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Mais uma afronta à responsabilidade fiscal

Num gesto para prefeitos perdulários, Câmara enfraquece a Lei de Responsabilidade Fiscal ao retirar gastos com terceirização do limite de despesas com pessoal de Estados e municípios

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Por Notas & Informações
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A Câmara dos Deputados aproveitou uma semana esvaziada em Brasília para cometer mais um atentado contra a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Em uma votação remota, os deputados aprovaram um projeto de lei complementar que retirou os gastos com terceirização e com organizações da sociedade civil do limite de despesas com pessoal previsto na LRF.

A LRF estabelece balizas vinculadas à receita corrente líquida (RCL) dos entes federativos para conter a despesa total com pessoal. O teto é de 60% da RCL para a União e de 50% para Estados e municípios.

Embora os limites tenham sido mantidos, o texto aprovado muda a forma de calculá-los. Contratos terceirizados com empresas e organizações sociais para limpeza urbana e gestão de hospitais – que, por óbvio, incluem a contratação de profissionais para a prestação dos serviços – deverão ser contabilizados à parte por Estados e municípios, como prestação de serviços especializados.

O projeto de lei foi apresentado em 2012 e chegou a ser arquivado pela Câmara, mas ressuscitou em abril deste ano já com um requerimento de urgência, pedido que permite pular etapas de tramitação nas comissões e pautar a proposta imediatamente em plenário para discussão e votação.

O tema não estava no radar de ninguém até ser incluído na ordem do dia nesta semana, mas esse tipo de manobra não ocorre sem acordo. E, na votação, ficou muito claro que havia. Todos os partidos e blocos orientaram suas bancadas a votar favoravelmente ao texto, Novo e PL abriram mão dos requerimentos de retirada de pauta que haviam apresentado e o governo não fez o menor esforço para barrá-lo.

O texto foi aprovado por 370 votos a 15, bem mais que os 257 necessários. Muito ocupado com as articulações para sua sucessão, o presidente Arthur Lira (PP-AL) nem sequer apareceu na Câmara nesta semana, o que de forma alguma significa que não estivesse ciente do que ocorria no plenário sob o comando de seu aliado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).

Municípios que ultrapassam os limites de gastos com pessoal têm os repasses de verbas federais e estaduais suspensos e são proibidos de contratar novos financiamentos. Retomá-los requer medidas duras, como a redução de despesas com gastos com cargos comissionados e de confiança e a demissão de servidores sem estabilidade.

Tais restrições são essenciais para garantir o cumprimento dos limites. Mas muito mais fácil que cumprir a lei é driblá-la por dentro, ainda que com argumentos risíveis. No parecer preliminar, a relatora, Nely Aquino (Podemos-MG), considerou que a matéria era meramente normativa e afirmou que a proposta não implicava renúncia de receitas ou aumento de despesas.

Se não tinha sustentação técnica, não faltou apoio político à proposta, evidentemente abraçada pela Confederação Nacional dos Municípios e pela Frente Nacional dos Prefeitos. Na parca discussão que houve na Câmara, os deputados reclamaram do Supremo Tribunal Federal (STF), que teria alterado o entendimento sobre a forma de contabilização de despesas com pessoal e, consequentemente, motivado a Secretaria do Tesouro Nacional a editar uma portaria com a norma.

Ora, nunca houve tal mudança. O STF e o Tesouro apenas cobravam o cumprimento ipsis litteris da lei, enquanto prefeitos se aproveitavam de uma lacuna normativa para não cumprir suas obrigações. Não satisfeitos, eles finalmente convenceram os deputados a mudar a legislação. O texto ainda precisa ser aprovado pelo Senado, mas nada indica que terá dificuldades por lá, sobretudo em ano eleitoral.

Não é a primeira que o Congresso facilita a vida de administradores irresponsáveis, e nada indica que será a última. As reflexões sobre o aniversário de 30 anos do Plano Real mostraram que o fiscal se tornou a parte mais frágil do tripé macroeconômico.

Próximo de completar 25 anos, a Lei de Responsabilidade Fiscal é um exemplo de que, no Brasil, existem leis que pegam e leis que não pegam. Revogá-la seria um escândalo, mas isso não impediu que ela fosse desfigurada. Assim, todos podem ser perdulários sem abandonar a pose de responsabilidade.