São Paulo

Três obras icônicas do Museu do Ipiranga — e como elas foram restauradas

Prédio tem reabertura marcada para o público em 7 de setembro, data do bicentenário da Independência. Vejas as obras mais marcantes do local, com o quadro ‘Independência ou Morte’ e a ‘Fundação de São Paulo’, e como elas foram recuperadas

Edison Veiga, especial para o Estadão

19 de agosto de 2022 | 09h50


Eleger as obras mais importantes do Museu do Ipiranga é tarefa inglória, dado o tamanho do acervo. Contudo, ‘Independência ou Morte’, ‘Fundação de São Paulo’ e a famosa maquete da cidade em 1841 são peças marcantes que certamente povoam o imaginário popular. Evidentemente que as três estarão expostas na reabertura da instituição.

Independência ou Morte

Uma das obras mais conhecidas do País, é um retrato imaginário — e bastante pomposo — que procura recriar, com ares épicos, o momento em que Dom Pedro I teria declarado a independência brasileira, na região do Ipiranga, mais ou menos onde hoje está localizado o museu.

Américo claramente buscou referências em quadros acadêmicos europeus na composição da imagem, que acabou entrando para a história como uma espécie de “fotografia” da Independência brasileira — com diversos problemas factuais, é verdade, mas ainda assim uma imagem que se tornou a mais reproduzida para ilustrar esse momento histórico.

‘Independência ou Morte’ é o quadro mais conhecido do acervo do Ipiranga e, ainda, a maior tela em exposição em um museu paulistano, com a impressionante dimensão de 7,6 metros de comprimento por 4,15 metros de altura. Foi uma das poucas obras que não saíram do edifício sede durante as obras de restauro — o quadro é fixado na parede principal do Salão Nobre.

Independência ou Morte

Autoria: Pedro Américo (1843-1905)
Data: 1888
Localização: dentro do museu (salão nobre)
Trajes:
Retratados em pomposas vestes de veludo, os viajantes na realidade estavam em meio a uma viagem desgastante e provavelmente usavam roupas convencionais de algodão.
Espada:
Não há lastro para se afirmar que d. Pedro I empunhou a espada para realizar a declaração. O armamento foi um recurso de estilo adotado pelo pintor.
Cavalos:
Em vez de esbeltos e robustos cavalos, é mais provável que os viajantes tenham recorrido a mulas para realizar o trajeto.
Homens simples:
Pessoas em carros de boi são retratadas na pintura em referência a uma suposta adesão popular ao ato, mas o povo não teve envolvimento direto na data.
Família:
O retrato também mostra famílias acompanhando o grupo, o que não seria possível. O Ipiranga era uma região completamente despovoada em 1822.
Casa do Grito:
A construção não existia na data, tendo sido erguida em um momento posterior.

Foi um dos primeiros trabalhos a serem restaurados, em um processo cuja pesquisa se iniciou em 2017. Durante as obras no museu, a obra precisou ser totalmente envolvida por um tecido especial, que impossibilitava a entrada do pó mas, ao mesmo tempo, deixasse condições para que o quadro “respirasse”.

Graças a uma parceria com o Instituto de Física e Química da Universidade de São Paulo, foi feita uma análise química das tintas usadas originalmente na tela. A obra de Américo ainda passou por uma varredura com luz infravermelha. Isso tudo permitiu definir a origem dos materiais e, ao mesmo tempo, revelou detalhes do processo realizado pelo artista no século 19.


7,6 m de comprimento

É a dimensão do quadro situado no salão nobre do museu. A obra tem 4,15 metros de altura.



O quadro serviu para corroborar um discurso de “invenção” do Brasil e, para tanto, Américo seguiu um padrão em voga na arte da época para imortalizar grandes batalhas e momentos historicamente cruciais.

À luz da história, há diversas imprecisões. A começar pelos trajes. Os participantes desse episódio histórico estavam em meio a uma viagem — longa e penosa, em cavalgaduras. Viajantes da época usavam simples roupas de algodão. Nada de pomposas vestes de veludo. A espada empunhada por Dom Pedro I também foi um recurso estilístico do pintor. Não há lastro com a realidade ele ter empunhado a arma para fazer a declaração.

Por falar em cavalgaduras, o transporte da época era muito mais baseado em valentes mulas do que em belos cavalos, como os retratados na pintura.

O quadro ainda mostra alguns homens simples, em carros de boi, buscando aludir que houve participação popular no 7 de setembro. Mais uma liberdade poética de Américo: historicamente, o povo não participou da Independência. Aliás, o quadro inclui até mesmo mulheres e crianças, o que não bate com a realidade: a região do Ipiranga era completamente despovoada em 1822.

Por fim, a curiosa presença da casinha, depois imortalizada com Casa do Grito, compondo a cena. Essa construção não existia em 1822. E o enquadramento trazido por Américo é impossível, já que o riacho do Ipiranga fica distante da mesma.

