Memórias de um mártir cristão no inferno do totalitarismo

Registro de sua passagem pelos porões da ditadura romena entre 1959 e 1964, diário ensina como sobreviver à opressão

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Por Felipe Cherubin
Atualização:

O Diário da Felicidade, de Nicolae Steinhardt (1912-1989), é uma surpresa no circuito editorial brasileiro. Afinal, por que publicar um livro de memórias de um monge ortodoxo romeno aqui desconhecido? Primeiro, porque O Diário da Felicidade é um documento histórico, esforço pessoal do monge Nicolae para preservar a dignidade humana e manifestar resistência espiritual por meio da literatura, sendo uma resposta ao fenômeno totalitário, isto é, da capacidade humana de resistir e realizar sua plenitude, mesmo diante de intensa privação. Segundo, O Diário é uma obra-prima literária que transita por uma lista infindável de autores da cultura humanística, num verdadeiro espírito de abertura intelectual. Texto confessional na tradição socrático-agostiniana, nele a preservação da memória e a confissão sincera são aspectos indissociáveis que moldaram a vida e o pensamento do monge e revelam, sobretudo, o lado mais perverso da cultura e da política romena sob o regime comunista, entre 1947 e 1989.Steinhardt conviveu com importantes intelectuais romenos, como Noica, Eliade, Chimet, Cioran e Ionesco. Recebeu reconhecimento do papa João Paulo II, admirador de sua obra.As ideias que desenvolveu não se reduzem apenas ao universo romeno. Sua grande lição é que o totalitarismo, como fenômeno universal, muda de nome, mas sua natureza persiste - o fato é que a liberdade humana sempre estará diante desta ameaça.Assim, Steinhardt não fica apenas no relato autobiográfico. Seu diário revela uma visão libertária, apresentada de forma fragmentada no decorrer do texto (por meio de flashes entre o passado e o futuro) e segue, surpreendentemente, um fio condutor coeso, que dá unidade à cosmovisão proposta e vivida pelo autor.Essa unidade, em linhas gerais, está disposta, primeiramente, por meio da conversão de Nicolae ao cristianismo e da própria essência do que é ser cristão e, secundariamente, pela lição apresentada na forma de três soluções para o homem resistir diante da mais dura opressão, ilustrada por fatos biográficos da tríade Solzhenitsyn, Zinoviev e Churchill. As soluções, supostamente simples, são difíceis de seguir: seus escritos são uma lição de como guiar a si mesmo num cenário desesperador, dominado pelo niilismo e o absurdo.Em O Diário da Felicidade, fica claro que Steinhardt desenvolve seu pensamento colocando o problema de Deus não em aspectos teológicos, mas antropologicamente, como drama do homem concreto - dessa maneira, são acolhidas as ideias de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Thomas Mann, Franz Kafka e, principalmente, Dostoievski, pensadores que trataram da questão existencial, do pecado e da redenção. Citando as lições de Dostoievski, Steinhardt faz uma interessante defesa da condição humana, fundada no livre-arbítrio, apontando o mal não como criação divina, mas consequência da liberdade humana.A grande contribuição do seu diário é resgatar a mensagem cristã original, desmistificando aquela visão do cristão como um homem recluso, pudico, que renuncia à vida da matéria em nome da conquista do paraíso. O cristianismo existencialista de Steinhardt está com os olhos no presente, em contato constante com a mundanidade e as vicissitudes da vida. É o cristianismo que agrega e abriga e que vive com o a mente e o coração em Deus, mas com os pés no chão.No pensamento de Steinhardt, em que vida e política são indissociáveis, voltamos ao velho ideal platônico da República, isto é, devemos cultivar a virtude privada para não cairmos no vício público, procurando, assim, equacionar de um lado a lei e a ordem da vida civil e, de outro, a esfera da liberdade individual, evitando a domesticação totalitária e a anarquia.

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