Para principal analista da CNN International, a vitória de Joe Biden indica que a busca de meios-termos é o melhor caminho para revitalizar sistema político
A curiosidade somada à iniciativa e à capacidade de execução são capazes de mover montanhas. Enquanto cidadão ativo, venho tentando contribuir como posso neste momento tão delicado do Brasil e do mundo. Seja divulgando informações sobre a pandemia com responsabilidade e frequência. Seja erguendo pontes entre a iniciativa privada e as comunidades. Seja ajudando pessoalmente quem mais precisa. Seja sugerindo e apoiando políticas públicas inclusivas. Com alguma frequência, ao longo dos últimos meses, também tenho compartilhado no Estadão conversas com pensadores de vanguarda que possam, de alguma forma, jogar luz no debate atual e inspirar os caminhos pós-pandemia. De professores como Michael Sandel e Scott Galloway a filósofos como Yuval Harari, passando por ganhadores do prêmio Nobel como Esther Duflo e escritores-economistas como Tom Friedman e Thomas Piketty, foram publicadas aqui neste caderno variadas sinapses sobre educação, tecnologia, ciência, saúde, desigualdade social e sustentabilidade, entre tantos outros.
Nesta série, pouco falamos sobre política, especialmente de eleições. Isso porque tem ficado claro que a politização mais pedestre da discussão sobre a maior crise de saúde vivida pela humanidade nos últimos 100 anos acaba gerando apenas disfuncionalidade, distorção e, infelizmente, mais mortes.
Hoje resolvi abrir uma exceção. Completamos a semana em que a maior democracia do planeta foi às urnas para escolher seu novo presidente. Uma eleição plebiscitária que avaliou a controversa presidência de Donald Trump e que deixa o mundo cheio de perguntas e incertezas.
Posto isso, fui em busca de alguém que pudesse nos ajudar a responder a algumas dessas dúvidas. A conversa de hoje é com Fareed Zakaria, indiano naturalizado norte-americano, professor de relações internacionais na Universidade de Harvard, autor de inúmeros best-sellers, como o recém-lançado 10 Lições Para o Mundo Pós-Pandemia, editor da NewsWeek Internacional, colunista do Washington Post e principal analista de política externa da CNN International.
Conheci Zakaria em fevereiro deste ano nos bastidores do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, último evento presencial a que pude comparecer antes de o novo coronavírus contagiar e parar o mundo. Da sua casa em Nova York, este hábil observador da conjuntura faz um alerta tão singular quanto preocupante: a vitória do democrata Joe Biden, por mais eletrizante e catártica, não ofusca as violentas e diversas iniciativas para interromper a votação, suprimir votos, impedir a contagem de cédulas, constranger apuradores e manipular tribunais - um pacote sabotador que Zakaria chama de apoteose das “democracias iliberais”.
Luciano Huck: A maior democracia do planeta foi às urnas para eleger seu próximo presidente sob a liderança de um presidente-candidato que parece contestar a própria democracia. Qual foi a sua sensação nesta semana?
Fareed Zakaria: Ainda estou inseguro em relação ao que está acontecendo. O povo norte-americano rejeitou Donald Trump. A derrota eleitoral de um presidente aconteceu apenas 5 vezes nos últimos 130 anos. Mas qual é a realidade mais ampla? Acho necessário notar que somos um país dividido, no final das contas. Para mim, o que é fascinante nessa divisão - que é verdadeira nos EUA, é verdadeira no Brasil e em muitos outros países - é que ela se tornou cultural, e não política. E essa divisão cultural é tão profunda que os fatos, os eventos não importam mais. Donald Trump passou por um impeachment, uma pandemia, uma grande depressão econômica... Temos 12 milhões de pessoas desempregadas. E o nível de aprovação de Trump é o mesmo de antes. Estamos em um novo mundo em que a política se tornou uma realidade tribal e cultural, na qual você se identifica com o seu time. É como o esporte. Se o seu time vai bem, você torce. Se ele vai mal, você se mantém leal.
Luciano Huck: O Brasil também sofre dessa mesma realidade tribal e cultural. A política aqui também foi polarizada, gerando apenas prejuízos. Como conseguir uma reconciliação?
