
O ensaísta e cientista político franco-italiano Giuliano da Empoli defende que as mesmas regras que garantem o funcionamento das democracias no mundo real devem ser aplicadas ao ambiente digital. Nesse contexto, ele destaca que o Brasil tem se mostrado um exemplo, assumindo uma posição de destaque na luta contra os excessos da internet.
“O Brasil exerce um papel de liderança. Não apenas porque vocês sentiram na pele as consequências do extremismo digital, mas também porque têm instituições, como o Supremo Tribunal Federal, que tomaram ações decisivas contra os piores abusos digitais”, afirma o especialista, autor de Os engenheiros do caos e O mago do Kremlin.
Para Giuliano, as novas tecnologias poderiam ser usadas para fomentar o consenso em vez de alimentar o extremismo. “O problema não é técnico – soluções sempre existem –, mas sim de vontade política”, observa ele, em entrevista ao Estadão.
O cientista político alerta que cada país tem suas “alucinações políticas”, que acabam se tornando ferramentas dos “engenheiros do caos”. No entanto, o real problema não está na existência das teorias da conspiração, mas na responsabilidade dos atores – principalmente as plataformas digitais – que as amplificam.
“Nesse aspecto, chegamos a um ponto de inflexão. O novo governo dos EUA está ameaçando punir qualquer país que se atreva a regular e responsabilizar as plataformas do Vale do Silício. Neste momento, o futuro da democracia depende da coragem que, tanto na Europa quanto no Brasil, governos, parlamentos e juízes terão para não se curvar ao diktat (determinação imposta por meio da força) da Casa Branca.”
Veja, abaixo, os principais trechos da entrevista:
O que está na raiz da polarização que vivemos hoje? Ela é um reflexo espontâneo da sociedade ou um fenômeno intencionalmente alimentado por estratégias políticas?
Se Lenin dizia que a Revolução Russa foi o resultado da soma de sovietes e eletricidade, minha tese é que as convulsões políticas atuais são fruto da combinação de raiva e algoritmos. A raiva de uma parte do eleitorado é pré-existente, mas os algoritmos das plataformas digitais funcionam como um multiplicador, servindo a atores políticos que sabem como explorá-los.
A polarização é sempre um problema ou pode ter efeitos positivos sobre a democracia?
É necessário algum grau de polarização para a democracia, para que as diferentes opções sejam claramente distinguidas umas das outras e os eleitores possam realmente fazer uma escolha. O problema é quando a polarização se concentra nas pessoas, e não nas propostas políticas. Aí ela vira um tipo de show business, e as lideranças políticas se tornam celebridades e são avaliadas mais pela capacidade de chamar a atenção do que por suas habilidades de governar.

A polarização é uma característica inevitável da política contemporânea? Quais estratégias poderiam ajudar a reconstruir um espaço de debate mais plural e menos radicalizado?
O problema é que o debate público tem se deslocado cada vez mais para a esfera digital, que funciona como uma grande máquina de publicidade para as mensagens mais extremas. E as dinâmicas políticas que surgem online acabam influenciando a mídia e a competição política fora da internet. O movimento que precisamos seria exatamente o oposto: aplicar à esfera digital as mesmas regras que garantem o funcionamento das nossas democracias no mundo real. Nesse aspecto, o Brasil exerce um papel de liderança. Não apenas porque vocês sentiram na pele as consequências do extremismo digital, mas também porque têm instituições, como o Supremo Tribunal Federal, que tomaram ações decisivas contra os piores abusos digitais.
A polarização no Brasil segue os mesmos padrões de outros países ou há características próprias?
O Brasil tem sua cultura política própria, distinta da de outros países, mas o que chama a atenção neste momento é que as mesmas dinâmicas políticas estão acontecendo em contextos muito diferentes, da Itália ao Brasil e à Coreia do Sul. Embora cada país tenha suas particularidades, as lógicas da disputa digital são as mesmas em qualquer lugar – e à medida que a importância do ecossistema digital cresce em todos os lugares, os padrões de polarização se parecem cada vez mais. Não é à toa que as mesmas palavras da moda apareçam em toda parte: o “stop the steal”, sobre a suposta fraude eleitoral (nos EUA), por exemplo, ou teorias da conspiração que, com diferentes atores, parecem ser copiadas umas das outras.
O problema é quando a polarização se concentra nas pessoas, e não nas propostas políticas. Aí ela vira um tipo de show business, e as lideranças políticas se tornam celebridades e são avaliadas mais pela capacidade de chamar a atenção do que por suas habilidades de governar
Por que a extrema direita tem mais sucesso em mobilizar as pessoas do que o centro e a esquerda?
Ao contrário do passado, a esfera pública digital favorece as ideias mais extremas, o que beneficia aqueles que as produzem. Em segundo lugar, o descrédito das elites políticas empurra os eleitores para forças que foram excluídas da gestão do poder nas últimas décadas. Por isso os movimentos de extrema direita, que antes estavam relegados às margens do sistema, podem novamente se tornar atraentes como uma alternativa radical ao sistema existente.
O senhor mostra que os estrategistas da extrema direita entenderam o poder das redes sociais antes dos outros. O que exatamente eles fazem de diferente?
