Os críticos do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, costumam lembrar de uma frase dita por ele em um comício no início de sua carreira: “A democracia é como um trem, você desce quando chega ao seu destino”. Para analistas sobre o país, após quase 20 anos imprimindo sua marca na política turca com seu partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), Erdogan não apenas desceu do trem, mas o trocou por uma locomotiva rumo ao autoritarismo.
O combustível com o qual Erdogan alimentou sua viagem autoritária foi uma denúncia de corrupção, que ele disse ser uma tentativa de golpe. A pesquisadora turca independente Begum Burak reconhece que Erdogan deu passos importantes para democratizar as relações civis-militares e entre Estado e religião. Em dezembro de 2013, porém, um escândalo de corrupção envolvendo mais de 60 membros do governo, um filho de Erdogan e um magnata da construção, mudou tudo.
Erdogan sempre foi um clandestino no trem da democracia”
O caso perseguiu o governo por meses, até ser rejeitado pela Promotoria em maio de 2014. A partir disso, segundo Burak, teve início um processo de enfraquecimento da democracia para que Erdogan se mantivesse no poder. “Em vez de investigar as denúncias de corrupção, o governo encobriu o evento e depois puniu os funcionários e os jornalistas que trataram do assunto”, lembra Burak.
Após a tentativa de golpe militar de 2016, que deixou 265 mortos, Ancara culpou pelo levante o Movimento Hizmet, um antigo aliado, passou a tratá-lo como organização terrorista e lançou um amplo expurgo contra ele. Segundo a agência de notícias EFE, até agora, as ondas de expurgos deixaram mais de 125 mil funcionários públicos e 6 mil acadêmicos desempregados, 204 meios de comunicação fechados e cerca de 234,4 mil passaportes cancelados. Um balanço apresentado na terça-feira pelo ministro da Defesa, Hulusi Akar, revela que 23.364 soldados foram expulsos do Exército.
No total, quase 300 mil pessoas foram presas em dezenas de milhares de operações policiais nos últimos cinco anos, enquanto 289 mil processos judiciais foram abertos. Em 288 mil deles, cerca de 3 mil pessoas pegaram perpétua e outras 4.189 estão cumprindo outras penas de prisão.
Em sua biografia sobre Erdogan (The New Sultan: Erdogan and the Crisis of Modern Turkey), Soner Cagaptay escreve que, ao demonizar e reprimir eleitores que provavelmente não votariam nele, o presidente agravou a polarização no país entre uma coalizão nacionalista de direita que acredita que a Turquia é o paraíso; e um grupo de esquerdistas, secularistas, liberais e curdos que se veem em um inferno. “Erdogan é o arquétipo dos políticos antielitistas, nacionalistas e conservadores em ascensão ao redor do mundo.”
Nem sempre foi assim. É inegável o papel transformador de Erdogan na Turquia nas últimas décadas. Em seus livros, Cagaptay diz que o presidente é um líder fundamental na história do país, ganhando mais de uma dúzia de eleições nacionais desde 2002, principalmente por apresentar forte crescimento econômico, aumentar o ganho das pessoas e melhorar os serviços sociais.
Seguindo a analogia do trem, em 2013 Erdogan chegou à estação que desembarcaria. Então primeiro-ministro da Turquia, seu governo comandou uma dura repressão aos protestos contra o estilo autoritário com o qual ele flertava, que começaram em maio daquele ano na Praça Taksim e se alastraram pelo país.
Os protestos foram desencadeados por um projeto arquitetônico em Gezi Park, uma pequena área verde na Praça Taksim, em Istambul. Ali, Erdogan queria reconstruir um quartel otomano que havia sido demolido em 1940, um shopping center e uma grande mesquita. Depois de oito anos e uma batalha cultural, a Praça Taksim tem hoje uma nova identidade.
Mas não foi só a praça que mudou. Segundo um estudo do Instituto Brookings (The rise and fall of liberal democracy in Turkey: Implications for the West), ainda que seja difícil determinar uma data exata em que o autoritarismo de Erdogan ficou evidente, a brutal reação aos protestos espontâneos foi um crítico divisor de águas.