Fareed Zakaria: Era mais fácil quando a divisão política se dava em torno de economia. A esquerda queria gastar mais dinheiro; a direita queria gastar menos. A partir daí dava para chegar a um acordo. Você quer gastar 100, eu quero gastar 0... concordamos em gastar 50. Mas o que você pode fazer quando a divisão é cultural? Quando a divisão é o que você enxerga como a alma do seu país, a identidade do seu país, a característica definidora do seu país? Deveríamos reconhecer que somos dois países e duas culturas dentro de uma só e reconhecer que precisamos viver juntos e chegar a meios-termos. É por isso que, em alguns sentidos, Joe Biden é o homem para o momento. Se tem uma coisa em que Joe Biden acreditou ao longo de toda a sua carreira, é que é necessário chegar a meios-termos, que é necessário trabalhar com pessoas das quais você discorda. Encontre áreas de concordância, trabalhe ao redor delas. Precisamos de uma nova cultura, precisamos de uma revolução cultural no mundo ocidental. Uma revolução cultural que mostre que não é pecado chegar a meios-termos com o outro lado.
“Vivemos em um mundo aberto, globalizado, em que todos estão conectados, mas ninguém está no controle”
Luciano Huck: Vários analistas criticaram o discurso não polarizante de Biden. Que sua mensagem de centro, temperada, era insuficiente para se contrapor aos absurdos defendidos e cometidos por Trump, um homem racista, machista e misógino, responsável pelo fracasso absoluto no combate à pandemia e que agora parece disposto a tentar aniquilar as bases de legitimação da democracia dos EUA. A vitória de Biden oferece algum aprendizado a países que lidam com lideranças tacanhas como Trump?
Fareed Zakaria: Se você quer mesmo resolver o problema, fazer de fato a diferença, e não apenas causar barulho na televisão, é necessário se perguntar por que as pessoas estão votando em Trump, em Bolsonaro no Brasil, em Boris Johnson no Reino Unido, em Erdogan na Turquia, em Modi na Índia. O que está acontecendo? Vivemos em um mundo aberto, que se move muito rapidamente, globalizado, em que todos estão conectados, mas ninguém está no controle - esta é a tese central do meu novo livro. Todos temos a sensação de que somos um pequeno barco no oceano. Para pessoas com menos instrução, menos capital e menos informação, essa é uma realidade assustadora. E políticos como Trump e Bolsonaro dizem “eu vou te proteger”. Eles tornam as coisas simples. Culpam estrangeiros, minorias, as elites. Dizem “todos fizeram merda, mas eu vou te proteger”. Então precisamos nos perguntar o que podemos fazer por essas pessoas para lhes dar algum senso de segurança? Algum senso de reafirmação? É fácil demais ir no caminho de apenas denunciar Trump. Trump mente o tempo todo. Ele é racista, ele é misógino, mas por que há 70 milhões de pessoas votando nele? Precisamos entender isso e perguntar o que as pessoas estão procurando. As elites desses países esqueceram essas pessoas. Trump as está usando. Nenhuma das políticas dele está realmente as ajudando. Mas ele ao menos lhes dá reconhecimento. E precisamos encontrar uma nova política de reconhecimento para essas pessoas que realmente se sentem esquecidas.
Luciano Huck: Sou leitor dos seus livros e há mais de 20 anos você já falava de “democracias iliberais” - governos eleitos de maneira democrática, mas que corroíam e minavam a democracia por dentro. Naquela época, você falava de Fujimori no Peru e de Putin na Rússia. A narrativa não só se confirmou, como se multiplicou pelo planeta. Hoje, muitas democracias ao redor do planeta são assombradas por este mal. Como você enxerga este fenômeno? A derrota de Trump pode significar o começo de um novo ciclo?
Fareed Zakaria: Sua pergunta é muito importante e gostaria de te dar uma resposta totalmente otimista. Mas esta eleição é, de certa forma, paradoxalmente, a apoteose, o triunfo de democracias “iliberais”. Assistimos à mais enérgica eleição de participação democrática, talvez em um século, nos EUA. Mais de 140 milhões de pessoas votaram. E, mesmo assim, vimos fortes e numerosas iniciativas para interromper a votação, suprimir votos, impedir a contagem de cédulas, usar e manipular tribunais, abusar do sistema. Você tem um presidente que não se compromete a deixar a sua cadeira uma vez derrotado. Em outras palavras, estamos vendo essas tendências “iliberais”. Os ataques à autoridade da lei, os ataques aos direitos humanos e às liberdades individuais. É esse o paradoxo. Por isso precisamos continuar lutando. Precisamos reconhecer que muitas pessoas gostam da democracia porque as empoderam, mas que elas não entendem a autoridade da lei, o respeito pela separação dos poderes, pelos direitos individuais, direitos de minorias, de liberdade religiosa. Todas essas coisas são o recheio da democracia. Votar é a casca. O que dá a verdadeira força para a democracia é uma cultura de respeito por leis, por normas, por direitos, por liberdades. Essas coisas precisam ser ensinadas. E essas coisas são muito frágeis.
