A globalização do protesto

Para socióloga, os levantes que vêm pipocando pelo mundo nascem sob a lógica universal da exclusão

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Entrevista: Saskia Sassen

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SOCIÓLOGA DA UNIVERSIDADE COLÚMBIA, AUTORA DE 'SOCIOLOGIA DA GLOBALIZAÇÃO'

 

Londres pôs 16 mil policiais nas ruas para tentar conter o incêndio de carros e prédios que vinha consumindo a cidade desde o começo da semana, depois da morte de um jovem negro nas mãos da polícia. No mesmo dia em que a face pobre da Grã-Bretanha saiu dos guetos para dar a cara a tapa, 200 mil manifestantes cobriram as ruas de Tel-Aviv a fim de exigir aluguéis mais baixos e escolas gratuitas para seus filhos. "Isto é o Egito", cantaram os israelenses, ecoando a já emblemática Praça Tahrir, no Cairo. Na terça-feira, e pela segunda vez na semana, cerca de 100 mil estudantes chilenos foram bater panela nas calles de Santiago, dessa vez ao lado dos pais, para exigir reformas na educação.

 

Com um olhar atento sobre todos esses fenômenos, Saskia Sassen, socióloga holandesa naturalizada americana e uma das principais teóricas da globalização, revê a numeralha da semana e dá seu parecer: "Chegamos a um tipping point". O que ela quer dizer com isso é que o mundo alcançou um ponto crítico, decisivo. E sugere que todos os eventos descritos acima estão de alguma maneira relacionados à lógica excludente da globalização. É possível ainda somar a eles a contagem semanal de manifestantes mortos nas ruas árabes e os 12 milhões de pessoas que sofrem de fome crônica no Chifre da África. "Ao longo de 30 anos houve perda de renda de metade da população mundial e tamanha concentração no topo que simplesmente chegamos ao limite. É a explosão disso que estamos vendo agora nas nossas cidades."

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Saskia dá aula na Universidade Colúmbia, em Nova York, e é autora de Sociologia da Globalização (Artmed) e Global City (Princeton University Press), entre outros. Nesta entrevista ao Aliás, a socióloga põe em perspectiva a miríade de protestos que pipocou só neste ano; e explica por que os americanos, que perderam suas casas com a crise e hoje moram em tendas, também não se revoltam. "A classe média americana está em choque." Por fim, Saskia acrescenta que é preciso abandonar velhos paradigmas e atentar para o fato de que nos últimos anos o mundo testemunhou o nascimento de uma nova classe de atores históricos, e eles tomaram as ruas.

 

Um aspecto comum às manifestações é a presença marcante de jovens rostos insatisfeitos. Que novas narrativas da globalização essa geração ‘desobediente’ está escrevendo nas ruas de Londres, Damasco, Cairo, Atenas, Benghazi, Madri, Tel-Aviv, Santiago?

 

É mesmo impressionante a quantidade de manifestações de rua. A economia roubou desses jovens um futuro razoável e o sistema político roubou-lhes a voz política, a capacidade de serem ouvidos. A rua se tornou, portanto, o espaço para a política daqueles que não têm acesso aos instrumentos formais. O fio condutor que, a meu ver, une todas essas manifestações é uma estrutura de luta social. Quero dizer com isso que esses levantes não são só políticos, nem visam apenas a mudanças de regime, como um cientista político poderia sugerir.

 

Em Tel-Aviv, as pessoas arrastaram sofás para o meio-fio a fim de protestar. No Cairo e em Madri, acamparam nas praças. Em Atenas, vandalizaram a infraestrutura da cidade e em Londres a queimaram. O que está por trás dessas intervenções no cenário urbano?

