Com os Mesquitas, jornal se consolida como veículo independente e inovador

Ao assumir a empresa, em 1902, Julio Mesquita afasta o ‘Estadão’ de partidos e governos; gerações seguintes mantiveram o olhar para o futuro e comando coerente com propósitos republicanos e democráticos

Foto do author José Fucs

O atual processo de transformação digital promovido pelo Estadão, com a adoção das soluções tecnológicas mais avançadas do mercado, irradiou-se por diferentes áreas. Da redação à publicidade, das oficinas à distribuição de conteúdo e à gestão de assinaturas, a onda de inovação é permanente.

Essa inquietude reflete características presentes na essência do jornal desde 1902, quando Julio Mesquita (1862-1927) se tornou proprietário da empresa, que sua família controla até os nossos dias. Também pode ser buscada nas origens do Estadão – e no papel dos Mesquitas, de cada geração, na determinação de ser independente, com o olhar sempre voltado para frente, fruto de uma ideia de país que progride, em termos sociais e materiais, por meio da livre iniciativa, em um regime democrático.

Julio Mesquita (sentado, no centro) na redação do 'Estadão': reforma editorial, aumento de circulação e assinaturas e atenção às notícias internacionais Foto: Acervo Estadão

PUBLICIDADE

“Olhando o que aconteceu desde o início até hoje e pensando também no que deve vir pela frente, acredito que o grande diferencial da família é o reconhecimento de que o propósito do Estadão é maior do que qualquer coisa”, diz Francisco Mesquita Neto, presidente do Conselho de Administração da S/A O Estado de S. Paulo. “Nas decisões que a família tomou ao longo da história, tanto do lado jornalístico como na área de negócios, o que tem dado uma liga muito forte é ter esse propósito como objetivo comum, independentemente de visões individuais que possam ser diferentes aqui ou ali.”

Aos 23 anos, logo depois de se formar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o pioneiro Julio Mesquita foi contratado como redator em A Província de São Paulo. Ele lançou as bases de uma empresa jornalística que atravessou um século e meio como um dos veículos de comunicação mais influentes, respeitados e admirados do Brasil.

Publicidade

Julio distanciou o jornal dos partidos políticos e dos governos, mesmo quando comungavam de suas ideias. Fez uma profunda mudança editorial. Investiu em grandes reportagens.

Com o velho mundo ruindo rapidamente sob o impacto das energias revolucionárias do século 20, ampliou a cobertura do exterior. Assinou as agências internacionais de notícias e, com a colaboração de um profissional na Europa, fez uma cobertura da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) superior à dos concorrentes brasileiros e equiparada à dos grandes veículos do planeta. Modernizou o processo de produção, com a compra de impressoras de última geração. Quando ele morreu, em 1927, o número de assinantes do Estadão tinha aumentado 54 vezes, de 904 para 48.600. A tiragem se multiplicara por nove, passando de 7 mil exemplares, em 1890, para 60 mil exemplares. Deixou a empresa com um orçamento maior do que o de dez Estados brasileiros e dona do maior parque gráfico da América Latina.

“Julio Mesquita tinha consciência de que o jornal é do público, é um conceito, um ponto de encontro, é a Ágora da polis, a cidade-Estado da Grécia clássica. Esta missão está viva nas redes”, diz Rodrigo Mesquita, bisneto do fundador, ex-pesquisador do MIT – Media Lab, conselheiro da Agência Estado, serviço noticioso do Grupo Estado, e conselheiro do Centro de Inovação da Universidade de São Paulo (Inova USP). O espírito empreendedor da família Mesquita levou à criação de negócios bem-sucedidos em diferentes épocas. Em 1958, o grupo inaugurou a Rádio Eldorado, que revolucionou o radiojornalismo paulistano com sua programação diferenciada, mesclando jornalismo e música clássica. A receita funciona até hoje.

