Em outubro de 2024, o Instituto Gallup, dos Estados Unidos, publicou mais uma pesquisa sobre a credibilidade dos meios de comunicação na sociedade americana. Os resultados não foram bons: o prestígio da imprensa nunca esteve tão baixo. Apenas 31% das pessoas disseram ter confiança “grande” (“great deal”) ou “razoável” (“fair amount”) na maneira como jornais, televisão e rádio reportam os acontecimentos. É a pior marca já registrada.
O êxodo é muito maior na direita do que na esquerda. Entre os adeptos do Partido Republicano, hoje um reduto do trumpismo galopante, somente 12% declararam confiar em órgãos de imprensa (eram 20% em 2018), contra 54% nas hostes do Partido Democrata (estes eram quase 80% em 2018). Até os anos 2000, não havia tanta distância entre um polo e outro: ambos se situavam no mesmo patamar, em torno dos 50%. Agora, o cenário é mais crispado.
No Brasil, a paisagem é quase idêntica. As facções que cerraram fileiras com o bolsonarismo abominam os repórteres e seus periódicos. Seus porta-vozes elogiam torturadores, execram a ciência, caluniam a universidade, hostilizam as artes, insultam a justiça e, last but not least, ofendem sistematicamente os jornalistas – e as jornalistas, de preferência.
Em todos os continentes, aumentam as multidões que aderem à onda anti-imprensa. Essas legiões não fazem mais distinções entre informação e propaganda, não têm a menor ideia do que separa o juízo de fato do juízo de valor e não dedicam nenhum respeito à verdade factual. Não raro, preferem abertamente a mentira.
Em resumo, o esvaziamento da confiança na imprensa é apenas a ponta do iceberg. Por baixo, prospera o triunfo da mentira, graças ao trabalho escravo de milhões de voluntários que espalham falsidades. Podemos comprovar o fenômeno diariamente pelos grupos de WhatsApp, especialmente os grupos de família e de turmas de amigos, que se tornaram uma estratégia dos agentes da extrema direita. Os tios e as tias do Zap, embora pacóvios, não são inocentes inúteis – eles sabem muito bem o que fazem e o que desfazem.
E aí? Como entender o cenário? Por que pessoas que até outro dia levavam uma vida pacata passaram a disseminar engambelações em período integral?
Em parte, as causas podem estar relacionadas à carência afetiva: quem posta sandices nas redes sociais suplica por elogios de meia dúzia de pares igualmente extremistas. De outra parte, é possível que a adesão à escalada desinformativa funcione como um jogo viciante, que gera dependência severa: os que se deixaram acometer dessa compulsão não conseguem parar e, para alimentar o vício, aceitam trabalhar de graça para as organizações antidemocráticas.
O que parece estar em marcha é uma crise epistêmica de enormes proporções. Os métodos de que dispúnhamos para produzir conhecimento sobre a realidade dão sinais de fadiga, porque perdem praticantes e interlocutores. A polarização, ou seja, a cisão que partiu ao meio a sociedade dita ocidental, mina as formas abstratas pelas quais interpretávamos coletivamente o mundo. O estatuto da verdade factual, que já foi o alicerce do melhor jornalismo que tivemos, cai em descrédito.
Os métodos de que dispúnhamos para produzir conhecimento sobre a realidade dão sinais de fadiga, porque perdem praticantes e interlocutores
Só assim podemos entender por que grupos que plantam seus pés sobre o mesmo pedaço de chão, dentro de um mesmo país, habitam mundos imaginários tão díspares. O diálogo racional sobre os fatos deixa de ser possível entre esses grupos. Pior: deixa de ser desejável. Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de entendimento ou de convivência. Quase ninguém acha que precisa. E, se o diálogo racional já não tem serventia para fazer pontes entre as “bolhas”, a imprensa não tem mesmo por onde escapar: é convidada a se retirar, como se fosse uma pregação anacrônica ou uma tecnologia ultrapassada, mais ou menos como a bússola e o astrolábio, que caíram em desuso depois da invenção dos dispositivos de georreferenciamento via satélite.