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Em certa medida, os manifestantes fazem parte do contexto de lutas contra a especulação imobiliária dos anos 80, que resultaram na expulsão dos moradores tradicionais de áreas da cidade. Em um plano mais amplo, são lutas pelo direito à cidade. Manifestações de rua fazem parte de nossa história. Os levantes no mundo árabe, as revoltas em bairros da China, os piqueteiros batendo panelas na América Latina - são todos veículos de reivindicação social e política. Pela primeira vez estão marchando em Tel-Aviv, não para derrubar o governo, mas para pedir acesso a moradia, emprego. Esses movimentos buscam participação no poder, não só protestar contra ele.

 

As manifestações parecem distanciadas da política partidária tradicional. Elas se concretizam nas ruas, com líderes surgidos no Facebook. É o próprio establishment político que está sendo questionado?

 

Há um limite para o tanto de renovação que o establishment político pode fazer. Mas um objetivo fundamental deve ser garantir que os menos favorecidos se sintam ouvidos. Sem voz política, os instrumentos de comunicação de que dispõem podem facilmente levar ao tumulto. Vivemos numa situação de extremos. Temos uma vasta fome em partes do mundo, ao passo que temos também jovens com educação que não estão aceitando o fato de que terão uma vida pior que a dos pais. Isso me faz crer que chegamos a um tipping point, um momento de mudança.

 

E o que nos levou a esse ponto?

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A era global empobreceu a classe média e agravou a situação dos pobres. Ao longo de 30 anos houve perda de renda de metade da população mundial e tamanha concentração de riqueza no topo que simplesmente chegamos ao limite. É a explosão disso que estamos vendo em nossas cidades.

 

Esse empobrecimento da classe média seria o pano de fundo desses levantes?

 

Sim, um fator é precisamente a decadência estrutural de uma classe média em alguns lugares, como em Sanaa, Cairo, ou Tel-Aviv. Em Buenos Aires, por exemplo, foram as pessoas de classe média que perderam tudo na recessão de 2001, e hoje muitas são garis. Houve uma época - aquela da produção em massa, dos sindicatos fortes, da urbanização acelerada - em que a classe média era o agente histórico. Não é mais. Ela perdeu espaço e está dividida entre os top 20%, que se tornaram ricos e são um grupo rarefeito de profissionais de alto nível (gerentes, artistas, etc) que nem sequer se identificam mais com a classe média, e o restante empobrecido, que está perdendo espaço e voz política.

 

Se a classe média não é mais o agente histórico, quem veio para substituí-la?

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Penso que hoje temos dois agentes históricos que não são a burguesia nem o proletariado, mas mantêm uma relação de parentesco com eles. Um deles é o capital global, complexo e esquivo, que consiste na união das classes altas, que controlam o poder, com a tecnologia. Aquilo que chamávamos de burguesia no século 18 e 19 também consistia de um componente humano somado a um aparato técnico controlado por ele, as máquinas. A burguesia não existe mais. Ainda há burgueses, mas o que eu quero dizer é que eles não são mais agentes da história. O outro ator é um pouco mais difícil de definir. Ele é uma mistura de pessoas, particularmente aquelas que moram nas grandes cidades e estão em desvantagem social. Mas, veja, não são os tão desprovidos de tudo ao ponto de só terem o próprio corpo, como é o caso dos 2 bilhões de serem humanos que passam fome em algumas regiões do mundo. Quando 29 mil crianças morrem na Somália em poucos meses, numa era em que temos todos os meios de comunicação para saber o que está acontecendo lá, e ainda assim isso acontece, é prova de que essas pessoas foram definitivamente excluídas da narrativa histórica. Não são a elas que me refiro. Estou falando daqueles que de alguma forma "não pertencem", das minorias das grandes cidades. São os pobres, os imigrantes, os discriminados que, em certa medida, incluem também os gays. Mas essas minorias em desvantagem não estão centralizadas, como o capital global. Elas são dispersas, difusas. É por isso, a meu ver, que temos tantas manifestações de rua espalhadas pelo mundo, as quais, apesar de responderem a condicionantes específicas de cada uma de suas sociedades, estão sublinhadas por uma mesma tendência de reivindicação social.

