Internacional

Siarhei Leskiec / AFP

A batalha pela Europa

Em todo o continente, governos autoritários desafiam a unidade da União Europeia (UE)

Texto: Paulo Beraldo e Levy Teles

07 de janeiro de 2021 | 05h00









A Polônia: com partido de extrema direita, ‘democracia está na rua’

“Farei o possível para que mesmo os casos de gravidez muito difícil, quando é certo que a criança vai morrer, muito deformada, acabem dando à luz”, afirmava Jaroslaw Kazcynski, líder do partido de extrema direita polonês Lei e Justiça (PiS), em 2016, um ano após a chegada da sigla ao poder.

Quatro anos depois, ele e seus aliados avançaram - para felicidade dos mais conservadores e revolta de parte da população do país de 38 milhões de habitantes. Em novembro de 2020, a corte constitucional polonesa impediu o aborto em casos de deficiências congênitas fetais, que pode acarretar na morte da mãe ou do feto - uma decisão que levou milhares de mulheres e jovens às ruas para protestar contra o governo.

“Se você perguntar sobre a democracia na Polônia, ela está nas ruas agora. Não está no governo, nas instituições oficiais, mas na auto organização da sociedade”, explica Malgorzata Fidelis, professora polonesa de estudos do Leste Europeu na Universidade de Illinois. “É aí que está a democracia”.

Presidente Andrzej Duda (esquerda) fala durante o 39º aniversário da imposição da Lei Marcial na Polônia
Presidente Andrzej Duda (esquerda) fala durante o 39º aniversário da imposição da Lei Marcial na PolôniaMateusz Marek/EFE

A política do PiS que culminou na conquista da maioria no Parlamento nas eleições legislativas de 2015 começou com um incidente em 2010. Em abril, o avião do então presidente e irmão de Jaroslaw Kaczynski, Lech, caiu em Smolensk, na Rússia. As comissões russas e polonesas designadas para investigar o caso e as transcrições da cabine determinaram que o acidente ocorreu por erro do piloto.

Mas membros do partido culparam o governo da Polônia e a Rússia. Teorias da conspiração pipocavam enquanto a imprensa acusava o grupo como “seita de Smolensk”. O PiS, por sua vez, atacava a “parcialidade da imprensa”. Enquanto isso, crescia a cisão entre as populações de grandes cidades como Varsóvia, Cracóvia, Lodz e Gdansk, e os moradores das pequenas vilas e da área rural do país ex-comunista.

O país, que permitiu para muitos uma boa qualidade de vida após a queda do regime comunista em 1989, ainda vive suas contradições. “Muitas pessoas na Polônia, especialmente os mais pobres e conservadores da zona rural, foram os perdedores da transformação. Eles foram desconsiderados pelas elites das grandes cidades”, afirma Adam Traczyk, pesquisador especializado em Europa Central e Leste Europeu no Conselho Alemão de Relações Exteriores.

Protesto contra lei antiborto em 30 de outubro de 2020Kacper Pempel/REUTERS

“Kazcynski reconheceu que o Estado precisava tomar conta dessas pessoas (com apoio financeiro) - e é por isso que os resultados eleitorais do PiS são muito altos”, explica. Já Malgorzata Fidelis cita que a mudança de um modelo comunista para uma economia neoliberal não teve um processo de transição apropriado, deixando um grupo marginalizado.

“Foi muito difícil sair de uma segurança relativa, já que ainda que as instituições não funcionassem [tão bem], havia sistema de saúde universal, salários razoáveis, estabilidade empregatícia. Esse suporte acabou após 1989 e, nas pequenas cidades, a chance de sucesso é menor.”

O PiS busca colocar o país de volta às tradições sociais, cristãs e conservadoras. A maioria dos seus membros é contra a imigração e condena homossexualidade. O partido também começou uma investida contra instituições do país - um dos principais alvos é o sistema judiciário

Em 2017, o PiS tentou alterar a idade de 67 anos da aposentadoria de juízes e promotores para 60 no caso das mulheres e 65 para homens. A justificativa: retirar membros do judiciário mais velhos modernizaria a corte e combateria a corrupção de juízes que eram dos tempos comunistas. Críticos afirmavam que a decisão buscava nomear pessoas leais. A medida provocou a aposentadoria forçada de um terço dos juízes do Supremo do país.