“O Brasil poderia e deveria liderar a agenda verde em que não existe litígio entre produzir e preservar”
Luciano Huck: Gostaria de trazer o Brasil para nossa conversa. A diplomacia brasileira sempre teve uma tradição de diálogo e construção propositiva, mesmo em questões geopolíticas delicadas ao redor do planeta. Neste momento estamos vivendo um ciclo oposto: uma narrativa reducionista, altamente politizada, escolhendo lados, fechando portas, o que fez o governo brasileiro declarar apoio irrestrito a Trump. Quais você considera que serão as principais consequências para o Brasil de uma eleição de Joe Biden?
Fareed Zakaria: O governo brasileiro parece ter decidido que deseja uma política externa simbólica, baseada na ideia de que o Brasil é fundamentalmente uma nação ocidental e cristã, que retomou suas raízes. É muito como Trump. É uma política externa “Make Brazil Great Again”, que remete a um passado imaginário em que todos os problemas não existiam. Mas isso é tudo simbólico. Qual é a substância? A substância aqui é que estamos em um novo mundo muito complicado, em que as forças que produzem uma enorme quantidade de comércio global e crescimento econômico, com o qual o Brasil se beneficiou, estão agora em perigo em uma variedade de formas. Estão em perigo porque alguns países estão virando do avesso, como os EUA. Estão em perigo porque há alguns poderes emergentes como a China, que desejam manipular o sistema, e fazê-lo de forma que não seja um sistema justo, aberto e livre. Qual é papel do Brasil em tudo isso? O que isso vai representar na busca pelos interesses do Brasil? Vai ficar mais alinhado com o mundo ocidental? Vai encontrar alguma forma de lidar com a China de uma forma que não permita à China tirar vantagem do Brasil? Quais são as respostas de Bolsonaro para essas perguntas? Eu não sei. Tudo que ouço é essa solidariedade simbólica. Com populismo ou com a afirmação simbólica de que o Brasil está retomando suas raízes cristãs. O que isso quer dizer no mundo de hoje? Eu não vejo uma estratégia clara, ampla e prática para o país.
Luciano Huck: A última vez que nos encontramos foi no Fórum Econômico Mundial em Davos, pouco meses antes de a pandemia tomar o mundo de assalto. Saí de lá com a certeza de que hoje em dia o Brasil não lidera nenhuma agenda global, de que viramos párias no debate mundial.
Fareed Zakaria: Eu diria que é pior do que isso. Se você observar os principais novos poderes no mundo, como China, Índia, Rússia e até a Indonésia, o Brasil, de certo modo, é o menos “ativista” e o menos incisivo em relação ao que quer. Com a Rússia, você pode concordar ou discordar, mas o Putin sabe o que quer. Os chineses possuem uma estratégia muito clara. Os indianos estão atando laços muito mais próximos com os norte-americanos, com os japoneses, com os australianos. E o que o Brasil está fazendo? De todos os novos poderes, o Brasil é o mais quieto de todos.
Luciano Huck: Nenhum outro país no planeta tem o potencial natural que o Brasil tem. Somos um país rico por natureza e pobre por escolha. Para mim, o Brasil poderia e deveria ser a maior potência agroindustrial sustentável do planeta. Liderar a agenda verde em que não existe litígio entre produzir e preservar. Acho que esse deveria ser o nosso lugar nessa história toda.
Fareed Zakaria: Essa é uma ótima resposta. Gostaria que o presidente do Brasil falasse isso.
“O que dá a verdadeira força para a democracia é uma cultura de respeito por leis, por direitos, por liberdades.”
Luciano Huck: A pandemia nos custou a vida e o sofrimento de milhares. Da porta pra dentro, no seio de nossas famílias, ofereceu inúmeras oportunidades para reflexões e aprendizados. Da porta pra fora, a história deu um salto adiante. Como você bem colocou em seu livro, “há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem”, citando Lenin. Tenho convidado para o debate pensadores esclarecidos, capazes de contribuir e elucidar o caminho da humanidade pós-pandemia. Me fala do seu novo livro, 10 Lições Para o Mundo Pós-Pandemia, então?
