Internacional

Anis Mili / Reuters

África: um continente, diversos sistemas políticos

Países africanos têm diferenças profundas e desafios ainda maiores

Texto: Thaís Ferraz

07 de janeiro de 2021 | 05h00





No continente africano, cenário multifacetado com avanços e desafios

Na Tanzânia, a reeleição de John Magufuli, responsável por reprimir a democracia emergente; em Guiné, um terceiro mandato para Alpha Condé, embora o país exija que seus presidentes renunciem após dois; no Malawi, a eleição de Lazarus Chakwera após um pleito anulado no ano passado; em Gana, disputa livre entre Nana Akufo-Addo e John Dramani Mahama, terceiro ato de uma forte rivalidade política.

O ano de 2020 foi marcado por eleições importantes em todo o continente africano. No total, 13 países foram às urnas: Togo, Malawi, Guinea, Tanzânia, Costa do Marfim, Burkina Faso, Gana, República Centrafricana, Níger e Seychelles escolheram seus presidentes; Etiópia e Somália tiveram eleições parlamentares. Burundi passou por eleições presidenciais e legislativas.

A complexidade do cenário é prova de que não há um padrão de democracia no continente, o maior em número de países -- 54 -- e que abriga 1,3 bilhão de habitantes. Após uma expansão democrática nas últimas décadas, impulsionada pela introdução de eleições multipartidárias em diversos países, a África tem hoje a democracia como regime mais comum -- 25 países o adotam. Só quatro nações não realizam nenhuma forma de eleição. Por outro lado, muitas dessas democracias passam por estados de fragilidade, e o continente soma 17 regimes híbridos.

DEMOCRACIAS NA ÁFRICA

Em 25 países, o governo é ao menos parcialmente democrático, segundo estudo da Unidade de Inteligência da Economist

“De um modo geral, existem alguns sinais preocupantes em todo o continente em termos do estado da democracia. Vários países caíram em padrões regressivos de negação de direitos políticos aos cidadãos, liberdades civis e outros indicadores gerais”, explica Ziyanda Stuurman, mestre em Conflito, Segurança e Desenvolvimento pela Universidade de Sussex, no Reino Unido, e coordenadora de comunicação do instituto Afrobarometer, que conduz pesquisas sobre o estado da democracia em toda a região.

Enquanto algumas dessas repressões foram feitas sob o pretexto de legislação antiterrorismo, ou como precauções por causa da pandemia covid-19, explica Ziyanda, partidos governantes aproveitaram para impor mais controle sobre as instituições. “O efeito foi o mesmo: menos democracia e menos acesso a processos democráticos em vários países.”

Recentemente, diversos países africanos passaram por mudanças políticas. Em Angola, João Lourenço venceu as eleições de 2017; na Etiópia, Sahle-Work Zewde assumiu o país após a renúncia de Mulatu Teshome, em 2018; na África do Sul, Cyril Ramaphosa ficou com o cargo após Jacob Zuma também renunciar; em 2018, Emmerson Mnangagwa assumiu o Zimbábue.

Sul-africanos celebram 20 anos da democracia no Union Building do governo em Pretória, África do Sul,em 2014.
Sul-africanos celebram 20 anos da democracia no Union Building do governo em Pretória, África do Sul,em 2014.AP

“É certamente positivo que Angola, Etiópia, Sudão e Zimbabué tenham tido mudanças significativas de liderança nos últimos anos, mas o otimismo em torno dessas mudanças deve ser temperado com a constatação de que ainda existem presidentes em vários países que permaneceram no poder por anos por meios não democráticos”, afirma Ziyanda, citando Yoweri Museveni em Uganda, Paul Biya em Camarões, Paul Kagame em Ruanda e Faure Gnassingbé no Togo. “Isso prejudica muitas tendências positivas para a abertura de democracias em todo o continente”.

A tentativa de driblar limites de mandato tem sido comum na África. De acordo com o Centro Africano de Estudos Estratégicos, desde 2015 ao menos treze líderes tentaram estender suas administrações. Gnassingbé, por exemplo, conseguiu estender o controle que sua família exerce desde 1967, e, por meio de uma manobra política, poderá concorrer a um quinto mandato em 2025.

Cenários como esse, também encontrados no Chade, em Ruanda, Burundi e Egito, se tornam possíveis através da manipulação de constituições, que enfraquecem processos de reformas e fortalecem processos de autocratização.

