nesse idioma. Então, apenas 1% dos brasileiros, de mais de 200 milhões de pessoas no país, têm essa capacidade de comunicação em inglês. Eu trouxe tudo isso antes de começarmos, para tentar simplificar essa parte da tecnologia, de alguma forma, pois temos que pensar nessa base. E agora sim, respondendo à sua pergunta, esse é o papel que a Tecnogueto possui. Nós não temos a pretensão de ser uma escola que vai ensinar programação ou qualquer outro tipo de tecnologia. Nosso principal objetivo são as oportunidades. Também, mais uma vez pegando o gancho na fala do professor Cesar, é mostrar para as pessoas que existe algo além do que elas conseguem enxergar; isso é de extrema importância, foi o que mudou a minha vida.  Quando eu percebi que existia um mundo muito maior do que o que conseguia almejar. Comentando com um amigo, nosso amigo em comum, o João, eu não imaginava, há um tempo atrás, estar nesse local; estar conversando com milhões de pessoas e podendo transmitir um pouco do que sei ou do que penso para milhões de pessoas porque era algo muito além da minha realidade se eu fosse pensar isso há 5 anos. O que não é muito tempo se formos pensar, mas o programa tem 8 anos, então eu trabalho com tecnologia há mais ou menos 8 anos e cai completamente de paraquedas, na questão de tecnologia. Para resumir, sou roqueiro, então, tocava guitarra em uma banda; essa banda precisava fazer um MySpace, uma rede social que não sei se ainda existe, mas essa rede social era muito usada por músicos e fui aprender a usar o Photoshop, e quando reparei, precisávamos inserir códigos nessa rede social e não imagens. E aí eu fui aprender sobre os códigos, me apaixonei por aquilo, sendo que eu já tinha 28 anos, então tive que, literalmente, trocar a noite pelo dia, porque eu trabalhava, já tinha as minhas obrigações como adulto, pobre, no caso. Então eu programava de madrugada e vivi vários perrengues, dos quais não entrarei em detalhes, e consegui entrar em uma empresa aqui no Rio. Pelo sotaque as pessoas já devem ter reparado que sou carioca, e aí nessa empresa, quando eu cheguei eram 72 pessoas e dentre essas 72, apenas eu e uma mulher pretos. Entrei nessa empresa, há mais ou menos 8 anos, só que esse cenário no Brasil, não mudou. 92% das pessoas que trabalham com tecnologia, no Brasil, são pessoas brancas. Pessoas LGBTQIA +, hoje o número não está atualizado, mas são apenas 13% das pessoas que trabalham em tecnologia e apenas 2% das pessoas que trabalham com tecnologia, são pretas, nesse caso, falando não apenas no Brasil, mas no cenário mundial. E disso nasceu a ideia do Tecnogueto. Só que ela vem nascendo de várias dores, não apenas essa, mas também a dor do inglês. Hoje eu consigo me comunicar em inglês, não me considero uma pessoa fluente, mas consigo me comunicar bem; mas fui aprendendo com o passar do tempo. E quando eu estava idealizando a Tecnogueto e por isso eu me coloco como idealizador, porque foi pensando mesmos nas perrengues que passei e que eu não queria que outras pessoas passassem, pois não acho justo passarmos por essas coisas; são coisas injustas e até mesmo contra produtivo no sentido de aproveitamento de capacidades e talentos, então, temos como base esse pilar no inglês, ensinamos inglês para quem estuda conosco. Outro ponto que também me atrapalhou bastante foi a questão psicológica. Possuímos vários gatilhos psicológicos, sendo o maior deles, para nós que moramos ou viemos de favelas, é a questão psicossocial de autoaceitação e síndrome do impostor, que são coisas que batem com muita força em nós. Foram feitas pesquisas, em que 92% das pessoas advindas desses ambientes tem síndrome do impostor, uma síndrome que se trata de você estar em um local, pertencer a esse local, conquistou aquele espaço; mas sempre se tem a certeza de que você será expulso por não merecer aquela posição ou aquele espaço. Então, também temos apoio psicossocial para ajudar as pessoas a se entenderem, e não só isso, mas ajudar as pessoas a descobrirem maneiras de evoluir. Afinal de contas, a cabeça é algo que pouco falamos, pouco