Análise | Vanguarda desde a criação: o jornal que acordou antes do Brasil

Rompendo com a velha ordem monarquista, os idealizadores do ‘Estadão’ criaram uma força transformadora contra a estagnação, as oligarquias e a corrupção

O historiador Jorge Caldeira registrou em sua obra Julio Mesquita e Seu Tempo que, em março de 1927, o publisher do Estadão prestou contas aos leitores, demonstrando que o pagamento de publicidade de todos os governos somados representava apenas 3,5% da receita total da empresa. No mesmo texto, fustigava os órgãos de imprensa “governistas profissionais”, que igualou ao “despotismo, tranquilo na superfície, manso na aparência, mas, no fundo e nos efeitos, formidável e devastador como um tufão”.

Em seu século e meio de existência, antes mesmo de ser rebatizado de O Estado de S. Paulo, quando ainda se chamava A Província de São Paulo, o jornal foi fiel ao apego pelas liberdades que inflamou seus fundadores republicanos. No artigo em que presta contas, escrito quase 38 anos depois de a República ser instalada, o primeiro Mesquita a comandar a empresa, que até hoje pertence à sua família, enfatiza que a liberdade de opinião de um jornal só sobrevive com independência material, que deve ser buscada na livre iniciativa, na forma de assinaturas, anúncios e investimentos.

Os 21 fundadores do 'Estadão' retratados por Candido Portinari: desde o início, o jornal foi fiel ao apego pelas liberdades que inflamou seus idealizadores republicanos Foto: Reprodução

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Quase 20 anos antes da queda da Monarquia, os republicanos orgulhavam-se de inaugurar uma ferrovia financiada por suas próprias economias e por recursos da venda de ações ao povo. Desfaziam, assim, nas palavras de Caldeira, “as barreiras do sistema de crédito medieval imposto ao País”. Abolicionistas, liberais, modernizadores e democratas, os paulistas deserdados da Corte despertaram de um sono arcaico de país antes dos demais brasileiros.

A economia extrativista insistia em arrancar dos 720.000 africanos cativos, entre suor e sangue, a última gota de valor de um sistema superado em todos os demais países antes escravistas. O baronato era monopolista dos negócios do Império. Os paulistas acordaram antes do Brasil por serem empreendedores, defensores dos direitos individuais – entre eles, o de abrir empresas sem os entraves colocados pela burocracia imperial.

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Um dos alvos prediletos dos republicanos era Paulino José Soares de Souza, o visconde do Uruguai, ministro da Fazenda do Império. Teórico da estagnação econômica, fez tudo a seu alcance para manter a indústria e os transportes em estado rudimentar, com crescimento econômico beirando zero.

O visconde ecoava a crença dos barões sobre os perigos da abertura de empresas. Com a liberdade econômica, dizia, viriam as derivadas, em especial a mais temida, a liberdade dos brasileiros escolherem seus governantes em eleições livres.

‘Direito ao risco’

Muitos dos provinciais tinham vencido a falta de mão de obra, a escassez de crédito e as trancas regulatórias. Inspirados pelas teorias de Alfred Marshall (1842-1924), viam no empresário um ser diferenciado, alguém disposto a pagar “um preço exorbitante pelo direito de correr riscos”.

Enquanto seus concorrentes estrangeiros se financiavam a 3% nas casas bancárias de Londres, os juros cobrados aos poucos brasileiros com acesso ao crédito disponível no Brasil no final do Império chegavam a 24% ao ano. Isso nas quase inacessíveis fontes oficiais. Na usura, a conversa começava em 30%. Caso não pertencessem à elite agrária ou ao círculo da nobreza próximo ao monarca, ao empreenderem encontrariam toda a sorte de obstáculos e a hostilidade do trono.

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Com o século 19 se encaminhando para o fim, a contragosto do sistema, a vida econômica se modernizava rapidamente em São Paulo. O valor total das ações de empresas privadas superava o orçamento da Província paulista. Animados, os paulistas entraram em ebulição contra o sistema de produção arcaico da monarquia.

