THE NEW YORK TIMES - As vacas não paravam de gritar.
Soldados russos ocupavam Husarivka, uma vila remota no leste da Ucrânia, usando uma fazenda como base. Não alimentados, os animais da propriedade baliam incessantemente, irritando as tropas de Moscou e os habitantes da cidade. Um grupo de cinco moradores do povoado decidiu cuidar do gado – e nunca mais houve qualquer notícia deles.
“Meus dois sobrinhos desapareceram. Eles foram alimentar as vacas na fazenda”, disse Svitlana Tarusyna, de 70 anos. “Eles se foram, desapareceram”.
O que aconteceu em Husarivka, um vilarejo de cerca de mil habitantes ocupado pelos russos durante duas semanas, tem elementos de brutalidade: assassinatos indiscriminados, abusos e torturas, que teriam ocorrido por quase um mês. E enquanto ativistas de direitos humanos em Kiev, a capital da Ucrânia, trabalham para reunir evidências de atrocidades russas durante a guerra, os aldeões de Husarivka medem o legado da ocupação a partir do desaparecimento de amigos e vizinhos.
Os soldados russos agiram, em sua maioria, de forma reservada quando chegaram a Husarivka nos primeiros dias de março, disseram moradores. Mas isso mudou rapidamente. Os combatentes passaram a saquear casas vazias e roubar das pessoas que ficaram para trás. Foi na época em que os sobrinhos de Tarusyna e seus colegas desapareceram que a ocupação se tornou violenta.
“No começo, eles não estavam vagando por aí”, disse Yurii Doroshenko, 58, que é o prefeito de fato de Husarivka, observando que mais de 1.000 soldados russos estavam alocados em seu quartel-general nos arredores da cidade. “Então, três ou quatro dias depois, eles começaram a se esgueirar, procurando algo. Foi por volta de 10 de março que eles começaram a entrar nas casas.”
Husarivka fica a apenas cinco quilômetros da linha de frente e continua a ser bombardeada incessantemente, assim como era quando os russos ocupavam a área. A energia e a água foram interrompidas desde o início do mês passado e o serviço de celular é praticamente inexistente, deixando a aldeia praticamente isolada, exceto pela ajuda humanitária transportada das cidades vizinhas.
Nos últimos dias, os moradores começaram lentamente a juntar as peças do que aconteceu em seu enclave, emergindo de seus abrigos no porão entre os ataques de artilharia. Mas eles ficaram com mais perguntas do que respostas. Uma delas: onde estão as cinco pessoas que desapareceram por volta de 16 de março depois de sair para alimentar as vacas?
Doroshenko apontou para sua lista desgastada de pessoas que desapareceram ou morreram, algumas de causas naturais, durante a ocupação. Os nomes e as datas da morte foram escritos em tinta azul.
“Este é Yehor Shyrokin”, disse ele. “Ele era capataz da fazenda. Sergiy Krasnokutsky estava trabalhando como guarda de segurança. Olexandr Tarusyn estava distribuindo a forragem. Olexandr Gavrysh era motorista de trator. Mykola Lozoviy era o motorista do Gazelle”, disse ele, referindo-se a um caminhão de transporte.
Antes da guerra, a população de Husarivka tinha1.060 pessoas registradas, disse Doroshenko na quinta-feira, enquanto nuvens escuras passavam sobre sua aldeia e o baque da artilharia ecoava à distância. Agora, a maioria das pessoas fugiu, e ele estimou que a cidade tem cerca de 400 habitantes.
Nos dias que antecederam os desaparecimentos, apenas um morador havia morrido durante a ocupação. Em 8 de março, as forças ucranianas tentaram retomar Husarivka e, durante os combates, Sergiy Karachentsev, um motorista, foi morto, disse Doroshenko. Alguns moradores disseram que ele estava fugindo para encontrar sua esposa em uma cidade vizinha quando tropas russas pararam seu carro e atiraram nele.