pensamos sobre, mas que é essencial para qualquer pessoa e com pessoas que trabalham tecnologia que são exigidas de formas diferentes. E o terceiro pilar que possuímos é o de tecnologia que não é limitado apenas a programação. Apesar de estarmos baseados em programação, pelo fato de eu ser programador e de trabalhar com isso há bastante tempo; mas em um futuro não distante, pretendemos abranger para outras áreas além da programação. Isso tudo de forma gratuita, porque sabemos que 95% da população brasileira pertence às Classes D e E, e, infelizmente, não teriam condições de arcar com os custos financeiros de cursos de tecnologia. Os cursos de tecnologia são extremamente caros, a média de preço desses cursos é de 8 mil reais; então tentamos oferecer tudo de forma gratuita, e vamos ensinando essas coisas para o máximo de pessoas, inclusive já formamos muitas pessoas. Agora nós temos uma plataforma online de tecnologia, estamos formando agora em junho, 60 pessoas. Nosso objetivo até o final do ano é formar mais de mil pessoas e gostaríamos muito de ampliar esse número, não só para mil pessoas, mas para muito mais. Hoje já conseguimos extrapolar as barreiras das regiões, então já estamos localizados no Rio e em São Paulo. Hoje temos alunos em todas as regiões do Brasil, mas ainda não chegamos em todos os Estados, faltam 9. Mas estamos em todas as regiões. Nosso objetivo é, na próxima turma, alcançar todos os Estados e, além disso, extrapolar, também, a questão territorial porque, mais ou menos, 10 países falam português, porque não atender, também esses países. Então, eu acredito muito que a Tecnogueto e outras iniciativas que existem com esse objetivo de ensinar tecnologia temos um papel extremamente importante para a evolução, não só econômica, mas social no Brasil. E precisamos olhar cada vez mais para a base. E essa base que eu digo são as pessoas da periferia, da favela, pessoas pretas, que é de onde eu vim, onde eu nasci e que existem milhares de pessoas extremamente talentosas e que, infelizmente, falo isso com pesar no coração. O Brasil, infelizmente, é uma máquina onde morrem talentos por conta da falta de oportunidade, por conta de não oferecer o acesso. E como eu trouxe, esse acesso não é só através de um curso, ou através de bolsas, mas de vários outros pontos em que é necessário dar um passo atrás para que consigamos evoluir. E acho extremamente importante percebermos isso o quanto antes, pois é isso que nos ajudará a chegar em um nível de igualdade em que não precisemos mais discutir sobre, por exemplo, auxílio emergencial, porque todos teremos um nível de igualdade bom o suficiente para ficarmos em casa e se cuidar em momentos como o esse de pandemia. Então, acho que é um pouco disso, um pouco do que o professor Cesar trouxe sobre a questão das bolsas, das pessoas que até mesmo recebem incentivo, mas que não conseguem ir para as faculdades. Esse é o reflexo do Brasil como um todo. Então peço para as pessoas que pensam em tecnologia, e dizendo que tecnologia é tudo hoje, não vamos voltar nesse quesito; então peço que empresas de tecnologia, e se você acha que a sua empresa não é uma empresa de tecnologia, você está errado, todas são; que não olhe apenas para o que você precisa, mas também para o que você precisa se formar. No Brasil, hoje, existem mais de 400 mil vagas de tecnologia que não serão preenchidas. Mas também não estamos nos preocupando na medida certa para educar as pessoas em tecnologia, para fazer isso. E a melhor coisa das vagas de tecnologia, em um geral, é que elas não exigem graduação, exigem muito mais que a pessoa seja capaz de realizar aquelas tarefas. E como o professor Cesar trouxe, e acho que todos nós, conhecemos exemplos de pessoas que tendo as oportunidades, tendo as ferramentas, a força de vontade não faltou. Essas pessoas evoluem, crescem e se eu puder fazer algum pedido, faço para que as pessoas olhem para a base, olhem para as pessoas das Classes D e E e não olhar para essas pessoas como consumidores, mas olhar essas pessoas como potências e futuras construtoras do Brasil.