A Fundação de São Paulo

A conclusão do restauro desta importante obra do acervo do Museu do Ipiranga ocorreu em julho deste ano. Em um contexto de valorização da história paulista, Pereira da Silva concebeu essa obra procurando recriar, de forma artística, a missa celebrada por padres jesuítas na região onde hoje fica o Pátio do Colégio, naquele 25 de janeiro de 1554.

No trabalho de restauração, conforme informa a assessoria de comunicação do museu, foram removidos o verniz oxidado e as repinturas anteriores. A tela ganhou um verniz de proteção, novo reentelamento e novo chassis, de alumínio. O modus operandi é o de praxe em trabalhos contemporâneos de restauro.

Fundação de São Paulo

Autoria: Oscar Pereira da Silva (1867-1939)
Data: 1907
Localização: dentro do museu: pavimento B, ala oeste)
Rio:
A tela recria uma cena que teria ocorrido próxima ao Rio Tamanduateí.
Religiosos:
Os religiosos ali representados são aqueles que se tornariam conhecidos por fundar São Paulo, os jesuítas Manuel da Nóbrega, de pé, usando estola dourada, ladeado por Manuel Paiva e José de Anchieta.
Igreja:
É possível ver a construção de uma igrejinha com madeira e folhas de bananeira — seria o empreendimento original da igreja do Pátio do Colégio.
Paz:
Índígenas não apontam armas para os brancos, reforçando uma ideia de harmonia entre eles.
Hierarquia:
Os indígenas aparecem curvados, sentados ou ajoelhados.

A tela recria uma cena que teria ocorrido próxima ao Rio Tamanduateí — que aparece em terceiro plano, no canto esquerdo. Em uma clareira o que se vê seriam os primeiros momentos da então Vila de Piratininga, com um grupo de padres celebrando na companhia de vários indígenas.

Os religiosos ali representados são aqueles que se tornariam conhecidos por fundar São Paulo, os jesuítas Manuel da Nóbrega, de pé, usando estola dourada, ladeado por Manuel Paiva e José de Anchieta. Há ainda dois bispos, trajando vestes pretas. Ao fundo deles, no terceiro plano do canto direito, é possível ver a construção de uma igrejinha com madeira e folhas de bananeira — seria o empreendimento original da igreja do Pátio do Colégio.

A ideia de harmonia entre europeus e nativos foi enfatizada pelo fato de que, mesmo portando lanças ou arco e flechas, não há nenhum indígena apontando essas armas para os brancos.

Também vale observar que a tela transmite uma ideia de hierarquia em que o branco estaria acima dos povos nativos. Se os religiosos são representados em pé, eretos, os indígenas aparecem curvados, sentados ou ajoelhados. Pereira da Silva mostrou uma submissão que veio pela fé, sem violência, em seu retrato idílico daqueles primeiros dias de colonização européia em São Paulo.

Na época em que o quadro foi pintado havia um intenso debate entre pesquisadores para tentar descobrir se os moradores originais do planalto paulista haviam sido os indígenas guaianás ou os kaingangs. No entendimento da época, os primeiros eram descritos como pacíficos, enquanto os segundos, mais violentos e resistentes à dominação branca europeia.

O pintor tomou parte nessa discussão e retratou os nativos de sua tela mais assemelhados aos guaianás — contudo, sem perder a virilidade, transmitindo a ideia de superioridade paulista inclusive nos indígenas que originalmente povoavam a região.

Maquete de São Paulo em 1841

Depois do instigante espanto inicial ao contemplar uma maquete tão interessante e rica em detalhes, a primeira pergunta que costuma soar na cabeça de quem visita ‘São Paulo em 1841’ é por que raios 1841?

Feita sob encomenda para as celebrações do primeiro centenário da Independência, em 1922, a ideia original era retratar a São Paulo que Dom Pedro I havia encontrado cem anos antes. Contudo, o artista Bakkenist esbarrou na falta de documentação sobre o urbanismo paulistano daquela época e teve de se contentar com uma realidade de 19 anos mais tarde.

DETALHES: Maquete não deixou o prédio do museu durante o processo de restauro. Foram realizados reparos nas trincas e limpeza química nas peçasMarcelo Stapafora

É considerada a maior maquete em gesso do Brasil, com 6 metros de comprimento e 5,1 metros de largura. Assim como a ‘Independência ou Morte’, ‘São Paulo em 1841’ também não saiu do edifício-monumento. Seu restauro contou com uma aspiração fina, para remoção de toda a sujeira, uma limpeza química e o nivelamento da estrutura. Reparos nas trincas também foram efetuados.


6 m de comprimento 

É a dimensão da maquete, que tem 5,1 metros de largura. Para o restauro, a obra não teve de deixar o prédio do museu.



Haverá ainda duas novidades: graças a um piso elevado, o público poderá contemplar a obra em um nível 60 centímetros acima, facilitando a observação. E toda a maquete foi mapeada digitalmente, facilitando que ela possa ser exibida em ambientes digitais.

Apenas um quarto da cidade de então está representada na obra. Quem observa a maquete percebe as características coloniais das construções, simples e semelhantes entre si, bastante rústicas.

Por decisão do artista, apenas as construções estão representadas. Não há, portanto, nenhuma vegetação, nenhuma pessoa ou animal.


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