 

Como essas condicionantes específicas podem influir no modo de esses protestos se concretizarem?

 

A forma mais elaborada disso se viu no Egito, nas manifestações da Praça Tahrir, que acabaram abrigando todas as camadas sociais, mas começaram com jovens de classe média que se esforçavam para manter os protestos pacíficos. O chamado efeito "rua árabe" pode ter sido um exemplo para os em Tel-Aviv ou na Espanha, mas não foi um fator para os recentes eventos nas cidades britânicas, deflagrados não pela classe média, mas por moradores das zonas menos privilegiadas. Sua escolha de como se fazer ouvir é mais limitada. Daí reaparece uma cena típica que, aliás, vimos nos subúrbios de Paris em 2009: embates violentos com a polícia, vidraças de lojas estilhaçadas, carros queimados. Na minha leitura, a falta de emprego e os cortes do governo em programas sociais e culturais nesses bairros são condições bem mais significativas que a morte injustificada de um jovem. Esses eventos na Inglaterra se parecem de muitas maneiras aos levantes dos guetos americanos dos anos 60 e 70. Sem meios de discurso político, a esses jovens pobres e excluídos só resta quebrar o próprio bairro para se fazer ouvir.

 

Os americanos também estão vendo seu estilo de vida piorar, a pobreza aumentar, etc. Mas não se veem manifestações. Por quê?

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A razão de não termos nos Estados Unidos o que se viu na Praça Tahrir é que a nossa classe média empobrecida, a quarta da geração de classes médias americanas desde a 2ª Guerra Mundial - entre as quais sempre prevaleceu o mote "mais, mais, mais" - está em choque. O governo tirou verbas dos contribuintes para dar aos bancos, que estão sentados em cima desse dinheiro, e as pessoas estão sofrendo. A desigualdade na sociedade americana aumentou de forma extraordinária. Isso fica evidente quando analisamos alguns dados que saíram recentemente. Na cidade de Nova York, o 1% no topo da população com maior renda ganha 44% de tudo que é gerado na economia da cidade. Nova York sempre foi desigual, mas não a esse ponto. Em 1980, antes do início da era global, o 1% ganhava 12% da renda da cidade, o que é um pouco mais razoável que 44%. Digo isso só para dar uma noção de que quanto mais riqueza uma parte do sistema acumula, mais ele gera empobrecimento em seu interior. Temos uma vasta pobreza nos Estados Unidos, milhares perderam suas casas e vivem em acampamentos. Então por que os americanos não estão nas ruas? Em última análise é porque vivemos num sistema extremamente repressivo. E isso pouca gente percebe, pois a forma de repressão é bastante sofisticada, ela é sistêmica, está diluída no nosso dia a dia. Não é que o Estado reprima. Não é isso. Aliás, pode-se falar o que quiser, fazer as críticas que for, denunciar abusos de poder, chamar o presidente de macaco, pode tudo. Sabe por quê? Porque justamente nada que é dito importa. Não há nos Estados Unidos a voz política que deveríamos ter numa democracia como a nossa. Nessa horas, eu penso em George Orwell, é claro, e como ele retrata tão bem a vontade política sendo extraída das pessoas, que sentam, estupidamente, diante de seus televisores. O único discurso político que existe aqui é o do bastião do poder.

 

Em sua obra, a sra. diz que um dos efeitos da globalização é a reorganização de tensões globais em microcosmos locais. É esse o processo em curso quando vemos garotos sírios escrevendo nos muros das escolas os slogans cantados na Praça Tahrir?

