Bondade de estranhos

Um dia ficaram com pena de mim e me deram um pão velho. Explico: eu estava voltando a pé de um treino de vôlei, portanto num estado calamitoso de espírito e de indumentária, quando pensei que seria interessante jantar um pãozinho com manteiga e café com leite. Como já era mais de dez da noite e as padarias tinham fechado, entrei na Casa da Esfiha (Avenida Zumkeller, 39) e perguntei se eles tinham pão. O atendente olhou pra mim de relance e não pensou duas vezes: apanhou da bancada a metade solitária de um pão murcho que tinha sobrado de algum sanduíche e me deu, com um ar marcadamente cristão. Eu perguntei quanto era, mas ele falou que não era nada. 

PUBLICIDADE

Por Vanessa Barbara

Em outra ocasião, desembarquei em Salvador lá pelas onze da noite e fiz o check-in no hotel Dom Passos, no centro. Eu não havia jantado e estava morta de fome. Mas o hotel não tinha serviço de quarto, então fui saindo para procurar um bar onde pudesse comer um sanduíche. 

PUBLICIDADE

O recepcionista me impediu de passar pela porta, dizendo que aquela região era muito perigosa naquele horário. Eu insisti, dizendo que era rapidinho e que a minha barriga estava roncando. Ele protestou de novo e me pediu para esperar um instante. Ouvi o moço remexendo na despensa e abrindo a geladeira. Naquela noite, ganhei um sorvete Magnum que ele provavelmente tinha guardado para comer de madrugada; também não quis cobrar pelo acepipe. Voltei para o quarto, tomei o sorvete e me senti meio digna de pena, feito a Vivian Leigh em Um Bonde Chamado Desejo. 

A clássica personagem de Tennessee Williams é uma viúva alcoólatra e desgraçada que, no fim da peça, é violentada pelo cunhado e termina num manicômio, mas vamos ignorar tudo isso e ficar apenas com a sua famosa frase: “Sempre dependi da bondade de estranhos”. 

Em certa medida, dependemos sempre da bondade de estranhos em nossos momentos mais vulneráveis – penso, por exemplo, em uma vez que desmaiei na cafeteria do hemocentro da Santa Casa, e em como fiquei irritada quando acordei com uma porção de gente perguntando o meu nome, quando eu evidentemente só estava ali no chão tirando um cochilo.

Lembro de cair no choro na farmácia da UBS Santa Cecília porque a atendente não quis me dar um antidepressivo por causa da receita incompleta – eu claramente estava precisando – e ser consolada por um velhinho muito piedoso; e do pessoal do bar Zé do Bacalhau (Rua Marins de Araújo Viana, 115), que ajudou a minha mãe quando ela tropeçou na rua e quebrou os óculos; e de um sujeito que desceu uma escadaria com o meu carrinho de compras enquanto eu carregava uma cachorra abandonada no colo – estranhos ajudando estranhos ajudando cachorros. Às vezes, uma pequena gentileza aleatória é só o que nos salva.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.