“O carro dele, um velho Opel, ainda está lá”, disse o chefe da aldeia.
À medida que os ocupantes se estabeleceram em Husarivka e saquearam as casas, suas interações com os moradores se tornaram mais frequentes.
Oleksandr Khomenko, um apicultor de 43 anos, ecoou os relatos de meia dúzia de outros moradores: As forças russas estavam com falta de suprimentos e exigiam álcool e comida. Uma mulher se recusou a entregar seu porco, então eles foram para a casa ao lado e atiraram no porco dos vizinhos, disse ela.
Eles também levaram telefones celulares e outros eletrônicos, presumivelmente para impedir que os moradores contatassem as forças ucranianas e fornecessem informações sobre a localização das tropas russas. Ou para ligar para casa.
Em algum momento durante a segunda semana da ocupação, vários dias depois que a energia acabou, as vacas começaram a rugir. Alguns dos russos e seus veículos blindados estavam escondidos em uma garagem de tratores perto dos currais de gado e impediram as pessoas de trabalhar na fazenda coletiva, chamada Husarivkse. Como resultado, os animais definharam.
“Havia mais de 1.000 cabeças de gado aqui”, disse Anatoliy Isitchenko, de 67 anos, vice-diretor da empresa que administrava o conjunto de prédios agrícolas.
“Aqui está o que eles fizeram”, disse ele sobre os ocupantes. “Nesta rua ao lado da fazenda, eles chamaram os caras que trabalhavam na fazenda para alimentar o gado”.
Os cinco homens alimentaram as vacas e cuidaram de seus deveres. Mas quando saíram, algo na fazenda explodiu, lembram os moradores. Se foi um ataque de artilharia ou uma tentativa de sabotagem não está claro, mas parece ter contribuído para o seu desaparecimento. Doroshenko afirmou que os russos capturaram os homens após a explosão. É possível que eles estivessem por trás de algum tipo de ataque ao quartel-general russo.
“Eles só chegaram à encruzilhada e foram apreendidos”, disse Doroshenko.
Duas outras pessoas próximas à fazenda também desapareceram naquele dia, acrescentou Doroshenko. Cerca de uma semana depois, em 24 de março, um atirador russo matou Andriy Mashchenko enquanto voltava para casa em sua bicicleta. Ele estava abrigado no porão de um vizinho durante uma barragem de artilharia. Morreu na Rua da Paz.
Sob pesado bombardeio, os russos recuaram de Husarivka cerca de dois dias depois, e as forças ucranianas avançaram mais tarde. A contagem de baixas da cidade durante a ocupação: sete pessoas desaparecidas, duas mortas por tiros e pelo menos duas por bombardeios.
Evidências espalhadas pela cidade mostravam como a artilharia havia governado o dia. Foguetes gastos jaziam nos campos. Os telhados estavam desmoronados. Os cascos enferrujados dos veículos russos estavam aparentemente por toda parte. Em um veículo blindado, o cadáver do que se supunha ser um soldado russo permaneceu, quase irreconhecível.
Mas quando os soldados ucranianos vasculharam os destroços do campo de batalha após a vitória, encontraram algo na rua Petrusenko. Estava em um porão fechado por uma porta de metal enferrujada.
“Neste porão os corpos foram encontrados”, disse Olexiy, investigador-chefe da região que se recusou a fornecer seu sobrenome por razões de segurança. Ele apontou para um buraco coberto de fuligem. “Eles estavam cobertos por pneus de carro e queimados”, disse ele.
“Não há como dizer a causa de sua morte”, acrescentou, “encontramos três mãos, duas pernas, três crânios”.
Os corpos ainda não foram identificados, disse ele. Moradores de Husarivka acreditam que os três faziam parte do grupo de cinco desaparecidos. Imagens fornecidas ao The New York Times mostraram claramente que uma bota de borracha foi derretida no pé de uma perna.
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