De lá para cá, aponta, as promessas iniciais de reforma deram lugar a políticas autoritárias e disfuncionais. As conquistas econômicas e democráticas dos primeiros anos do governo – um modelo admirado por países vizinhos que viveram a Primavera Árabe – diminuíram, a perseguição à imprensa, ao Judiciário e até mesmo a outros partidos políticos aumentaram e o crescimento econômico estagnou.
Segundo seus críticos, à medida que foi acumulando poder, ele foi se tornando intolerante e se afastando do Ocidente. O processo de adesão à União Europeia que ganhou fôlego nos primeiros anos de Erdogan paralisou e as relações com vizinhos e aliados tornaram-se mais azedas.
Manifestação de apoio a Erdogan na cidade de Tirana, capital da AlbâniaArben Celi/Reuters
Na opinião do analista britânico Gareth Jenkins, do Instituto Cáucaso-Ásia Central (Istambul), os protestos de Gezi Park chamaram a atenção do mundo para a natureza do governo AKP, mas para ele, os abusos começaram após as eleições de julho de 2007, quando o partido conquistou uma vitória arrasadora. “(Naquele momento) Erdogan finalmente entendeu que não apenas estava no cargo, mas no poder”, diz Jenkins, que vive em Istambul desde 1989 e acompanhou de perto a ascensão do líder turco, entrevistando-o em várias ocasiões. “Erdogan sempre foi um clandestino no trem da democracia, fingindo ser um passageiro pagante e esperando até achar que era seguro descer.”
No ano seguinte aos protestos de Taksim, após 11 anos como primeiro-ministro, Erdogan apresentou-se como candidato à primeira eleição presidencial direta da Turquia e articulou uma agenda para mudar o sistema no país para presidencialismo. Erdogan foi eleito e depois reeleito em 2018 e a posição cerimonial do presidente passou a ter os maiores poderes da república.
“Posso dizer que, desde a transição para o regime presidencialista, sem o mecanismo de freios e contrapesos, a Turquia está agora sob o ‘regime de um homem só’ e isso é uma ameaça à democracia liberal”, afirma Burak.
A tentativa de golpe militar – que na quinta-feira completou cinco anos – foi crucial para consolidar o poder do presidente. O governo rapidamente atribuiu a ação a oficiais e civis associados a Fethullah Gulen, líder espiritual e religioso do movimento transnacional Hizmet. Exilado nos EUA desde 1999, Gulen rechaçou as acusações.
Em artigo sobre os cinco anos da tentativa de golpe, o chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, afirma que membros da organização foram sujeitos a lavagem cerebral. “A Feto, uma organização terrorista secreta que se infiltrou nos órgãos do Estado, tentou destruir a democracia e derrubar o governo democraticamente eleito pela força”, afirmou, se referindo ao Movimento Hizmet.
Gulen foi inicialmente aliado do AKP – os dois compartilhavam a oposição à ideologia Kemalista que, entre outras definições, instituía o secularismo na Turquia. De origem pobre e islâmico devoto, Erdogan era um reflexo de uma parcela importante da população religiosa descontente com o movimento que proibia a associação entre religião e o exercício político. Quando ainda era prefeito de Istambul, Erdogan chegou a ser preso por recitar um poema islâmico.
Após um esforço conjunto bem-sucedido para fortalecer a agenda islâmica no país, o Movimento Gulenista (Hizmet) e o AKP romperam. Hoje, segundo Jenkins, o Movimento Gulenista (Hizmet) serve ao propósito de Erdogan de ter um eterno inimigo. “O Movimento Gulenista é um bode expiatório conveniente para todas as falhas de seu regime”, afirma Jenkins.
O que temos hoje na Turquia é uma democracia autoritária”
A perseguição ao movimento não poupou os turcos que vivem no Brasil, um deles é Mustafa Goktepe, empresário e presidente do Instituto pelo Diálogo Intercultural (antigo Centro Cultural Brasil-Turquia), ligado ao Hizmet. Ele e seu sócio Ali Sipahi foram alvos de um pedido de extradição de Ancara em 2019 sob a acusação de financiarem o terrorismo. Sipahi passou 34 dias na prisão. Para evitar o mesmo destino, Goktepe ficou nos EUA, onde estava em viagem, até o Supremo Tribunal Federal negar o pedido de extradição de Sipahi, em agosto daquele ano.