“Este é provavelmente o retrocesso mais significativo na marcha africana em direção à democracia”, afirma Mohammad-Mahmoud Ould Mohamedou, professor de História Internacional no Instituto de Estudos Internacionais e Desenvolvimento de Genebra.“O constitucionalismo  expandiu o multipartidarismo e reduziu as restrições institucionais ao avanço democrático; mas as próximas fases precisavam de um segundo e um terceiro momento dessa democracia constitucional rotinizada”, explica. “Por outro lado, o patrimonialismo foi, desde a independência, a principal técnica - além da repressão - por meio da qual os regimes de partido único haviam dominado os países. E isso naturalmente foi incorporado em primeiro lugar na extensão regular dos mandatos presidenciais”.

Isso não quer dizer que países não tenham passado por mudanças significativas. A Tunísia é um bom exemplo.

Professor explica funcionamento da democracia na África
Professor explica funcionamento da democracia na ÁfricaInstituto de Estudos Internacionais e Desenvolvimento de Genebra

Único país da Primavera Árabe a de fato conseguir negociar ganhos democráticos, ela se destaca no Norte da África. A Constituição de 2014, elaborada a partir de diversos atores, busca garantir liberdade de expressão e participação popular na tomada de decisões -- processo muito diferente do Egito, que também passou pelas revoluções e vive um aprofundamento da autocratização após o golpe do então ministro da Defesa, Abdel Fattah al Sisi, contra o presidente Mohamed Morsi.

Na África Ocidental, região onde a maioria das constituições foi escrita por regimes militares ou autoritários, Gâmbia, Guiné-Bissau e Nigéria fizeram avanços importantes.  Burkina Faso e Costa do Marfim têm novamente governos civis e revisam emendas constitucionais.

Um desafio à democracia em alguns países do continente é a dificuldade de se promover eleições livres, o que pode acontecer quando as instituições eleitorais não são independentes do Executivo, como no Burundi, ou quando conflitos e guerra civil entram em cena - revertendo vitórias ou trazendo regimes militares ao poder.  A maioria das eleições africanas em 2020 foi realizada em países que enfrentam ou emergem de conflitos.

Avanços e desafios

Dados de uma pesquisa realizada pelo Afrobarometer em 18 países, divulgados em dezembro de 2020, indicam que 54% dos africanos veem a mídia digital como tendo um efeito positivo na sociedade. Para Ziyanda, o número é animador. “O uso das mídias sociais e o crescente reconhecimento de que a liberdade da mídia é importante para o crescimento da democracia são um dos maiores avanços em todo o continente”, afirma.

O uso das mídias sociais e o crescente reconhecimento de que a liberdade da mídia é importante para o crescimento da democracia são um dos maiores avanços em todo o continente

Ziyanda Stuurman, coordenadora de comunicação do instituto Afrobarometer

Mohamedou segue uma linha parecida. Para ele, o maior avanço é o mindset da nova geração. “Ela vê a democracia como um dado e não vai desistir mesmo em face de um autoritarismo reafirmado”, explica. “O impulso de democratização iniciado no final dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990 diminuiu, mas o movimento geral em direção à liberalização política permanece tangível. Uma nova geração foi levantada - e de fato se ergueu - sob a bandeira da abertura política, ou melhor, da inaceitabilidade de traços autoritários”.

Os desafios, no entanto, persistem. Para Ziyanda, residem principalmente em questões de imigração, xenofobia e movimento transfronteiriço. “Vemos isso acontecer em todo o mundo, incluindo nos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump em 2017; no Reino Unido com o movimento Brexit, e até mesmo em vários países africanos com fortes tradições democráticas, incluindo África do Sul e Nigéria”, explica. “Com a instabilidade surgindo em vários países como Mali e Etiópia nos últimos meses, e as dificuldades trazidas pela pandemia, é provável que este seja um problema contínuo nos próximos anos”.

Eleitores fazem fila para votar antes do fechamento das urnas em Joanesburgo, África do Sul, em 8 de maio de 2019Mike Hutchings / Reuters

Para Mohamedou, falta ressonância internacional para os esforços democratizantes em jogo. “Os importantes esforços pós-Primavera Árabe da Tunísia não testemunharam nenhum apoio econômico ocidental quando este era crucialmente necessário -- ao contrário da ajuda que a Europa Oriental recebeu no momento pós-União Soviética no início dos anos 1990 ou, na verdade, o Plano Marshall para a Europa Ocidental décadas atrás”, diz.  “Esses esforços individuais são difíceis de manter em uma era globalizada e se os países também enfrentam o desafio do desenvolvimento econômico”.


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