Fareed Zakaria: A mensagem central é que estamos vivendo uma vida muito arriscada. Continuamos a nos desenvolver, crescer e expandir, mas estamos fazendo-o sem nos perguntar os riscos. Continuamos colocando dióxido de carbono na atmosfera, tratando a fina camada atmosférica ao redor do nosso planeta como um esgoto. E agora a natureza está contra-atacando. Estamos vendo as secas e os incêndios florestais. As ondas de calor. Estamos vendo o que acontece na Amazônia. Há lugares que eram zonas temperadas, no Oriente Médio, que agora estão com temperaturas como a do Saara, todo verão. Olhe o que estamos fazendo com a agricultura. Conforme as pessoas crescem, se desenvolvem e enriquecem, elas passam a querer comer mais carne. E estamos comendo carne em uma escala em que estamos utilizando grandes porções do planeta para criar gado, colocando mais e mais metano e gases do efeito estufa na atmosfera. Para produzir essa carne, estamos criando gigantescas fazendas industriais, onde colocamos 2.000 a 3.000 cabeças de gado juntas. Vírus estão sendo criados nessas fazendas, pulando de um animal para o outro. Esta será a próxima pandemia. A próxima pandemia virá de fazendas industriais. Como poderíamos fazer isso de uma forma mais sustentável? Porque há cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo que vão ascender à classe média. Conseguiremos ter mais 2 bilhões de pessoas vivendo como vivemos, consumindo tanta energia, consumindo tanta carne? E o planeta conseguirá sobreviver? Acho que não, e nenhum cientista acha que conseguirá. E, mesmo assim, continuamos marchando. Espero conseguir convencer as pessoas a parar para buscar novas respostas. Há tantas novas respostas para energias, energias verdes, agricultura sustentável, e os seres humanos são tão engenhosos.
Luciano Huck: Reforçando o ponto que você acabou de trazer, o futuro da economia da União Europeia está sendo associado à criação de uma economia limpa. Todo o dinheiro, todo o esforço econômico, toda a política social, todo o desenho de organização do mercado. Mas isso não é só um fenômeno europeu. A China vai pelo mesmo caminho. Você acha que a eleição de Biden trará de volta os EUA para esta agenda?
Fareed Zakaria: Há uma grande diferença entre Biden e Trump. De um lado, temos Donald Trump, que disse que “toda a ideia americana de ter um mundo aberto, uma ordem baseada em regras, os EUA profundamente engajados, tudo isso foi um erro. Eu quero fechar tudo, comércio, fronteiras, a entrada de imigrantes”. E Biden planeja retomar 75 anos de política americana, de tentar ser o arquiteto e o sustentáculo dessa ordem de um mundo aberto. Biden acredita fortemente na agenda da energia limpa. Mas há um problema. Sem o Congresso, não haverá muito o que fazer. Se Biden não tiver maioria no Senado - e parece que não vai ter -, será muito difícil fazer as coisas acontecerem. Ele conseguirá fazer algumas coisas, mas será difícil. Olhe, fundamentalmente, precisamos de uma revolução no modo de pensar nos EUA, e é por isso que faço o que faço. Acredito que o mais importante é mudar as ideias das pessoas. Os políticos apenas seguem, vão para onde os ventos estão soprando.
Luciano Huck: No Brasil vivemos uma roleta social, que define as chances de uma pessoa em sua vida. Hoje somos um país praticamente sem mobilidade social, em que as pessoas perderam o direito de sonhar. A pandemia veio para iluminar nossas desigualdades. Não só a distância entre o mais rico e o mais pobre, mas a desigualdade de acesso, de oportunidades, digital, de educação, de acesso à saúde de qualidade. Publicamente tenho dito que precisamos comprometer o 1% da elite brasileira, que sempre foi acusado de omissão quando as discussões eram sobre desigualdades, a contribuir para endereçar de forma definitiva essas questões, que isso não fará bem apenas para a consciência, mas também para o bolso. Com alguma frequência, você coloca que nunca a humanidade esteve tão bem. Ao mesmo tempo não conseguimos endereçar as desigualdades abissais que se repetem em vários recortes do planeta. Como você enxerga esse tema da desigualdade?