As luzes rumo ao obscurantismo
Foi no calor das revoluções liberais do final do século XVIII que a imprensa entrou em cena. A ideia de que a sociedade precisaria contar com uma instituição não estatal para criticar publicamente o poder nasceu do liberalismo insurrecional, não nasceu da democracia. O substantivo “democracia” mal aparecia nos panfletos quando a liberdade de imprensa foi inventada.
Naquela fase, os redatores das folhas públicas eram ativistas. Eles não tinham a menor preocupação com objetividade, com reportagem precisa, com ouvir os dois lados de um debate. Suas finalidades eram conquistar a simpatia da incipiente opinião pública e pressionar o soberano. Ser jornalista era ser militante.
Foi só ao longo dos séculos XIX e XX que as duas práticas se diferenciaram. À medida que o ordenamento social se modificava e que as liberdades dos negociantes cediam espaço para os direitos dos que não eram donos de riquezas, as causas do liberalismo passaram a ter que negociar com as demandas, agora, sim, da democracia em construção. A liberdade de imprensa deixava de ser entendida como uma prerrogativa burguesa e passou a ser vista como um direito da sociedade inteira. O direito à informação do público aflorou. A instituição da imprensa, sem abdicar de seu espírito crítico de origem liberal, assumiu o tríplice encargo de (1) fiscalizar as autoridades, (2) informar a sociedade com independência e (3) mediar o debate público.
A liberdade de imprensa deixava de ser entendida como uma prerrogativa burguesa e passou a ser vista como um direito da sociedade inteira. O direito à informação do público aflorou
Na primeira metade do século XIX, as redações começaram a se profissionalizar. Os pesquisadores Michael Schudson e Leonard Downie Jr., no ensaio “A reconstrução do jornalismo americano”, publicado na Columbia Journalism Review, em 2009, anotaram que, nos Estados Unidos, somente por volta dos anos 1820 os diários começaram a contratar profissionais regularmente remunerados. Logo adiante, a notícia bem apurada virou mercadoria e, acima disso, um bem público. Foi então que as melhores redações, como a do New York Times, sentiram a necessidade de separar o relato factual (o noticiário) da opinião (os editoriais). Militância e jornalismo se separaram.
No nosso País, o processo foi mais lento. Apenas no início do século XX, o proprietário de O Estado de S. Paulo, Julio Mesquita, num movimento pioneiro, retirou seu jornal da órbita do Partido Republicano, ao qual sempre fora ligado, e fez dele um título independente, com diversidade de pontos de vista. O Estado se tornou o diário mais sólido, mais influente e mais próspero do Brasil, como narra o historiador Jorge Caldeira em “Julio Mesquita e seu tempo” (Editora Mameluco, 2015). O dono do Estado morreu, em 1927, aos 64 anos de idade, como um empresário de sucesso, rico, poderoso, invejado e temido, mais ou menos como William Randolph Hearst nos Estados Unidos, apesar das diferenças éticas e estilísticas que os distinguiam.
O ‘Estado’ se tornou o diário mais sólido, mais influente e mais próspero do Brasil, como narra o historiador Jorge Caldeira em ‘Julio Mesquita e seu tempo’
Nesse período, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, os autores das páginas impressas começaram a fazer o caminho de volta: saíam das redações para entrar na política. O próprio Hearst, que se elegeu deputado, concorreu à prefeitura e ao governo de Nova York na primeira década do século XX, mas fracassou. Em 1919, numa conferência famosa, “A política como vocação”, proferida na Universidade de Munique, o sociólogo alemão Max Weber afirmou que o jornalista era o “demagogo” da modernidade. Weber não empregou a palavra “demagogo” no sentido pejorativo, mas para enfatizar que os expoentes da imprensa, como os oradores que discursavam na ágora na Grécia clássica, dispunham dos meios para “conduzir” o povo pela palavra. Os jornais eram o centro da esfera pública e reinavam absolutos.