“Moro aqui há 17 anos, sou muçulmano praticante e na Turquia, pessoas como eu estavam cansadas das várias imposições que não representavam nossa cultura. Erdogan veio como um salva-vidas, despertando grande ânimo nas pessoas, incluindo eu. Mas as coisas mudaram, ele mudou também. Não foi de um dia para o outro. A gente não percebeu”, conta Goktepe, que agora não pode visitar a família na Turquia e se entristece por não ter podido se despedir, nem cuidar do enterro do pai no ano passado. “O que temos hoje na Turquia é uma democracia autoritária.”
Entrevista
Fethullah Gulen, clérigo muçulmano líder do Movimento Hizmet
Exilado e recluso nos EUA, o clérigo muçulmano moderado Fethullah Gülen, líder do Movimento Hizmet, afirma que seu apoio no início do governo de Recep Tayyip Erdogan nunca foi incondicional e os dois se afastaram depois que o presidente começou a estabelecer o 'regime de um homem só'.
Manifestantes reunidos em Gezi Park, em Istambul Bulent Kilic/AFP
Renata Tranches
Não somos a principal oposição ao AKP hoje, como não éramos os únicos a apoiar o partido quando ele surgiu com promessas de democracia, liberdade e justiça. Naquele primeiro período, o AKP recebeu apoio de muitos segmentos da sociedade na Turquia, de curdos a liberais, de minorias religiosas e até de alguns esquerdistas. Havia muitos apoiadores no exterior também, estadistas e parlamentares na Europa e na América. Muitos pensaram que deveriam dar uma chance ao AKP. O apoio do Movimento Hizmet ao partido nunca foi incondicional. Pelo contrário, era claramente condicionado. Esses termos e condições visavam a combater a corrupção, a pobreza e as proibições, fortalecer a democracia na Turquia, desenvolver as liberdades e lutar pela adesão da Turquia à União Europeia, conforme o AKP havia prometido em seu surgimento.
Em troca do nosso apoio, não lhes pedimos cargos no governo ou cadeiras no Parlamento. Paramos de apoiá-los quando deixaram para trás esses princípios e seguiram na direção do governo de um homem só. Nossa união temporária, se pode ser chamada de união, poderia ter continuado se eles mantivessem sua palavra sobre democracia, justiça e direitos humanos. Já que, se eles tivessem se mantido fiéis às suas promessas, os problemas vividos hoje não teriam acontecido, talvez a Turquia tivesse entrado para a União Europeia, desenvolvido a sua democracia e se tornado um país que todos apontariam como exemplo.
Talvez Erdogan tivesse essa intenção desde o início, mas não podemos afirmar isso, já que não sabemos o que se passa na mente das outras pessoas. Nós acreditamos em suas palavras e nas daqueles ao seu redor, que falavam em democracia. Mas testemunhamos que ele não cumpriu suas promessas e, depois de um tempo, liquidou as pessoas mais razoáveis ao seu redor e estabeleceu o poder de um homem só. De certa forma, isso pode ser visto como um envenenamento pelo poder. Por outro lado, a corrupção, na qual depois percebemos que Erdogan e seus parentes estavam envolvidos, obrigou-o a escolher entre a democracia e o autoritarismo. Em um Estado de direito democrático, ele teria de responder por sua corrupção. Mas, em vez de prestar contas, ele preferiu derrubar a democracia e a ordem jurídica e estabelecer um regime de um homem só. Enquanto ele fazia isso, grande parte da sociedade ficou em silêncio. Por trás desse silêncio, devemos perceber as atrocidades cometidas pelo Estado aos praticantes da religião em períodos anteriores, além da não assimilação da cultura da democracia.