 

Justamente. Para mim isso é evidência de que vivemos numa era verdadeiramente global, em que o global se manifesta horizontalmente e não por meio de sistemas de integração verticais, como o Fundo Monetário Internacional e o sistema financeiro. Muito da literatura sobre a globalização foi incapaz de ver que o global se constitui nesses densos ambientes locais. A tendência é pensar o global como algo que flutua lá em cima, entre os países, numa mobilidade internacional. Minha pesquisa dos último 15 anos conclui o contrário e tenta explicar a globalidade organizada subnacionalmente. Quando esses slogans reaparecem em lugares diferentes ou quando vemos uma recorrência de levantes, tem gente que fala de plágio. Essa é uma linguagem errada e uma falta de entendimento dos processos de globalização. O Egito não está copiando a Tunísia, nem o Bahrein, nem o Iêmen. Não é isso. O fato é que as mesmas tendências sociais estão reproduzidas nesses locais e são um tecido comum dos levantes. Há um compartilhamento de condições sistêmicas similares. Em outras palavras, é o crescimento de um grupo de pessoas, de jovens com educação, em conjunto com uma ampla e poderosa circulação de ideias, experiências e atos comunicacionais.

 

As redes sociais são causa ou consequência desse fenômeno?

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As mídias sociais deram até aos menos favorecidos o poder de convocar a multidão. O Blackberry, um meio protegido, foi usado na segunda noite de protestos, quando a polícia estava em total alerta e teria conseguido informações no Twitter sobre em quais bairros as pessoas estavam se reunindo. O celular é uma ferramenta poderosa para isso porque é o modo mais barato de acessar às redes sociais e mandar mensagens de texto. Temos circulação de ideias, não só por meio da mídia social, mas também por uma abertura ao mundo que nos conecta a todos. Há exemplos disso no entretenimento, como o fato de que um tipo de música hip-hop ou rock circula globalmente, em parte porque está sob o controle de impérios fonográficos, mas ao mesmo tempo aparece a possibilidade de download das músicas. Então até a classe média empobrecida pode ter acesso a isso. São múltiplas as formas de conexão com o mundo. Por isso chamar de plágio é diminuir a complexidade do que está acontecendo. A imigração também pode ser uma narrativa compartilhada da globalização para certos jovens.

 

Assim como fez o ditador egípcio, o premiê britânico estuda censurar as mídias sociais para dificultar a organização dos ataques.

 

Isso é prova de que David Cameron está respondendo de forma errada a esses protestos, tratando os manifestantes como simples criminosos, e não reconhecendo sua pobreza e falta de voz política.

 

A sra. sugere que vivemos um intenso processo de ‘desnacionalização das nossas economias e estruturas sociais’. Como explica, então, o aumento de uma retórica ultranacionalista e anti-imigração na Europa?

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Nossas economias estão tão dominadas por um capital global tão concentrado que basicamente o que acontece é uma desnacionalização dos capitais nacionais. Nos Estados Unidos, demos trilhões para firmas que dificilmente poderíamos chamar de americanas. Eram bancos, mineradoras, empresas, cujos donos eram fundos soberanos estrangeiros. Os donos eram os árabes, os austríacos, os alemães, os noruegueses, etc. O capital que se pode verdadeiramente chamar de americano, as pequenas e médias empresas, não se beneficiou das medidas do governo. O mesmo aconteceu na Europa. Quando os Estados Unidos e a União Europeia disponibilizaram grande quantidade de dinheiro do contribuinte para os bancos, na crise de 2008, a interpretação que se ouviu muito na mídia foi: "A-ha! Eis o retorno do Estado nacional forte que quer controlar a economia." Essa é uma interpretação rasa. É o global vestindo o disfarce de nacional. O dinheiro dos contribuintes alemães foi usado para resgatar um sistema bancário internacional. E em contrapartida exige-se do povo europeu medidas de austeridade. Essa sensação de que não se tem nenhum controle sobre a própria economia produz uma ansiedade enorme nas pessoas e permite a adoção de discursos pré-fabricados. O nacionalismo radical é precisamente isto: um produto numa estante de loja, pronto para ser usado. É um formato que já conhecemos, que permite externar nossas emoções e oferece objetos claros para o ódio, como os imigrantes; nos Estados Unidos, por um tempo, foram os carros japoneses e até as batatas fritas (em inglês, french fries). Ai, como é ridículo!

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