Francisco Mesquita, no centro, e Julio de Mesquita Filho (à dir.): resistência a Vargas, exílio e intervenção Foto: Acervo Estadão - 29/1/1960

O Jornal da Tarde, lançado em 1966, representou uma inovação no mercado editorial brasileiro. Com um design arrojado e uma linguagem dinâmica, revolucionou a forma de fazer jornalismo no País, influenciando toda uma geração de profissionais e publicações. A OESP Mídia produziu e distribuiu listas telefônicas em mais de 50 municípios do Brasil, tornando-se líder no setor durante as décadas de 1980 e 1990. A criação da Agência Estado, em 1970, consolidou a posição do grupo no fornecimento de conteúdo jornalístico e dados de mercado. Seu braço de informações financeiras, o Broadcast, tornou-se ferramenta essencial para o mercado financeiro nacional, oferecendo cotações e análises em tempo real, além de serviços especializados para diferentes setores da economia.

Publicidade

Educação e intervenção

A criação da Universidade de São Paulo, em 1934, foi um evento fulcral da história brasileira em que houve a perfeita combinação dos propósitos do Estadão com a visão de país passada de geração a geração na família Mesquita. A USP foi idealizada por Julio de Mesquita Filho (1892-1969), que assumiu a direção editorial do jornal após a morte do pai, e viabilizada por seu cunhado Armando de Salles Oliveira, então interventor do Estado de São Paulo.

A ideia foi criar uma universidade pública, gratuita, pluralista e laica, voltada para a pesquisa e que sugerisse rumos para a sociedade e o desenvolvimento do Brasil. Foi preciso contratar professores em período integral, com bons salários, agrupar os diferentes cursos numa Cidade Universitária.

Logo desembarcaram na capital paulista para dar aulas na USP pesquisadores europeus que se tornariam mais tarde referências em suas especialidades e até celebridades do universo intelectual. É o caso do historiador Fernand Braudel (1902-1985), do sociólogo Roger Bastide (1898-1974) e de Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

Anfiteatro da Faculdade de Medicina da USP, em 1935: uma universidade pública, gratuita, pluralista e laica Foto: Acervo Estadão - 12/3/1935

O médico e psicólogo francês George Dumas (1866-1946), que colaborou com Julio Filho na escolha dos nomes a serem convidados para USP, contou ter recebido instruções expressas para evitar a contratação de professores “clericais, fascistas ou nazistas”. Nessa determinação antidogmática e como em tantos outros momentos da história brasileira, o Estadão estava mais avançado do que o País.

Publicidade

PUBLICIDADE

Quando Roger Bastide chegou a São Paulo, em 1938, com a missão de substituir Lévi-Strauss na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, não pôde se encontrar com o idealizador da universidade. Depois de 17 vezes preso arbitrariamente, Julio Filho havia se exilado em Portugal. O “Estado Novo”, imposto por Getúlio Vargas (1882-1954) em 1937, tentou de todas as maneiras quebrar a resistência do jornal – que se recusava até mesmo a vender páginas para propaganda oficial. Francisco Mesquita (1893-1969), seu irmão, que modernizou as áreas administrativa e financeira do Estadão, também foi preso, em 1940. Solto, juntou-se a Julio no exílio. O jornal foi expropriado por Vargas e colocado a serviço do governo.

Com a queda de Vargas, em 1945, Julio Filho e Francisco retomaram a direção do Estadão. Em 1951, o ditador que os exilou na década anterior voltou ao poder pelo voto. Houve desconfiança de lado a lado, com o jornal sendo crítico constante dos pendores populistas de Vargas na política e intervencionistas na economia. Dessa vez as diferenças foram tratadas dentro da ordem democrática.

Policiais invadem a sede do 'Estadão', por ordem de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo; jornal fica sob intervenção até 1945 Foto: Acervo Estadão - 3/1940

Ditadura

Dez anos depois da morte de Vargas, em 1964, a Guerra Fria entre os Estados Unidos, capitalista e democrático, e a União Soviética, comunista e totalitária, havia engolfado o mundo. A neutralidade era quase impossível.