Julio Mesquita: ataque a jornais 'governistas profissionais' e apoio à Campanha Civilista de Rui Barbosa  

Antirracismo

Talvez o único conceito do materialismo histórico de validade incontestada é a primazia da mudança do mundo econômico para só depois surgir uma nova moral dominante. Foi assim com respeito ao trabalho escravo. Banido no resto das Américas, o regime de cativeiro resistiu no Brasil até tornar-se incompatível com a iniciativa privada em um regime liberal, republicano e democrático. Sua inadequação econômica precedeu a repulsa à sua existência.

À semelhança do ocorrido nas demais sociedades de passado escravocrata, o racismo no Brasil não diminuiu com a abolição. Discriminados, sem formação adequada aos novos tempos, muitos dos libertos ficaram presos na base da pirâmide social brasileira. Era quase impossível para os ex-escravizados competir com os imigrantes europeus – mão de obra branca, preparada, empreendedora, resiliente e ambiciosa.

A aceleração do fluxo de imigração reforçou entre muitos dos valorosos republicanos a visão predominante entre a maioria da população branca de que, iguais perante a lei, os negros eram racialmente inferiores. Eles haviam se revoltado contra o regime de privilégios da Monarquia lutando pela liberdade, o acesso à educação, o esforço como motor do progresso individual e, por consequência, do avanço coletivo. Foram parteiros de uma nova era. Seria inevitável, porém, conservarem muitos dos preconceitos da era cujo fim apressaram.

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Mesmo entre as melhores cabeças da República, as ideias sobre raça eram complexas, contraditórias e, aos olhos de hoje, francamente erradas. Nas páginas do Estadão, essas ideias evoluíram sempre mais rapidamente do que no Brasil e em outras partes do mundo. Para ficarmos com dois exemplos. Na francesa Sorbonne, o conceito de inferioridade racial foi ensinado aos alunos até 1950 – sob os protestos de um amigo dos donos do jornal, Paul Rivet (1876-1958), criador do Museu do Homem de Paris. Nos EUA, a Universidade Harvard manteve até 1970 pesquisadores defensores da existência de diferenças raciais de inteligência.

Desafio modernizador

Os republicanos empreendedores viram logo que, se tínhamos uma República, ainda nos faltavam cidadãos. O Estadão entendeu com clareza o desafio modernizador de que só pessoas livres, educadas, bem informadas por fontes independentes poderiam levar a República a um patamar sustentável. Encampando a causa civilista, o jornal apoiou a candidatura de Rui Barbosa (1849-1923) contra o marechal Hermes da Fonseca (1855-1923), que acusou em 1909 de representar “a ditadura militar, com todo o seu sinistro cortejo de desgraças e horrores”.

Naquele mesmo ano, o Estadão demonstrou que a liberdade econômica e cívica eram inseparáveis da igualdade de direitos individuais. Em 15 de novembro, no décimo aniversário da proclamação da República, publicou na capa um artigo denunciando como “monstruosa iniquidade” a proposta do governo estadual de “aumentar os vencimentos dos professores, diminuindo-se, ao mesmo tempo, os das professoras”. O texto criticava “os românticos e rotineiros a propagarem que a mulher se desloca sempre que deixa o recesso da família e da casa”. O artigo elogiava a receptividade francesa aos movimentos feministas e sua bandeira de “Para igual trabalho, igual salário”. Foi uma precoce manifestação do ímpeto transformador do jornal, que se revelaria muitas vezes em sua história.

Com a República em construção, os republicanos de O Estado de S. Paulo encarnaram o papel do jornalismo de acordar mais cedo de modo a ser, na definição de Rui Barbosa, “os olhos e ouvidos da Nação”.

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Análise por Eurípedes Alcântara

É diretor de Jornalismo do Estadão

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