 Nathalie: Rodrigo, incrível e eu só posso reforçar o seu pedido. Acredito que tudo o que você contou, já fala por si só. Obrigada mesmo por partilhar toda a sua história porque nós queríamos ouvir. Agora, vou conversar um pouco com o Saulo. O Saulo é quase meu conterrâneo, ele é de Sergipe e eu sou de Alagoas. E sendo alagoana e gostando muito desses três temas, o que eu imagino é que quando as pessoas fecham os olhos e pensam em polos de desenvolvimento tecnológico no Brasil; eu posso estar errada, mas o que vem à cabeça são as grandes cidades, os grandes centros. Acho que as pessoas fecham os olhos e pensam em São Paulo, talvez Florianópolis, talvez Recife, mais perto de nós, e por aí vai. Mas o Instituto de Tecnologia e Inovação, fundado pelo Saulo, mostra que esse senso comum é limitado. Então, Saulo, eu gostaria de ouvir de você como o IPTI está colocando Santa Luzia do Itanhy no mapa global de desenvolvimento de tecnologias de ponta. Como surgiu essa ideia, que eu imagino que lá em 2003, poderia parecer muito idealista de quando vocês começaram o projeto que, agora, mostra ao que veio? Conta para nós, por favor?

Saulo Barreto: Bom, boa noite, Nathalie e obrigado pelo convite, é uma honra imensa estar aqui. Primeiramente com uma figura humana como o professor Cesar, que criou uma das coisas que é um patrimônio desse país; a matemática é um patrimônio brasileiro por excelência, e o Rodrigo, que estou conhecendo hoje, que espero que cresça muito no que ele vem fazendo e acho que é um DNA muito próximo o que ele faz do que o que pensamos. Primeiro, idealismo é bondade sua, nos chamavam de doidos mesmo. Então, essa mudança para Santa Luzia aconteceu de fato em 2009, criamos o IPTI em 2003, na época eu perdi a paciência com a universidade, eu era professor universitário, e perdi a paciência. Cheguei a pensar que minha vida seria muito curta e acredito que vou no máximo viver 120 ou 130 anos, então, eu tinha que tomar uma decisão rápida e a burocracia do sistema universitário no Brasil é muito complexa. Então, pedi demissão e criei o IPTI em São Paulo. Mas por conspirações aquarianas, a equipe do Gilberto Gil, que era na época Ministro da Cultura, nos encontrou e trabalhamos com os pontos de cultura com cultura digital. E aí, por já ser considerado um cara pouco normal pela família, aí que piorou de vez. Mas isso me trouxe uma oportunidade extremamente preciosa. Eu sou engenheiro por formação, então isso sempre me trouxe um olhar pragmático para as coisas, mas sempre tive um desejo muito grande de poder usar o que eu tinha nas mãos, para tentar transformar o mundo; tentar transformar, pelo menos, o meu mundo. E essa experiência dos pontos de cultura me colocou em contato com comunidades que trabalham com cultura raiz de todo país usando tecnologia, porque éramos responsáveis pela parte de cultura digital, isso entre 2004 e 2007. E nesse entre, veio esse conceito, “para criarmos um impacto global, precisamos sair de São Paulo e ir para um lugar que representa o cenário da maior parte dessas comunidades que ainda vivem a armadilha, os problemas da pobreza”. A armadilha da pobreza é um problema multifatorial, retroalimentado, e que em comunidades isoladas, pobres, que possuem um alto grau de vulnerabilidade, é um problema estrutural. As pessoas nascem e crescem praticamente condenadas a repetir o ciclo de pobreza dos pais e avós e etc. Claro que isso não afeta 100% das pessoas, pois sempre teremos aquela pessoa que vai para um grande centro e consegue mudar a sua realidade. Então, a mudança de São Paulo para Santa Luzia do Itanhy que, como eu te disse: nos chamavam de doidos, ela tem uma lógica, que na minha opinião, é perfeita. Porque só podemos transformar um corpo, no caso, o Brasil, se você parte para a célula; e as células são as pequenas comunidades, sejam elas onde forem. Mas esse é um grande problema, o Brasil é baseado em uma série de problemas mentais. É um país de profunda mentalidade assistencialista, profunda desconfiança, e principalmente, de curtíssimo prazo. Tanto das pessoas que estão esperando por um benefício, quanto das pessoas que querem ajudar. Todos querem resolver seus problemas de maneira urgente e aí gasta-se uma energia incrível. E acho que a OBMEP é um bom exemplo de como as redes, construindo laços e vínculos através de um elemento em comum pode fazer com que as coisas escalem em longevidade, claro que a utopia não chegou lá ainda, porque ainda tem a bolsa que ele quer alcançar, mas utopia é sempre isso. Quando ele conseguir a bolsa, ele com certeza terá mais um problema para o Governo pagar. Então, sair de São Paulo e vir para uma cidade de extrema pobreza, Santa Luzia