Fareed Zakaria: Você colocou muito bem. O desafio é que nós nunca tivemos tanto crescimento e tanto progresso. E conseguimos porque reconhecemos amplamente no mundo que o capitalismo, em suas várias formas, é muito produtivo, produz muita inovação e muita riqueza. Mas infelizmente, também é verdade que ele produz muita desigualdade. E um dos desafios que enfrentamos é como pegar esse dinamismo, a inovação, a abertura, a liberdade que o capitalismo proporciona - e celebro tudo isso - e endereçamos o problema que ele produz, que é essa massiva desigualdade. E acho que esse desafio foi destacado e acelerado pela pandemia. Você vê as grandes empresas indo melhor, e as pequenas indo pior. As pessoas com educação, com acesso à internet e com habilidades técnicas, se dão melhor, e as que não têm isso se dão pior. As pessoas que vivem em cidades vão se dar melhor, as que vivem mais longe, no interior, vão se dar pior. Quando vou ao Brasil, eu me lembro da Índia, onde cresci. Você pode ir para o bairro mais nobre, a casa mais bonita, e haverá uma pobreza terrível ali ao lado. As pessoas não olham para isso mais. Estão tão acostumadas... e precisamos parar com isso. Para mim, isso é uma metáfora para o que há de errado com países como o Brasil e a Índia e, aliás, os EUA também. Não podemos entrar nessas casas bonitas e não olhar a pobreza ao lado, fingindo que não existe. Quando temos um crash financeiro e o Banco Central abre seu cofre e ajuda os grandes bancos, ninguém diz “espere, estamos colocando dezenas de bilhões nas mãos dessas pessoas. É um desperdício do dinheiro? Você deu a eles um incentivo de não trabalhar duro?”. Mas, ao dar dinheiro para os pobres, todo mundo começa a dizer “ah, mas se você der dinheiro demais, eles não vão trabalhar”. Por que é que, quando damos ajuda financeira a bancos, ninguém se preocupa com essas mesmas coisas? Precisamos mudar nossa mentalidade. Estamos nessa juntos.
Luciano Huck: O que você está dizendo é música para os meus ouvidos. Estou no debate público no Brasil, agora, para isso. Precisamos lidar com a desigualdade no Brasil. E até aqui não enxergo comprometimento do governo brasileiro com políticas de proteção social e geração de oportunidades social fiscalmente viáveis e responsáveis. Mas, quanto mais eu mergulho no universo de ideias e gestação de políticas públicas - com o olhar de curar ideias de como reduzir desigualdades, criar oportunidades, mobilidade social, sem que seja um jogo de “soma zero” -, mais acredito que isso seja possível. Eu também acho que dinheiro não será um problema. O que mais me preocupa é o capital humano, os recursos humanos, as melhores sinapses dedicadas a servir em governos. É por isso que precisamos de bons políticos, novas lideranças. Vivemos o desafio de formar novas lideranças. Como você enxerga isso?
Fareed Zakaria: Acho que você está 100% certo. E acho que é ainda mais amplo do que isso. É sobre um novo diálogo, uma nova língua, que nos ajude a entender que o maior potencial de um país é seu capital humano. A maior oportunidade é investir nesse capital humano. Principalmente nos mais pobres, porque os mais pobres possuem mais ímpeto, eles estão desesperados para escapar da pobreza. Se você der as ferramentas e o acesso, eles vão trabalhar muito duro. Mas você tem que acreditar nisso. Pense na quantidade de dinheiro que é perdido no Brasil para a corrupção. Se você pegasse todo esse dinheiro e desse diretamente para os pobres - uma renda básica universal - você veria uma transformação. Em primeiro lugar, os pobres gastariam esse dinheiro, ao contrário dos ricos, que o guardariam. Seria bom para a economia. Em segundo, você descobriria que eles continuariam a trabalhar, pois isso representaria uma chance de abrir um pequeno negócio, de obter educação. Há muita evidência disso, ao redor do mundo. O que precisamos é reconhecer que investir nos pobres é um poderoso mecanismo econômico, social, político e moral.