Protesto antiaborto em Varsóvia
Protesto antiaborto em VarsóviaDawid Zuchowicz/Agencja Gazeta via REUTERS

Em junho de 2019, a Corte de Justiça da UE decidiu que a Polônia violou a legislação europeia ao reduzir a idade de aposentadoria de juízes do Supremo. Em novembro, outra decisão, sobre baixar a idade de aposentadoria dos demais juízes, também foi definida como violação. A Polônia voltou atrás antes que as sentenças fossem publicadas em Luxemburgo.

“Jaroslaw Kaczynski acredita que a política polonesa, após a queda do comunismo em 1989, foi tomada pelo o que ele chama de uklad (establishment)”, explica Traczyk. “Essa ‘uklad’ teria sido criada por elites liberais e ex-comunistas que negociaram uma transição pacífica e agora controlam os negócios, a mídia e o Judiciário. Basicamente, todo mundo que não apoia ele e seu partido são membros da uklad”.

Reformas controversas

 Um relatório da Comissão Europeia publicado em setembro de 2020 afirma que “as reformas do judiciário polonês desde 2015 são fonte de controvérsia, tanto domesticamente e a nível da UE, e levanta vários problemas, vários desses ainda persistem.”

As reformas, segundo o relatório, “aumentaram a influência do poder executivo e legislativo sobre o sistema judiciário e, portanto, enfraqueceram a independência judicial.” A Polônia alega que  defende a igualdade de todos os Estados perante a lei e o cumprimento dos tratados da União Europeia. Também afirma que a disputa sobre a reforma no judiciário diz respeito ao grau da soberania do Estado-Membro.

Apesar da relação conflituosa entre UE e Polônia, especialistas veem que o país não pretende sair do bloco. “Eles querem ser parte do bloco porque há benefícios financeiros”, afirma a professora polonesa Malgorzata Fidelis. “Mas em termos do que a União Europeia representa simbolicamente, eles já deixaram de ser parte há tempos”.

O apoio popular é outro fator pela permanência do país, que ingressou em 2004. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center em 2019, 84% dos poloneses são favoráveis à União Europeia.  Os protestos em curso no país, para Fidelis, podem até não resultar em nenhuma mudança política imediata. “Mas representam uma revolução cultural e moral que está tomando lugar na Polônia. Isso pode trazer mudanças a longo prazo”.


A Hungria: um ex-líder revolucionário mina uma fragilizada democracia

Décadas antes de Viktor Orbán ser primeiro-ministro da Hungria, ele discursou durante um ato solene em ato contra o comunismo. “Se nos armarmos com os instrumentos necessários, poderemos pôr fim à ditadura comunista e assegurarmos a retirada imediata das tropas soviéticas”, afirmou o jovem recém-formado de 26 anos.

A fala ocorreu em junho de 1989, duas semanas depois de a Polônia ter a sua primeira eleição livre desde a Segunda Guerra. Ao lado de 250 mil húngaros no centro da Budapeste, Orbán protestava contra o sistema de partido único então vigente no país e falava sob aplausos emocionados.

Mas os 31 anos passados deixaram poucas semelhanças entre o jovem revolucionário e o atual autocrata, líder do iliberalismo na Europa e inspirador de populismos em outros continentes desde que chegou ao poder, em 2010. Também parece restar pouco do jovem que fez mestrado em ciência política na Universidade de Oxford com tese sobre o movimento Solidariedade, da Polônia, com uma bolsa do magnata húngaro-americano George Soros - hoje um de seus maiores adversários.

Líderes opositores colocaram bandeiras pretas em um parque de Budapeste, na Hungria, representando os mortos pela covid
Líderes opositores colocaram bandeiras pretas em um parque de Budapeste, na Hungria, representando os mortos pela covidAttila Kisbenedek/AFP

Sob o comando de Orbán e do partido Fidesz, a Hungria deu uma guinada autoritária. Reduziram a independência do judiciário, perseguiram a oposição política, a imprensa livre e minaram os direitos civis, dificultando a atuação de ONGs e o combate à corrupção nos altos escalões.

Em rara entrevista concedida em 2019 à revista The Atlantic, Orbán criticou o liberalismo  por ter supostamente dado origem ao politicamente correto, que seria uma forma de autoritarismo. “É o oposto da democracia. É por isso que acredito que o iliberalismo restaura a verdadeira liberdade e a verdadeira democracia”.