é um dos IDHs mais baixos do Brasil, tem 14 mil habitantes, 9 mil moram em área rural, a economia local é essencialmente pesca e artesanato; é uma região de manguezais, faz todo sentido; sempre fez todo sentido para nós. Agora é que começa a fazer sentido para o mundo. Porquê? Porque, primeiramente, se você quer usar ciência, tecnologia e inovações para promover desenvolvimento humano, que é o nosso foco, você precisa colocar a sociedade, a comunidade, como protagonista da mudança. A pior burrice que alguém pode fazer quando se tem dinheiro para investir é querer impor a sua lógica para a comunidade que ele, inicialmente, quer ajudar porque ele não mora lá, ele não tem a empatia, a conexão. Então, você precisa se mudar para aquele lugar, viver com aquelas pessoas para que você possa ter a capacidade de mediar o conhecimento científico-tecnológico que está muito distante dessa realidade inicialmente, com o conhecimento local que é tão importante quanto o conhecimento externo. Nós temos um projeto de alfabetização, que eu digo sempre, não há nenhum doutor de Harvard, você está aí em Harvard né?! Não há nenhum pedagogo de Harvard, que sabe metade do que essas pessoas sabem da realidade delas. Então é essa conexão entre conhecimento científico e o conhecimento local. E aí trago um pouco da palavra do Rodrigo, quando ele disse que não se via, em hipótese alguma, anos atrás, nessa situação, em que essa pessoa também, em um primeiro momento, tem uma dificuldade muito grande em entender que o que ela tem de conhecimento é extremamente valioso. Ninguém, nenhum de nós aqui, é capaz de dar uma aula a uma turma com alunos com deficiência cognitiva, alunos que chegam com fome; essa realidade só existe na prática, no papel ela não existe. Então, esse processo de construção e ao mesmo tempo de você gerar inspiração para as pessoas, porque nenhum de nós aqui, o Rodrigo, talvez, seja o único, que pertence de fato a uma comunidade, ele deve inspirar as pessoas da comunidade ao qual ele é hoje, um empreendedor; mas os demais, nós não inspiramos essas pessoas, não fazemos parte da realidade delas. Mas essa professora que consegue romper essa barreira da autoestima e de achar que ela não é capaz, ou que não sabe tanto quanto o cara de Harvard, porque na realidade, ela sabe outra coisa, e ele também não sabe tanto quanto ela. Essa ruptura acontece a partir de um processo de empatia e de construção participativa onde o primeiro passo é você construir relações de confiança, especialmente entre a pessoa e ela mesma, porque ela precisa aprender a sonhar. O grande problema da pobreza no Brasil, quando eu falo pobreza, não me refiro apenas a questão financeira, existe pobreza em todos os lugares. Aliás, isso me recorda uma frase do Pedro de Lara; que você não deve lembrar dele, mas o professor Cesar certamente se lembra dele; em que ele diz que tem gente que é tão pobre, mas tão pobre que a única coisa que tem, é dinheiro. Acho essa frase excelente. Então, essa conexão, essa capacidade de fazer com que as pessoas rompam essas barreiras do protagonismo, ela é fundamental porque depois a escalabilidade vem através dela. Porque ela sim, inspira as pessoas da sua rede, no caso de educação, empreendedorismo, de formação em tecnologia, de negócios, saúde, o que for. Aí sim, se consegue avançar construindo pontes, conexões, redes, e aí consegue se pensar como uma cidade pequena, minúscula, que nunca achou que pudesse ser algo diferente no Brasil ou no mundo, possa, aos poucos, se constituir a capital mundial das tecnologias sociais. Eu não sei quem vai dar esse título, mas eu já dei e aí já vale por mim mesmo. Já dei o título e já decidi e se alguém quiser vir contestar, entre na justiça e me conteste. Mas Santa Luzia é hoje a Capital das tecnologias sociais. Então, a decisão, lá trás, foi profundamente lógica, na nossa visão. Para todos os demais, era um absurdo você sair de São Paulo, onde estávamos muito bem instalados, e se largar para um município de extrema pobreza do sul de Sergipe. Mas com o tempo, com a resiliência e com a capacidade de ter fé, e aí eu falo da fé em nós mesmos, não falo da fé religiosa; conseguimos com as pessoas de Santa Luzia, aos poucos, começar a construir esse modelo. E aí, nos últimos anos isso tem ganhado escalas, estamos em vários Estados do Brasil. Temos escritório em Nova Iorque e agora um em Londres. E nosso grande sonho é que Santa Luzia possa inspirar milhares de outras comunidades no Brasil e no mundo, para que promovam seu próprio desenvolvimento. Porque ninguém pode dizer para as pessoas como elas devem se desenvolver, isso precisa nascer da própria comunidade, das próprias pessoas. Mas