Parece difícil para a Turquia restaurar sua democracia destruída no curto prazo. Para que isso ocorra, os cidadãos precisam desenvolver sua consciência democrática e acabar, por meios democráticos, com a opressão. Os aliados da União Europeia, OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) e Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), aos quais a Turquia está vinculada por acordos, também precisam apoiar o povo turco, insistindo no cumprimento dos requisitos desses pactos pelo Estado da Turquia. Não sei se isso vai acontecer ou não, mas eu nunca perdi as esperanças em Deus, O Todo-Poderoso. Espero que as mudanças aconteçam logo.
Presidente desfruta de popularidade de 91% após usar violência policial contra traficantes e desmonta instituições do país
Rodrigo Turrer
Antes de se tornar presidente das Filipinas, em 2016, Rodrigo Duterte era idolatrado em Davao, uma cidade costeira na ilha de Mindanao, no sul das Filipinas, que ele governou por quase 20 anos. Ali, as pessoas até hoje chamam Duterte de “nosso prefeito” ao contar seus feitos. Certa vez, quando um turista ignorou as regras de proibição de fumar, dizem os moradores, “nosso prefeito” invadiu um restaurante com um revólver e o obrigou a comer a bituca do cigarro. “Nosso prefeito patrulhou as ruas em sua motocicleta e nos salvou de bandidos”, dizem seus fãs.
A fama de valentão e homem-forte que resolve na unha todos os problemas impulsionaram sua candidatura. Ao chegar à presidência, Duterte fez o que prometeu: “acabar com as drogas no país custe o que custar”. Ex-promotor, profundo conhecedor das leis, estabeleceu um culto à morte como plano de governo. “Esses filhos da puta estão destruindo nossos filhos. Não mexam com drogas, mesmo que sejam policiais, porque vou matar todos…”, foi uma das primeiras frases que disse como presidente.
Não foi da boca para fora. Em poucos meses no cargo, Duterte deu poderes nunca antes vistos às polícias locais e às forças de segurança do país para eliminar traficantes e usuários de drogas. Criou leis e decretos que minaram os mecanismos de controle da violência policial. Estimulou, com palavras e ações, extermínios e prisões extrajudiciais. O resultado: 8 mil oficialmente mortos pelas mãos da polícia em 4 anos, quase dez vezes mais do que em período anterior. Defensores dos Direitos Humanos e agências independentes falam em até 30 mil mortos.
Ninguém pode dizer que Duterte descumpriu sua promessa. Ele fez exatamente o que dizia com sua guerra à criminalidade, e conseguiu que sua popularidade disparasse. Aí começaram as ameaças maiores à democracia filipina.
Não mexam com drogas, mesmo que sejam policiais, porque vou matar todos”
“A popularidade alta e os bons resultados eleitorais tiraram qualquer freio que Duterte tivesse”, afirma ao Estadão Richard Javad Heydarian, cientista político, professor na Universidade Ateneo de Manila e autor de The Rise of Duterte: A Populist Revolt Against Elite Democracy (A ascensão de Duterte: uma revolta populista contra as elites da democracia). “Ele então começou a usar tudo que tivesse ao seu alcance para manter sua popularidade alta e tirar do caminho os adversários políticos”.
Duterte autorizou a Polícia Nacional das Filipinas a liderar sua “guerra contra as drogas”. O resultado da retórica do presidente é a cultura da impunidade na polícia. Os esforços de décadas para institucionalizar o controle democrático sobre as forças de segurança foram sendo minados. O combate à criminalidade foi usado como desculpa por Duterte para adotar medidas autoritárias. O crescente poder dos militares é ainda mais legitimado por legislações como a Lei Antiterror, que legaliza a detenção sem acusação por 14 dias e dá ao governo margem para prender críticos acusados de "criar um sério risco para a segurança pública".
No auge da pandemia, Duterte registrou um índice de aprovação de 91%. A grande maioria dos filipinos apoia a resposta do governo à pandemia e à criminalidade. Para Nicole Curato, cientista política e professora do Centro para Democracia e Governança Global da Universidade de Canberra, a satisfação do público dá legitimidade ao projeto autoritário de Duterte. “A oposição do Senado não ganhou um único assento nas eleições de meio de mandato. A Suprema Corte está loteada por nomeados de Duterte. A mídia está enfrentando restrições cada vez maiores. Há cada vez menos obstáculos para Duterte impôr práticas autoritárias”, afirma.
