Não podíamos misturar manga com leite. Laranja, leite e banana davam nó na tripa. Melancia com leite ou (depois) com pinga era mortal.
Não podíamos brincar no rio (um palmo de fundura) para não afogarmos. Em dia de sol quente não podíamos brincar na água fria porque podíamos pegar pneumonia.
Não podíamos saber como os bebês eram produzidos. A parteira era uma figura misteriosa.
Não podíamos fumar cigarro de tal de xuxu (Mas podíamos colecionar marcas de cigarro, o que despertava enorme fascínio).
Não podíamos brigar na rua. Às vezes, apanhávamos na rua e do pai em casa. Mas podíamos matar passarinhos com estilingues e podíamos fazer guerra de quadrilhas (gangue) entre bairros com estilingue e bolinhas de vidro.
Não podíamos comprar camisinha na farmácia, porque só vendiam para adultos. Adultos, só podíamos pedir camisinha ao velho farmacêutico e não aos auxiliares jovens.
Não podíamos brincar com as meninas de mostra o seu que mostro o meu. Não podíamos brincar de médico e paciente. “Deixe-me ver este peitinho como está.”
Não podíamos olhar pela fechadura para ver as empregadas tomando banho, sob pena de ficarmos cegos, dizia o padre.
Não podíamos (segundo os padres) ter maus pensamentos. Não podíamos comungar sem ter confessado. Não podíamos comungar sem estar em jejum.
Não podíamos ficar sentados quando o professor entrava na classe. Não podíamos conversar na classe. Não podíamos colar nas provas.
Não podíamos chegar tarde em casa. Depois das dez da noite o pai trancava a porta.
Não podíamos usar o mitório público, sob pena de apanhar doenças venéreas.
Masturbação podia provocar tuberculose, anemia, dores generalizadas nos membros (e no membro), visão turva, dentes enfraquecidos.
Não podíamos ir sozinhos a um bordel antes dos 18 anos, a policia conferia documentos.
Não podíamos transar com as jovens antes de casarmos.
De repente, não podíamos mais usar lança-perfume e muito menos cheirá-las.
As mulheres não podiam mais usar biquíni.
Não podíamos entrar em filmes “fortes” antes dos 18 anos.
Homem não podia usar camisa vistosa, colorida, vermelha, amarela, verde intenso, sob pena de ser tachado de fresco, maricas,
3 x 8 (Até que o Elvis Presley apareceu, rebolando, usando roupas prateadas e douradas, cinturões fosforescentes: santo Elvis).
Não podíamos ser jovens transgressores. (Até James Dean ser um transviado).
Não podíamos ser malucos, sonhadores, era preciso entrar na universidade, ter segurança, emprego no Banco do Brasil ou na Caixa.
Depois, chegou um tempo em que não podíamos ler livros, ver filmes, teatro, televisão, ouvir certas canções, ter aulas com certos professores, emitir opiniões políticas, ser contra o sistema, votar, transar sem camisinha, atirar o pau no gato.
Agora nem podemos ser politicamente incorretos, nem dar Monteiro Lobato para criança ler, nem ser o que somos e o queremos ser sob pena de uma multidão sair à rua massacrando.
Não podemos ler este jornal nem aquela revista nem ouvir este comentarista nem gostar desta novela. Estamos todos nos calando.
Assim, fomos crescendo e nos tornando adultos para sabermos que o ovo faz mal( ou fez, fazia, fará, não faz mais, ele vai mudando, mudando), que o gluten faz mal, que o chocolate engorda, que o colesterol nos ameaça em cada esquina, que a lactose existe, o açúcar provoca diabetes, o adoçante dá câncer, o camarão pode dar alergia.
Agora sabemos que não podemos comer salsichas e outros embutidos, nem carne seca nem bacon (a América do norte inteira vai morrer com aqueles deliciosos bacons crocantes no breakfast), nem carne vermelha (cuidado Tony Ramos, muito cuidado, sou seu fã).
Mas me assustei quando vi que o mate também dá câncer. O mate que vem fervendo nas cuias. Rio Grande do Sul, Mato Grosso (os dois), Argentina, Uruguai e Paraguai vão desaparecer. Minhas centenas de amigos gauchos estão condenados.
Não! O mate também, não! Capitão Rodrigo, do nosso Érico Veríssimo, você que proclamava, ‘nos pequenos dou de prancha, nos grandes dou de talho!’ , chegou a hora, salve ao menos nossos gaúchos.
PS: Para os que não sabem, porque nunca sabemos quem sabe, Capitão Rodrigo é um personagem inesquecível de O Tempo e o Vento, na primeira parte de O Continente.
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