O combate à violência contra a mulher não deve passar pelo feminismo (exclusivamente) ou pelo acirramento da luta entre os sexos. Mas por uma educação que se universalize e que inclua uma formação laica em direitos humanos - no sentido legal e ético. Pois isso que chamamos 'barbárie' é a realidade para milhares de jovens submetidos diariamente a toda sorte de violências - especialmente nas zonas pobres de nosso País. Basta lembrar que há menos de uma semana dois meninos de 14 e 16 anos foram torturados e assassinados por traficantes em uma favela em Niterói. Eles, assim como a jovem estuprada, foram filmados, repetindo uma perversa modalidade de crime ritual midiático que diz muito sobre uma cultura que incita o sexo e violência como valor. É bom lembrar que não há só criminosos, mas uma audiência criminosa. A humilhação pública do outro tornou-se 'um motivo de ostentação' segundo a promotora de Justiça, Silvia Chakian. E para que esses jovens passem a 'ostentar' outros valores é preciso transmutá-los. Uma mudança que não se dará com revanchismo e ódio - por mais que o crime desperte nossa revolta e indignação. Não digo, com isso, que os estupradores não devam ser punidos. Inclusive deveríamos tornar ainda mais rigorosas as leis - como fizeram recentemente os indonésios por meio da castração química de pedófilos. O que afirmo é que o caminho mais eficiente vem por outra via, no sentido mesmo da máxima de Pitágoras: "Educai as crianças e não será preciso castigar os homens." Só uma educação humanística é capaz de eliminar a barreira que separa homens e mulheres; criminosos e vítimas. Pode oferecer a compreensão de que não precisamos nos submeter à vontade do outro, nem mesmo submetê-lo à nossa. Define limites e cria relações por outras vias que não a da força. Essa, sim, um recurso dos fracos ou dos ignorantes. E, quando falo educação, falo tanto em sentido estrito como em sentido amplo. É preciso formar as pessoas continuamente na sala de aula, nas nossas relações sociais e convocar a mídia e os formadores de opinião nessa direção. Não podemos ignorar a força dos atores, cantores, dos seus clipes musicais, das propagandas, das novelas e dos programas de TV em geral na construção dos valores. A sexualização precoce de meninas (e meninos) e o consumo como finalidade de vida me parecem temas graves que infelizmente foram naturalizados socialmente. Sua importância pode ser sentida, inclusive, no fato dos agressores se seduzirem mais pela publicização dos seus atos do que se inibirem pelo temor à punição (formal e informal) da cadeia. Se nos indignamos com o estupro, é importante nos indignarmos com todo um sistema cultural que conduz ao entendimento de que uma pessoa pode estar submetida à vontade de outra. Pois "do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem", como nos lembra poeticamente Bertold Brecht. Nessa direção, é preciso entender que todos, independentemente do sexo, condição social e cor, somos livres e que nossa liberdade e individualidade são valores pelos quais historicamente lutamos e continuaremos lutando. Por cada um de nós, por todos nós.
* Isabelle Anchieta é doutora em Sociologia pela USP, prof.(a) da PUC, recebeu prêmio internacional pela ISA/UNESCO como Jovem Socióloga e distinção acadêmica pela USP.
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