também não adianta você entregar o óbvio, tentar trabalhar com o óbvio. Existe uma frase que gosto muito de ouvir do Bernard Shaw, de 1901, de um livro chamado “Socialismo para milionários”, que inclusive recomendo a leitura; em que ele diz o seguinte: “nunca dê às pessoas o que elas desejam, dê o que elas deveriam desejar, mas não são capazes ainda.” Isso porque existem níveis de capacidades de sonhar que o Rodrigo trouxe muito bem, que essas pessoas ainda não estão prontas para aquilo, mas que todas querem, mas ainda desconhecem. Então, o papel que uma instituição como o IPTI possui é de poder provocar e criar oportunidades de fato para que esses talentos e essas competências locais possam emergir como uma rede ou uma força de transformação que nasce de um lugar pequeno, mas que vai espalhando bondade, competências, desenvolvimento e ética, aí pegando a pauta da democracia que é desse painel. Porque tudo o que fazemos está associado a dois pilares fundamentais: um é ética, e aí ética no sentido mais amplo, porque nós como brasileiros temos uma tendência muito forte a olhar de maneira individualista; cada um pretende resolver o seu problema e se esquece da comunidade. Por isso temos o que temos, não temos maus governantes, temos uma má sociedade, uma sociedade doente que precisa se aperfeiçoar, precisa melhorar, precisa tomar bons remédios para que ela possa emergir com a beleza que esse país tem. Eu costumo dizer que o mundo inteiro adoraria ser brasileiro e que nós somos e não damos valor. E a outra questão, que tem muito a ver com isso que falei, é a questão da identidade. Você só é ator global quando você tem uma identidade muito forte. Então, trabalhamos muito aqui em Santa Luzia, o valor da identidade. Isso está expresso de maneira explícita ou implícita em todos os nossos projetos. Senão, você é, no máximo, uma caricatura de algo muito mal feito. E esse é um dos grandes problemas do brasileiro, não é?! Um quer virar morador de Miami ou quer virar morador da China, seja lá o que for. Você pode morar em qualquer lugar do mundo, mas se você chega com a sua identidade, você é um cidadão global. Se você vai para aquele lugar porque o seu é pior, mais fraco ou mais simplório, você nunca vai pertencer a lugar algum. Pois você será, no máximo, uma caricatura do lugar onde você decidiu morar. Então, a identidade é o que faz com que sejamos algo diferente, mas o diferente na perspectiva da unicidade, de ser algo atraente. E isso é um grande problema que temos no Brasil e que aos poucos, dentro do nosso mundo, dentro das nossas perspectivas, conseguimos transformar. E espero que isso possa contaminar mais pessoas, mas é como eu digo: estamos na nossa fé, estamos na nossa crença; achamos de fato que a transformação global vai acontecer a partir do Hemisfério Sul. O Hemisfério Norte deu um “azar da peste”, ele foi muito bom no século XX, e o século XX, na minha opinião de quem não viveu no século XIX, foi o pior século da história, apesar do ponto de ser o século em que nasci, esse é o ponto positivo. Mas foi um século que trouxe muitas coisas da tecnologia, além de todas as mazelas globais, mas que trouxe perspectivas muito equivocadas para as pessoas de que a tecnologia vai resolver tudo. Essa Covid-19, por exemplo, estamos vivendo em uma situação em que, no fundo, todos estão doidos para que chegue a sua vez de ser vacinado. E todo aquele lado humano que esperávamos, de transformação, de provocação, começou a ser colocado para baixo. Então, eu acho que o Hemisfério Sul, que talvez, em muitas comunidades ainda está no século XIX, esse sim tem a capacidade de trazer soluções para o Hemisfério Norte durante o século XXI. E é isso que precisamos aprender a distinguir, nós somos algo profundamente valioso na perspectiva global. Somos o povo brasileiro, de criatividade, de civismo, de uma genialidade incrível. Só precisamos saber valorizar o que temos e olharmos de maneira mais empática para os outros, para que depois sejamos, de fato, para o mundo. Você colocou, para concluir, uma coisa que achei curiosa. Você falou que fazemos tecnologia de ponta. Eu acho mesmo, que fazemos uma tecnologia de ponta, mas não é rompendo a barreira do conhecimento não. É de ponta na perspectiva que, eu acho, o Brasil é o grande país do mundo para fazer inovações sociais ou tecnologias sociais, como chamamos. Porque nós temos competência, temos dinheiro e nós temos os problemas que outros países não tem. E quando chegamos em qualquer país da América Latina e África, chegamos como sambistas. Enquanto em qualquer país do Hemisfério Norte, nós chegamos como imperialistas. Esse é um patrimônio que ninguém tem e nós temos.