Então, o negócio do entretenimento, nascido de uma costela dos diários, entrou na briga. A palavra impressa passou a enfrentar a concorrência da imagem e, logo em seguida, da imagem em movimento. Atores de cinema também tiveram a chance de se projetar como líderes potenciais e alguns se deram muito bem. Ronald Reagan, Arnold Schwarzenegger e Donald Trump (protagonista do reality “O Aprendiz”) que o digam.
Com o advento das tecnologias digitais, o entretenimento teve um impulso ainda mais vigoroso. As redes sociais catapultaram comediantes à posição de chefes de Estado. As plataformas têm sido elogiadas porque turbinaram o fluxo de mensagens e ampliaram absurdamente as audiências, mas elas também trouxeram reveses. As inovações, atreladas à indústria do divertimento, aposentaram os relatos informativos confiáveis e anabolizaram atrações mais excitantes – e menos confiáveis. Os formatos discursivos do showbusiness contaminaram a linguagem da política, de modo irreversível.
Dentro dessas turbulências, as empresas jornalísticas foram pegas no contrapé, sem saber como reagir. Na virada dos anos 1980 para os anos 1990, o jornalista Rodrigo Mesquita, o diretor da Agência Estado, passou a integrar o MediaLab no MIT e alertou para a letargia das redações. Não foi ouvido.
O modo como os jornais foram atropelados pelas inovações digitais pode dar a impressão de que a derrocada foi, antes de tudo, um descompasso tecnológico, mas a história real não é bem essa. O maior impacto da internet e seus passatempos sobre a circulação das notícias bem apuradas e bem editadas não foi meramente tecnológico, assim como não foi apenas econômico. O maior impacto se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso. A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional. Isso desnutriu o jornalismo, desnaturou a política e abriu caminho para as multidões que hoje têm prazeres gozosos com a difusão da mentira.
A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional
Veio assim uma alteração drástica da vida cultural. Os apelos sensuais do entretenimento tomaram para si latifúndios inteiros da linguagem. O pensamento, por sua vez, só conseguiu resistir, se é que foi capaz de resistir, em franjas exíguas. A imprensa, consequentemente, também encolheu. A crise atual do jornalismo só pode ser compreendida no quadro mais amplo da crise epistêmica – e esta, por sua vez, é inseparável da expansão predatória do entretenimento, que redundou na crise agônica da política democrática.
Ninguém ignora que a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos. No nosso tempo, entretanto, não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa política, até o ponto de desfigurá-la. A escala mudou a ordem dos fatores e desorganizou o equilíbrio entre eles. O efeito de circo e a dimensão teatral, que antes entravam na fórmula como um meio para amplificar a razão política, foram convertidos no veio dominante, no qual a retórica política se reduziu a um pálido papel de coadjuvante. O marqueteiro roubou o emprego do ideólogo.
Olhemos em volta. Quem é o narrador: o jornalismo ou a indústria da diversão? Quem é o comentador? Quem é o indutor? Quem dá o tom? A resposta é tão fácil quanto ácida. Quem traz as boas novas ou as más notícias é o entretenimento, que assumiu de vez o posto que antes cabia às manchetes. O entretenimento, com seus hábitos, seus templos, seus cânones e seu fundamentalismo contente, é quem confere a forma social da religião do nosso tempo. Ele modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show, e subjuga as pobres vozes jornalísticas, às quais só resta a condição humilhante de sair por aí mendigando cliques.
O negócio do entretenimento não fiscaliza o poder. Não precisa. Ele é o poder.
Conclusão? Ora, por favor. A conclusão inexiste. Uma sociedade que se nega a conhecer os fatos não é nada além de uma turba que renuncia à textura da política e se rende ao fanatismo. O que vem a seguir não é bem uma nova ordem, mas uma desordem obscura, sem paralelo com nada que já tenhamos visto. Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia – e, ironia das ironias, será também um mundo sem liberalismo.
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