Em um célebre ensaio publicado em 1924, quando esta República ainda pelejava para se firmar como tal, Alceu Amoroso Lima escreveu que “o Brasil se formara às avessas”. Na visão do escritor e crítico literário, este é um país peculiar, pois “tivera Coroa, antes de ter Povo. Tivera Parlamentarismo, antes de ter eleições. Tivera escolas superiores, antes de ter educação popular. Tivera bancos, antes de ter economias. Tivera conceito exterior, antes de ter consciência interna”. O Brasil, em suma, “começara pelo fim”.
Um século depois, a reflexão do “Tristão de Ataíde” segue tão instigante como decerto era quando veio a público pela primeira vez. Sua atualidade é permanente, pois está amparada por sólida base factual. Ademais, serve como um convite aos leitores para que observem criticamente o modelo institucional e as estruturas de poder político adotadas no Brasil, vis-à-vis as de outros países mais desenvolvidos, não raro resultantes de longos processos de construção da base para o topo, ou seja, que contaram com uma efetiva participação popular.
O que se discute é a aptidão do Estado, vale dizer, do poder político institucional, para atender aos justos anseios dos cidadãos por liberdade, igualdade de todos perante a lei e oportunidades de crescimento individual, condição indispensável para o desenvolvimento coletivo da Nação.
Para O Estado de S. Paulo, essa reflexão é mais do que atual, é a sua razão de existir. A história sesquicentenária deste jornal se confunde com a própria história da República que ajudou a fundar, ainda como A Província de São Paulo, a partir do último quarto do século 19. Desde então, o Estadão não tem feito outra coisa senão defender os princípios e valores que acredita serem certos e, assim, ser a consciência crítica de seu tempo, sobretudo ao denunciar todas as formas de exercício arbitrário do poder. Para prosperar, qualquer sociedade precisa ser livre antes de tudo. E não há sociedade que possa ser livre sem que tenha acesso a informações apuradas como verdadeiras que a permitam tomar decisões conscientes sobre seu próprio destino.
A pergunta que se impõe hoje é: estão nas mãos da sociedade as rédeas de seu próprio destino?
O arranjo político e institucional consagrado pela Constituição de 1988 cumpriu com louvor o seu papel em um dos momentos mais dramáticos da história republicana do País. Todavia, a Lei Maior já não é capaz de servir como o marco jurídico mais adequado para o desenvolvimento do Brasil no século 21. Os entraves contidos no texto constitucional, sucintamente, estão materializados em um sistema de governança há muito disfuncional. O chamado “presidencialismo de coalizão”, na expressão do cientista político Sérgio Abranches, perdeu-se em meio à deterioração da qualidade da representação político-partidária nos últimos anos. O que se vê hoje é uma versão ainda mais degenerada do patrimonialismo que desafia o tempo e a ideia mesma de República com uma aberração conhecida como “orçamento secreto” – a principal engrenagem das relações entre os Poderes Executivo e Legislativo.
Esse estado de coisas, em que o poder é exercido em seu próprio nome, como em um carrossel a perpetuar nosso atraso como país, só será alterado quando a sociedade não estiver mais sequestrada por sucessivas crises de governabilidade que dificultam, quando não interditam, o debate racional e republicano sobre o Brasil que se pretende construir para o futuro, crises essas não raro causadas por motivações mesquinhas.
Esse dia chegará quando houver, como defende este jornal, uma ampla reforma do sistema de governo e de representação política, vale dizer, a adoção do parlamentarismo combinado com o sistema de voto distrital – que garantirá eficiência administrativa, redução da fragmentação partidária, construção de um ambiente propício às grandes reformas de que o País necessita e, não menos importante, mais proximidade entre cidadãos e seus representantes, culminando em maior responsabilidade no exercício do múnus público.