 Nathalie: Isso é verdade. Obrigada, Saulo. Eu não sei se você já percebeu, mas eu também espalho a palavra de que Santa Luzia é a Capital Mundial das Tecnologias Sociais. Então, no mundo, já não é mais só você.

 Saulo: Isso é porque, lógico, você é uma pessoa inteligente.

 Nathalie: (risos). Eu poderia ficar aqui ouvindo vocês por muito mais tempo, mas temos que nos aproximar no fim. E já que estamos perto de concluir, estamos nos nossos 5 últimos minutos. Eu gostaria que nós pudéssemos terminar a nossa conversa nos despedindo com esse gostinho de que dá para transformar o Brasil. Um exemplo que o mundo ainda não tem, como o Saulo colocou, como o professor Cesar colocou e como o Rodrigo colocou. Temos a capacidade de unir tecnologia, desenvolvimento, evolução social e econômica, e ainda trazer esses três elementos de mãos dadas. Porque, realmente quando olhamos para o mundo, nenhum lugar conseguiu isso. Então, eu gostaria que a pergunta que vou fazer para encerrar o painel seja para terminar com essa perspectiva. Eu gostaria de perguntar para cada um de vocês, Saulo, podemos começar por você, depois Rodrigo e professor Cesar para concluir. Se vocês pudessem multiplicar uma lição dos projetos que vocês lideram e dos projetos com os quais vocês mostram para o Brasil que dá para unir tecnologia, desenvolvimento e justiça; qual seria essa lição?

 Saulo: Já que vai começar comigo, acho que a principal mensagem que poderia dar é que: todos que querem ajudar, seja em qual camada for, precisam entender a importância da empatia. As pessoas precisam entender que a transformação vai acontecer em uma dinâmica em que somente a sociedade é capaz de colocar. Isso em uma perspectiva de longo prazo. Não estamos falando de trocar e de fazer intervenções que vão gerar coisas de curto prazo, estamos falando de transformações de mentalidade, que passam por diversos fatores. Então, essa transformação só vai acontecer se as pessoas pararem de ter pressa; se os investidores sociais olharem para as comunidades com perspectivas de que elas precisam ter o protagonismo porque senão a intervenção só acontece, só se mantém enquanto aquela injeção de dinheiro do investidor acontece. E que, na verdade, não precisamos colher o resultado disso. Não fazemos algo para nós, nas nossas vidas. Estamos plantando algo em cima de uma fé de longo prazo que talvez não estejamos nem aqui vivos para saborear. Isso não faz nenhuma diferença, nós extremamente insignificantes perante a transformação que temos para fazer. Então, a minha mensagem final é que dá para fazer isso, o Brasil pode ser um grande protagonista global, primeiro, parando de copiar os outros, sempre copiamos pessimamente. Segundo, as pessoas se unam mais com a perspectiva de transformação a longo prazo.

 Nathalie: Obrigada, Saulo. Rodrigo?

 Nathalie: Obrigada, Rodrigo. Professor Cesar?

 Saulo: Muito obrigada e boa noite a todos.

 Cesar: Boa noite!

 Rodrigo: Obrigado e Boa noite!




Expediente

 Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editor de Política Eduardo Kattah / Editores Assistentes Mariana Caetano e Vitor Marques / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo e William Mariotto / Designer Multimídia Bruno Ponceano, Dennis Fidalgo, Lucas Almeida, Vitor Fontes e Maria Cláudia Correia / Edição de texto Fernanda Yoneya, Valmar Hupsel e Mariana Caetano

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