Duterte recorre a outros métodos bem estabelecidos na caixa de ferramentas do homem-forte moderno: usa as redes sociais para manchar os oponentes, com um exército de trolls e robôs para atacar qualquer um que o critique publicamente -- um movimento que serve para intimidar aqueles que ainda não falaram. Em 2018, quando Marites Vitug, uma jornalista investigativa filipina, publicou um livro que criticava o abandono de Duterte da reivindicação filipina de um território em disputa com a China, ela foi atacada nas redes sociais, e a principal rede de livrarias do país se recusou a colocar o livro à venda, por medo de retaliação do presidente.
O líder filipino tomou outras medidas autocráticas, como usar o judiciário para amordaçar a imprensa e adversários políticos: No ano passado, Maria Ressa, editora do site de notícias investigativas independentes Rappler, foi indiciada por evasão fiscal. Leila de Lima, deputada do Senado que acusou Duterte por homicídios extrajudiciais, completou o milésimo dia de prisão, tendo sido condenada por “aceitar subornos de traficantes”, uma acusação considerada forjada pela maioria dos analistas.
Duterte está usando as leis para intimidar qualquer um que o desafie. Em 2018, juristas alertaram que Duterte "reinventou a lei" quando emitiu uma proclamação na tentativa de "anular" a anistia parlamentar do senador Antonio Trillanes para colocar o legislador atrás das grades.Duterte e o procurador-geral José Calida usaram leis que limitam a propriedade estrangeira para localizar o site investigativo Rappler, da jornalista Maria Ressa, após reportagens críticas sobre seu governo.
O presidente filipino também fala publicamente sobre “sequestro” e “tortura” de funcionários da Comissão de Auditoria (COA), uma agência que monitora como o governo gasta fundos públicos. Ele ridicularizou a Comissão de Direitos Humanos, um órgão independente encarregado de investigar os abusos cometidos por forças governamentais. E quando a presidente da Suprema Corte, Maria Lourdes Sereno, expressou preocupação de que Duterte possa ter colocado juízes na sua lista de aliados do tráfico, um Duterte indignado pediu ao Congresso que acelerasse seu impeachment e a declarou sua "inimiga". Sereno acabou sendo expulsa por seus companheiros juízes da Suprema Corte, algo inédito e que os observadores dizem que não teria acontecido se Duterte não tivesse sido hostil com ela.
“Uma nação em guerra justifica práticas autoritárias, pois o devido processo legal é lento e os protestos de liberais progressistas atrapalham a ordem do dia do presidente”, afirma ao Estadão o cientista político Richard Heydarian. “A política e a retórica da guerra às drogas têm vastas implicações. Eles criam instituições democráticas frágeis que são sujeitas a abusos”.
Analistas veem na força da personalidade de Duterte a razão de sua popularidade. O sociólogo e autor Walden Bello, importante crítico de Duterte, escreveu em uma coluna em fevereiro que “a figura carismática pode escapar impune de qualquer coisa, até mesmo de assassinato”. Bello se referia aos milhares de mortos na guerra às drogas, sobre os quais Duterte nunca dá sinais de piedade. “As pessoas estão cientes das mortes, mas, ao mesmo tempo, sentem que Duterte eliminou os criminosos”, disse Bello. “Os bandidos, os meninos da esquina, não estão mais lá. As mulheres podem andar nas ruas com segurança. Não sei se suas vidas estão realmente melhores do que antes, mas a percepção é de que estão. Eles são pró-Duterte porque sentem que ele limpou o lugar.”