No Brasil, a retórica inflamada de João Goulart (1919-1976) pelas chamadas “reformas de base” e o apoio a greves e movimentos de praças alimentaram em vários setores da sociedade a percepção de que o presidente buscava um caminho para solapar a ordem institucional e cancelar as eleições presidenciais previstas para 1965.

Publicidade

Goulart foi deposto por um golpe militar em 31 de março de 1964. A ação foi precedida e sucedida de apoios vindos também da imprensa, como os três então principais veículos do Rio de Janeiro – Jornal do Brasil, O Globo e Correio da Manhã.

O Estadão também apoiou a deposição do presidente, por enxergar nos movimentos de João Goulart uma desestabilização da institucionalidade e uma aproximação ideológica com o socialismo, sobretudo na vertente da ditadura de Fidel Castro (1926-2016) em Cuba.

Mas bastaram 12 dias para que uma luz amarela provocasse a reação do jornal. A expressão “a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte”, contida no Ato Institucional de 9 de abril, o AI-1, provocou uma crítica contundente no principal editorial do Estadão de 11 de abril.

“Sempre fomos intransigentemente contrários às tentativas feitas nesse sentido pelo caudilho deposto.” O jornal disse esperar que “essa faculdade bem como todo o Ato Institucional vigore apenas no espaço de tempo que mediará entre a posse (de Castello Branco) e a posse do seu sucessor em 31 de janeiro de 1966″.

Publicidade

Ficou evidente que não haveria eleições livres em 1965 e que o novo regime não buscava fortalecer as instituições democráticas já estremecidas sob João Goulart. Nisso também os golpistas militares estavam ficando parecidos com o “caudilho deposto”. O afastamento do jornal do regime estava começando.

Decretado dias após o golpe de 64, o Ato Institucional número 1 provocou crítica contundente no principal editorial do 'Estadão' Foto: Domicio Pinheiro/Estadão - 16/3/1964

O rompimento se deu em dezembro de 1968, quando os generais se ungiram com poderes ditatoriais ao editar o Ato Institucional Número 5, o AI-5. O editorial Instituições em Frangalhos, escrito por Julio de Mesquita Filho e publicado horas antes do anúncio do AI-5, levou os militares a proibir a circulação do Estadão. Censores se instalaram na redação.

Os jornais do Grupo Estado foram os únicos a sofrer censura prévia ininterruptamente por sete anos. No lugar dos textos censurados, o Estadão publicava versos de Camões.

Coerência

“Esse episódio mostra que a essência do jornal O Estado de S. Paulo está nos editoriais, mesmo neste mundo digitalizado. Essa sempre foi a nossa marca registrada”, afirma Julio César Ferreira de Mesquita, membro do Conselho de Administração e neto de Julio de Mesquita Filho. Muitas vezes mal compreendido e visto como um jornal “conservador” e até “reacionário”, o Estadão sempre foi firme contra as forças antidemocráticas e antiliberais de qualquer cor ideológica. “Nunca cultivamos a oposição como fim. Limitamo-nos a ser coerentes. Quem subiu e desceu, ao sabor das flutuações da história, foram os partidários do totalitarismo das direitas e das esquerdas. O Estado sempre combateu ambos”, disse Julio de Mesquita Neto (1922-1996), na edição de aniversário dos 100 anos do jornal, em 1975.

Publicidade

“Fomos rotulados de comunistas por nosso apoio aos republicanos na Guerra Civil Espanhola. Na Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas, alinhado ao nazifascismo, investiu contra aquele que ele sabia que era o maior inimigo do nazifascismo no Brasil, o jornal O Estado de S. Paulo”, afirmou Ruy Mesquita (1925-2013), irmão de Julio de Mesquita Neto e diretor editorial do Jornal da Tarde. “Depois da vitória dos aliados, com o advento da União Soviética, mudou a moda ideológica e surgiu a nova onda. Desde então, os adeptos do mais reacionário de todos os regimes jamais surgidos na história política dos tempos modernos, o totalitarismo socialista, procuram nos pregar o rótulo de reacionários.”