Também afirmou que acha “pesado” o fardo de líder do movimento iliberal. “A Hungria é um país pequeno e não tem ambição nem meios para assumir a liderança”, disse. Ele se vê como um defensor da liberdade e dos valores europeus. “Os húngaros são um povo antigo, livre e orgulhoso que não receberá lições. Fomos ocupados pelos otomanos, pelos eslavos, pelos comunistas. Não passamos por isso para cair sob o domínio de Bruxelas”.

Em outubro de 2017, Orbán discursou no Conselho Internacional sobre Perseguição Cristã, em Budapeste. Além de afirmar que “o cristianismo é a religião mais perseguida do mundo”, disse que “um grupo de líderes intelectuais e políticos europeus deseja criar uma sociedade mista na Europa que, dentro de poucas gerações, transformará completamente a composição cultural e étnica do continente”. Políticas contra imigrantes têm forte apelo na sociedade húngara e são uma importante base de apoio de Orbán.

Protesto contra fechamento da Central European University em 2016
Protesto contra fechamento da Central European University em 2016Bernadett Szabo/REUTERS

Túnel do tempo

 “O Viktor Orbán atual seria inimigo daquele Orbán, que lutava por liberdade, por valores liberais e pelo Estado de Direito”, afirma o professor de direito Gabor Halmai, do European University Institute, especializado em democracias iliberais na Europa.  “Esse Orbán de hoje é contra tudo isso”.

Pouco tempo depois de assumir o poder, premiê conseguiu, com maioria parlamentar, modificar a Constituição do país de 10 milhões de habitantes em menos de dois meses. E desde então tem modificado leis para transformar a Hungria. A constituição foi considerada conservadora e discriminatória pela oposição.

“Ela foi votada exclusivamente pelos apoiadores do governo - ninguém da oposição e nem da sociedade civil apoiou essa constituição. É de um lado só. E por causa do sistema proporcional de eleições na Hungria, eles conseguiram mudar todo o sistema político”, explica Halmai.

Mas não foi apenas na política que houve mudanças. Um dos exemplos mais recentes dos ataques de Orbán foi a cruzada legal contra a Universidade Centro-Europeia (CEU, na sigla em inglês), fundada por Soros. Com barreiras legais impostas pelo governo, a instituição, considerada um baluarte do liberalismo, se viu obrigada a mudar para a Áustria.

Em dezembro de 2020, o Parlamento aprovou uma lei que impede casais do mesmo sexo de adotarem crianças. E passou uma emenda constitucional prevendo que a “mãe é uma mulher e o pai é um homem”. O casamento gay foi proibido no país após uma emenda constitucional proposta em novembro para estabelecer o casamento como uma instituição exclusiva entre homem e mulher.

Protesto por liberdade de imprensa em 2018 em BudapesteBernadett Szabo/REUTERS

Jan-Werner Mueller, cientista político da Universidade de Princeton, em artigo escrito em janeiro, afirmou que a tentativa do Fidesz “travar uma guerra cultural em toda a União Europeia”  é feita “porque descobriram que esta é uma forma eficaz de desviar a atenção das ‘autocracias cleptocráticas’”.

“Ao retratar seus críticos como progressistas enlouquecidos que defendem o casamento do mesmo sexo e formas cada vez mais grosseiras de política de identidade”, diz o acadêmico, o governo evita “qualquer discussão sobre seu clientelismo, politização do judiciário e controle da mídia”.

‘Partido único’

“É uma nova forma de partido único. Mas está claramente reproduzindo alguns dos recursos de Estados de partido único do passado” disse Michael Ignatieff, presidente da CEU ao The New York Times. “O que é irônico, porque o regime é violentamente anti-comunista em sua retórica, mas na prática reproduz recursos do regime antigo”.

Questionado sobre o apoio a Orbán, Gabor Halmai afirma que é um erro acreditar que o governo tem tanta popularidade só porque se mantém no poder desde 2010. “Não nego que tenha apoio, mas certamente não é a maioria da população húngara que apoia esse governo. E até mesmo os que votam por ele, por falta de mídia livre, dificuldades de campanhas para a oposição, não há uma visão real do que acontece”.

Nos últimos 20 anos, mais ou menos, houve um aumento claro de partidos radicais de direita, mas parece que o apoio para esse tipo de radicalismo de direita fica sempre na faixa de 20% a 25%

Adam Przeworski, autor de “Crises da democracia”

Uma investigação de três institutos de pesquisa húngaros divulgada em meados de dezembro de 2020 mostrou que a pandemia e a crise econômica tiraram parte do apoio de Orbán. Em média, 34% dos eleitores apoiaram a oposição - e 31% preferem Orbán. A união da oposição nas eleições locais em 2019 já fez com que o Fidesz perdesse cidades importantes, como a simbólica capital Budapeste.