Duterte caminha com integrantes de grupo de esquerda em Davao, em 2016Keith Bacongco/REUTERS
O desgaste sofrido pela democracia liberal em muitos países também cumpriu seu papel nas Filipinas. Após o fim da ditadura de Ferdinando Marcos, em 1986, e a vitória do movimento político Poder Popular, que uniu o país pelo fim da ditadura, a sucessão de presidentes não conseguiu garantir estabilidade democrática ao país. “Em termos de corrupção, os governos pós-Poder Popular eram iguais aos do regime de Marcos. A única diferença era a retórica dos direitos humanos e da democracia, que as pessoas cada vez mais percebiam como uma farsa”, afirma Jayson Lamchek, ex-advogado nas Filipinas que agora é pesquisador do Asia-Pacific College of Diplomacy na Austrália. “Não é surpresa que tantos filipinos parecem dispostos a desperdiçar o espírito de 1986, amaldiçoar os direitos humanos e a democracia como inúteis e recorrer a um homem forte para mudar as coisas”.
O grande teste para a democracia filipina ocorrerá em 2022, nas eleições para presidente. Com 15 candidatos na disputa do primeiro turno, Duterte lidera as pesquisas com 28% das intenções de voto, ante 14% do prefeito de Manilla, Isko Moreno, com 14%, e do senador Ferdinand ‘BongBong’, com 13%. “Há uma profunda desilusão com a democracia liberal nas Filipinas, que Duterte não criou, mas incentiva”, afirma Lamchek. “A dúvida é se os anos de Duterte no poder vão deteriorar um pouco sua credibilidade ou a sensação de que a elite liberal é toda corrupta vai favorecê-lo”.
Entrevista
Moisés Naim, escritor venezuelano
Para o escritor venezuelano Moisés Naim, o mundo assiste a um ataque ao sistema de freios e contrapesos do Estado moderno.
Rodrigo Turrer
Demais. No século 21, o poder ficou mais fácil de adquirir, mas mais difícil de usar, e mais fácil de perder. Há uma série de forças centrífugas que espalham o poder: grandes corporações, mídias sociais, novas tecnologias. O embate entre as forças centrífugas, que espalham poder, e as forças centrípetas, que concentram poder, é uma dinâmica central no mundo. Você pode ver que onde o poder importa, esse duelo entre as forças que diluem e as forças que concentram é constante. .
É preciso ter cuidado, porque a maioria dessas questões sempre existiu sem criar os problemas que temos na magnitude que temos hoje. Populismo sempre existiu, populistas existem há tempos imemoriais, demagogos que mentem para seu povo e prometem coisas que não podem ser cumpridas. Polarização é um componente natural da sociedade. Você tem pessoas com visões distintas que duelam com diferentes pontos de vista. Mas a polarização é como colesterol: tem o bom e o ruim. É bom que sociedades tenham visões discordantes de grupos e segmentos de interesse e que compitam em favor dos eleitores e ganhe poder. Isso é saudável, que grupos polarizados tenham poder. O ruim é que a polarização deixou de ser democrática e âncora da globalização para uma polarização tóxica, que impede o debate, que é paralisante, impede a sociedade de funcionar e o governo de funcionar. Me mostre uma democracia no mundo hoje, e eu te mostro uma sociedade altamente polarizada. Essa é a novidade.
Bom, são vários fatores. As novas tecnologias, notadamente as mídias sociais. A pandemia agravou muito a situação, mas há outros fatores. Em países em desenvolvimento, especialmente na América Latina, houve um boom de commodities que criou uma benevolência econômica, quase um boom economico. Então isso acabou, veio uma crise econômica e uma crise financeira seguida por uma pandemia, e a América Latina acabou sofrendo os efeitos dessa parada. Então ficou-se numa situação muito ruim e ficou impossível não culpar quem está no governo pela péssima situação. E aí temos um outro fenômeno que sempre existiu, que antigamente chamava-se propaganda e agora chamam de “pós-verdade”. É essa noção de que tudo é relativo, que não há verdadeiro ou falso, nada pode ser definitivo, as fake news e tudo mais. É uma combinação de tudo isso, chacoalhado. Mas o boom de commodities da América Latina criou a maior classe média da história da América Latina. Nunca houve tantas pessoas de classe média na América Latina. São essas pessoas que estão reagindo agora, indo às ruas, que aprenderam o que é ser de classe média e estão lutando com tudo que podem para não voltar à pobreza.