No sistema anterior, os estrategistas de extrema direita estavam essencialmente excluídos do debate público que ocorria na mídia tradicional. Por isso, como todos os outsiders, eles se empenharam em conquistar a nova fronteira digital, onde chegaram antes dos outros e entenderam as novas regras do jogo antes de todos. Em particular, perceberam que a transgressão – e a indignação resultante das forças estabelecidas – é um motor de crescimento muito poderoso. É impressionante como partidos tradicionais e jornalistas ainda caem nas armadilhas armadas por esses engenheiros do caos e acabam amplificando suas mensagens em vez de combatê-las.
A guerra cultural é hoje o principal campo de batalha das disputas políticas. O centro e a esquerda devem tentar competir nesse terreno ou precisam buscar novas formas de engajamento?
Na política, quem define as regras do jogo geralmente vence. Um dos talentos dos líderes nacional-populistas é identificar questões que não foram exploradas politicamente e transformá-las em armas: em áreas como saúde, ciência e educação, por exemplo. O centro e a esquerda não podem se esquivar desses debates; no entanto, devem também ser capazes de abrir novas discussões que revelem as contradições dos nacional-populistas.
Os políticos falam muito sobre reviver o centro democrático como um espaço de moderação e diálogo. Há espaço para esse centro ou isso se tornou uma ideia utópica?
A minha tese é que, com o advento da era digital, a política passou de uma dinâmica centrípeta – que favorecia as forças que buscavam o centro para atrair a maioria – para uma dinâmica centrífuga, que gera energia com mensagens cada vez mais extremas e polariza os eleitores. Reverter essa dinâmica não é impossível, mas exige criar um espaço público que valorize a moderação e o compromisso. Taiwan é um exemplo interessante de como as novas tecnologias podem ser colocadas a serviço da construção de consenso em vez de fomentar o extremismo. O problema não é técnico – soluções sempre existem –, mas sim de vontade política.
As dinâmicas políticas que surgem online acabam influenciando a mídia e a competição política fora da internet. O movimento que precisamos seria exatamente o oposto: aplicar à esfera digital as mesmas regras que garantem o funcionamento das nossas democracias no mundo real
O que está por trás da queda da confiança nas instituições democráticas? Essa desconfiança é resultado de falhas institucionais ou de uma estratégia para deslegitimá-las?
A confiança não desapareceu, mas mudou de foco: saiu da dimensão vertical (autoridade, instituições, elites) para a dimensão horizontal, ou aparentemente horizontal, como as redes sociais. Não me parece que esse movimento dependa tanto do desempenho das instituições, mas de um impulso poderoso, tecnológico e ideológico, que promove a desintermediação em todos os níveis. O problema é que, por trás da aparência de imediatismo e desintermediação, existem na verdade novos poderes e formas de influência que são muito menos reconhecíveis e transparentes do que seus antecessores.
O senhor argumenta que a crise da democracia não é tanto sobre quebras institucionais diretas, mas sobre uma erosão gradual da credibilidade institucional. Como reverter esse processo?
O primeiro passo é reconhecer que as regras do jogo mudaram. Enquanto as forças democráticas continuarem tratando figuras como Trump e Bolsonaro como fenômenos passageiros, em vez de sintomas de uma mudança profunda, será difícil reagir. A reeleição de Trump deixou claro o que já dava para imaginar: como (o escritor e filósofo) Joseph de Maistre disse sobre a Revolução Francesa, não estamos diante de um evento, mas de uma época. Por isso, não se trata de voltar atrás, mas de adaptar as instituições democráticas do século 20 aos desafios da nova era.
O senhor analisa como os populistas transformaram a política em um jogo de emoções. O medo e a indignação são mais eficazes que a esperança e a racionalidade?
Isso é verdade, mas não é nada novo. As emoções sempre tendem a prevalecer sobre a racionalidade, e as emoções negativas, especialmente a raiva e o medo, têm vantagem sobre as positivas. Ao longo dos anos, no entanto, houve momentos em que líderes e movimentos que ofereciam esperança e visões de progresso conseguiram superar essa desvantagem inicial. Apesar de tudo o que disse até aqui, acho que essa possibilidade ainda existe.
No Brasil, o medo do “comunismo” é combustível para o bolsonarismo, apesar de não haver um projeto comunista em discussão. Como essa narrativa, que não se baseia em fatos, pode ser desmontada?
Cada país tem suas alucinações políticas que se tornam a ferramenta dos engenheiros do caos. Na Coreia do Sul são os traidores pagos pela Coreia do Norte. Nos Estados Unidos, a conspiração de pedófilos que, segundo os seguidores do QAnon, governa o mundo. Mais uma vez, o problema não é a existência dessas teorias da conspiração absurdas, mas a responsabilidade dos atores – principalmente as plataformas digitais – que as amplificam. Nesse aspecto, chegamos a um ponto de inflexão. O novo governo dos EUA está ameaçando punir qualquer país que se atreva a regular e responsabilizar as plataformas do Vale do Silício. Neste momento, o futuro da democracia depende da coragem que, tanto na Europa quanto no Brasil, governos, parlamentos e juízes terão para não se curvar ao diktat (determinação imposta por meio da força) da Casa Branca.