“A oposição nunca teve tanta chance de vencer as eleições parlamentares como em 2022”, afirma Halmai, enfatizando, no entanto, que o governo pode mudar leis até lá para prejudicar a concorrência. Halmai cita ainda que a pandemia e a crise econômica dela correntes podem prejudicar os esforços de Orbán se manter no poder. “Sua principal meta é se manter no poder de qualquer forma. E isso significa o uso de ferramentas iliberais antidemocráticas e nacionalistas que ele tem usado nos últimos 10 anos”, diz Gabor Halmai.


A Bielo-Rússia: protestos e fuga de líderes

“Pela terceira vez em 20 anos, os bielorrussos foram honrados com o prêmio Sakharov. Existe motivação melhor para continuar?”, questionou a líder opositora Svetlana Tikhanovskaya, que vive em exílio na Lituânia, ao receber no dia 16 de dezembro o prêmio Sakharov dos direitos humanos, a premiação máxima concedida pela União Europeia.

Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli (centro) fica em pé ao lado de representantes da oposição bielorussa com cartazes das lideranças que venceram o prêmio Sakharov
Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli (centro) fica em pé ao lado de representantes da oposição bielorussa com cartazes das lideranças que venceram o prêmio SakharovOlivier Hoslet/EFE

A Bielo-Rússia está há vários meses paralisada por manifestações opositoras, que não aceitam o resultado das eleições presidenciais realizadas no dia 9 de agosto, que acabara em uma nova reeleição de Alexander Lukashenko.

A UE não reconhece o resultado das eleições e considera que seu governo carece de “legitimidade democrática”. Svetlana Tikhanovskaya lidera um movimento opositor contra Lukashenko. / AFP


Entrevista

Svetlana Tikhanovskaya
Líder opositora

A União Europeia precisa fazer mais pela Bielo-Rússia

Líder opositora Svetlana Tikhanovskaya denuncia abusos do governo Lukashenko em Bruxelas
Líder opositora Svetlana Tikhanovskaya denuncia abusos do governo Lukashenko em BruxelasJohn Thys/AFP

● Qual a estratégia da oposição?

Nossa estratégia é ser um movimento de protestos pacíficos, sem nenhum tipo de violência. Pressionar esse regime por dentro e também por fora. Isso deve ser a base das negociações entre autoridades. Ao menos precisamos do começo da negociação, da soltura de prisioneiros políticos e de eleições justas e transparentes.

● E por que Lukashenko resiste?

Ele está no poder porque ele tem o direito de usar a violência contra sua própria gente. Ele não tem nenhum apoio da sociedade civil, mas tem as Forças Armadas. Mas temos de nos perguntar o que é ter o poder. Ter o poder para um líder é quando as pessoas acreditam em você. Não é o caso da Bielo-Rússia. Ele só exerce o poder pela polícia. Isso é violência, não poder. Nossa visão é uma nova Bielo-Rússia. Não queremos mais viver nesse regime. O fato de muitos estarem presos não diminui a força do movimento.

● Como são as atrocidades cometidas pelo regime?

A polícia tem mostrado um nível de violência muito cruel. Uma das mulheres que protestaram foi a Miss Bielo-Rússia de 2018, Olga Khizhynkova. Ela ficou 42 dias na cadeia e saiu em condições terríveis. A administração da cadeia a colocou na pior cela. Ela ficou com mulheres em situação de rua, bêbadas, que cheiram mal. A cela tinha insetos e não tinha água. Ela dormia sem roupa de cama, no chão. Não tinham sabão. Pessoas com covid foram colocadas em celas para infectar prisioneiros. É horrível o que está acontecendo nas prisões. E as pessoas não se sentem seguras em suas casas. Toda hora a polícia pode aparecer em qualquer apartamento para investigar. Quando eles veem a bandeira vermelha e branca, vão para o apartamento e podem prender alguém.

● O que mais é possível fazer como líder no exílio?

Temos de construir todas essas conexões – e temos tido sucesso em fazer isso, mostrando solidariedade, tentando ajudar a sociedade civil bielo-russa, aceitando pessoas que fugiram do país, com assistência técnica e colocando pressão por novas sanções. Precisamos atingir o regime por esse lado. Não há lei na Bielo-Rússia, por isso pedimos a outros países para investigar os casos de violência e tortura no país com base em suas leis.


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