Me mostre uma democracia no mundo hoje, e eu te mostro uma sociedade altamente polarizada”
Nem todas. Me recuso a imaginar que a democracia escandinava esteja em risco. Eles têm uma espécie de imunidade cultural a esse tipo de crescimento populista. Você tem de um lado os suecos, dinamarqueses. No outro extremo temos México, Argentina, Brasil, e ainda mais extremos como Mianmar. As democracias têm sido desafiadas seriamente em todo o planeta, mas alguns países têm mais imunidade do que outros..
Você precisa escolher entre ser alarmista e ser complacente. São dois perigos iguais: você corre o risco de o céu estar caindo sobre sua cabeça e as democracias estarem em perigo e você estar sendo alarmista ou ser complacente e dizer: ‘isso já aconteceu no passado e demos conta, está tudo ok’. Eu prefiro cometer o erro de ser alarmista do que de ser um analista complacente que minimize o que está acontecendo.
Há várias coisas. A primeira é recuperar a narrativa do que é uma sociedade liberal. As forças que estão levando a cabo sua guerra contra os sistemas de freios e contrapesos têm uma história para contar: a narrativa que mina a confiança e a credibilidade da narrativa de liberal e os valores das democracias no mundo, liberdade, justiça para todos. Os liberais estão perdendo a narrativa e deixando haver confusão sobre a importância da democracia. Isso tem a ver com a pós-verdade, mídias sociais, fake news. É preciso retomar essa narrativa. A segunda é a guerra pela legitimidade, que é o ativo político mais escasso do mundo. Por isso ditadores organizam eleições e fazem campanhas, mesmo que fajutas. Quando Maduro faz uma eleição na Venezuela, ninguém acredita que aquele processo seja honesto, pois sabem que aquilo é manipulado. Mas eles precisam da narrativa para sustentar sua legitimidade. A legitimidade pode vir da narrativa ou da performance. Um líder que entrega o que promete, que alcança os objetivos e mostra para a sociedade, tem mais legitimidade do que aquele que apenas promete.
Eu lembro que eu e muitos dos meus colegas nunca acreditamos que o próximo passo aconteceria, ele sempre acontecia. Uma das primeiras coisas que Chávez fez foi mudar a Constituição. Em teoria, era para criar igualdade, combater a pobreza, era bom pras pessoas, tudo que poderia haver de bom estaria na nova Constituição. Mas de fato aquela constituição concentrava poder nas mãos de Chávez. E ninguém prestou atenção naquilo, houve uma enorme abstenção, mas Chávez conseguiu aprovar sua nova Constituição. Ali ele ganhou a alavancagem que precisava, e a primeira coisa que fez foi mudar a suprema corte. E o que ele conseguiu foi lotear a Suprema Corte com pessoas que ele indicou, que trabalharam para ele, e apontou os magistrados da Suprema Corte. A outra foi alterar a noção de que não se poderia politizar a indústria do petróleo. Não se pode colocar as mãos na galinha dos ovos de ouro, deixe a PDVSA a boa companhia que sempre foi, era a sexta empresa entre as maiores empresas de óleo do mundo em termos de eficiência e governança. Ele destruiu a indústria de petróleo, ignorou e destruiu a PDVSA, um dia foi à televisão e demitiu todos os administradores da PDVSA, que eram brilhantes, gente que teve de fugir do país e arranjou emprego rapidamente em grandes companhias de petróleo do mundo. Foram muitos pequenos passos, alguns brutais e visíveis, e outros bem mascarados e difíceis de identificar mas péssimos para a democracia venezuelana.
Muito depende da próxima eleição presidencial brasileira no ano que vem, e vamos ver um duelo de titãs entre Bolsonaro e Lula. Essa parece ser a tendência. Mas acho que o principal a se observar é como estão os sistemas de freios e contrapesos na sociedade brasileira. Isso é determinante para saber o que vai acontecer com o país.
Expediente
Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Editor de Internacional Cristiano Dias / Designer multimídia Vitor Fontes / Reportagem:Renata Tranches e Rodrigo Turrer / Edição de texto: Angela Perez, Renata Tranches e Rodrigo Turrer