“Hoje somos um país praticamente sem mobilidade social, em que as pessoas perderam o direito de sonhar. A pandemia veio para iluminar nossas desigualdades”
Luciano Huck: O Brasil está a poucos dias de uma eleição municipal, para escolha de prefeitos e vereadores. A vida mudou e vai mudar ainda mais depois da pandemia. E essa transformação passa fortemente pela ressignificação das cidades. No Brasil, nossas cidades são únicas e preciosas e nossa cultura é favorável à coletividade, mas a segregação tem sido cada vez mais intransponível. Como você enxerga as transformações urbanas pós-pandemia?
Fareed Zakaria: Se você olhar para a gripe espanhola, 100 anos atrás, a pior pandemia desde a peste bubônica dos séculos 14-15, assim que a pandemia acabou, o que tivemos? A era do jazz. Só na cidade de Nova York ainda que fosse ilegal - por causa da lei seca - você tinha mil bares abertos nos primeiros anos da década de 1920. Acho que isso nos mostra que, independentemente da tecnologia que exista, das novas formas de comunicação, os humanos gostam de se reunir, de estar juntos, do aspecto social da vida. Aristóteles escreveu que “o homem é um animal social”. Gostamos de competir, de cooperar, de nos entreter. Gostamos de nossas histórias, e fazemos isso em tantas variedades, mas gostamos de fazê-lo numa proximidade física uns com os outros. Eu não acho que essas novas tecnologias vão mudar isso. Então, o desafio será como vamos recriar as cidades - que estão passando por tempos complicados, com os restaurantes e tudo mais - aliando o dinamismo das inovações da tecnologia e preservando esse desejo humano profundo por conexão. Todas as cidades estão tentando. Em Paris, eu escrevi no livro, estão tentando criar o que eles chamam de “cidade de 15 minutos”. Ou seja, a partir de onde você mora, tudo que você precisa deve estar a 15 minutos de você. Sua escola, mercado, lojas, até, talvez, o lugar em que você trabalha. Seria uma cidade de vizinhanças. Talvez retomemos a ideia de “escritório” dentro de casa. Mas eu não acho que vamos conseguir fugir… as pessoas não vão viver na selva. Vamos todos viver em lugares nos quais possamos ver nossos amigos. Não sei para você, mas para mim, uma das questões desse isolamento é que ele me fez ainda mais convicto de que uma das coisas que faz com que valha a pena viver a vida é a capacidade de passar tempo com aquelas pessoas que são próximas de você.
Luciano Huck: A violência policial foi o estopim para uma das maiores manifestações da história dos EUA, que ecoou mundo afora, até no Brasil. De forma e em níveis diferentes, nem o Brasil nem os EUA conseguiram até hoje endereçar a sua terrível herança escravocrata. Como você enxerga a questão do racismo e do antirracismo que ficaram ainda mais gritantes durante a pandemia?
Fareed Zakaria: Há uma grande semelhança entre os EUA e o Brasil, que os fazem especiais, quase únicos, no mundo. Ambos têm um profundo e longo legado de escravidão. E nenhum dos dois países reconheceu ou lidou completamente com esse tópico. Um dos erros que os EUA cometem é o de tratar todas as minorias da mesma forma. Falando como alguém que veio da Índia, minha experiência nos EUA foi muito boa. No geral, como você sabe, os EUA são um bom lugar para imigrantes. É um país convidativo, aberto, assimilativo. Mas o tratamento que a América branca dá aos pretos vem sendo terrível. Da escravidão, passando pela segregação, até a contínua discriminação que permanece até os dias de hoje através da polícia e do sistema judicial. E o Brasil possui algumas coisas parecidas, no coração da cultura política brasileira. Até que lidemos com a questão da escravidão, não podemos realmente curar esse problema. A cultura brasileira é uma grande mistura de todas essas coisas, assim como é a cultura dos EUA. Mas há um crime embutido, um pecado original, com o qual não se lidou propriamente. Isso contamina a cultura política. Ao falar sobre essas coisas, você e eu estamos trazendo esse assunto para a superfície. E estamos forçando essa conversa, forçando as culturas a lidar com isso. Obviamente, cada um à sua pequena maneira. Mas isso faz a diferença. No final das contas, isso cria um país melhor, que pode discutir abertamente as forças, as fraquezas… e é assim que se supera essas coisas. É necessária uma terapia nacional e coletiva.
Luciano Huck: Acredito que o maior legado da nossa geração será sentarmos juntos daqui a 20 anos e, ao olharmos para trás, percebermos que conseguimos fazer do mundo um lugar menos desigual, com mais oportunidades para todos. Muito obrigado pela conversa.