‘Mundo polarizado acabou, temos hoje duas visões de futuro incompatíveis entre si’, diz Marcos Nobre

Para professor de Filosofia da Unicamp, a disputa da próxima década será sobre qual dos dois lados vai conseguir conquistar mais pessoas para seu projeto de futuro; e há dúvidas se a democracia vai resistir ao processo

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Foto do author Guilherme Caetano

Foto: Rafael Arbex / Estadão
Entrevista comMarcos NobreProfessor titular de filosofia da Unicamp e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

BRASÍLIA – O mundo polarizado ficou para trás, e o que o Brasil e outros países democráticos vivem hoje é uma divisão na sociedade entre dois grupos que não compartilham mais as mesmas premissas. E não há terreno comum para certos acordos.

Essa é a avaliação de Marcos Nobre, professor titular de Filosofia da Unicamp e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), para quem existe hoje uma divisão entre duas concepções de futuro que são incompatíveis entre si. “É uma disputa sobre qual lado vai conseguir conquistar mais pessoas do outro lado. E não sei se nesse processo a democracia vai ser mantida nos países onde ela ainda existe”, diz ele.

Em entrevista ao Estadão, Nobre afirma que o Brasil vive de crises sobrepostas desde 2008, um fenômeno que ocorre em nível global, e que a ascensão dos meios digitais, com os quais a extrema direita vem sendo bem-sucedida, coincide com a crise da democracia. E critica a insistência de progressistas de chamarem de fascistas aqueles de quem discordam.

Nobre diz que a extrema direita com Donald Trump, nos Estados Unidos, tem conseguido apresentar um projeto de futuro que o Partido Democrata de Joe Biden, e a esquerda em todo o mundo, ainda não conseguiram definir. Para ele, a questão distributiva está no cerne da divisão, e a direita vem conseguindo convencer as pessoas de que políticas de redistribuição são injustas. A respeito dos caminhos tomados por Brasil e Estados Unidos na última década, Nobre vê um descompasso desde 2023, com o julgamento de Jair Bolsonaro na Justiça Eleitoral e, mais recentemente, com a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) por tentativa de golpe.

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Veja, abaixo, os principais trechos da entrevista:

O senhor não usa o termo polarização para descrever a conjuntura em que o País se encontra, mas “divisão”. Por quê?

Essa questão não diz respeito só ao Brasil, mas aos países ainda democráticos. A metáfora da polarização implica dois polos no mesmo campo magnético. Esse mundo acabou. O que nós temos hoje são dois campos diferentes, sem um terreno comum a partir do qual se polariza. Há uma divisão sobre como deve ser o futuro, são duas concepções incompatíveis. Talvez ainda nos próximos 20 anos vamos ter uma disputa sobre qual desses dois lados vai conseguir conquistar mais pessoas do outro lado para o seu projeto de futuro. E não sei se nesse processo a democracia vai ser mantida nos países onde ela ainda existe.

Quais causas nos levaram a essa divisão?

Principalmente por causa da crise global de 2008, que abalou a maneira de funcionar do capitalismo e com a qual estamos lidando até hoje, porque ela ainda não tem uma solução em termos de futuro. É uma crise agravada por processos como a pandemia e, no caso brasileiro, pela crise econômica de 2015-16, a Lava Jato, etc. Como disse o economista Adam Tooze (professor da Universidade Columbia), é uma policrise, crises que se sobrepõem. O resultado é uma divisão política na qual duas imagens de futuro incompatíveis estão se construindo. Como elas não estão ainda perfeitamente delineadas, a gente tem esse tipo de acirramento também. Há uma transição para uma nova forma de regulação global, e essa construção está sendo feita no embate, no conflito entre essas duas visões.

A metáfora da polarização implica dois polos no mesmo campo magnético. Esse mundo acabou. O que nós temos hoje são dois campos diferentes, sem um terreno comum a partir do qual se polariza. Há uma divisão sobre como deve ser o futuro, são duas concepções incompatíveis

O senhor costuma dizer que a ascensão do mundo digital coincide com o que a gente chama de crise da democracia. Pode nos explicar melhor?

A crise de 2008 veio junto de uma digitalização acelerada da vida. Hoje há uma nova maneira de mobilizar as pessoas que não é exatamente aquela forma partidária tradicional. A extrema direita foi bem-sucedida em usar as ferramentas digitais contra aquilo que ela identificou como o sistema. Esse discurso foi direcionado ao novo progressismo (aliança de setores da esquerda institucionalizada e da direita moderada), justamente aqueles que detinham o poder. A esquerda foi colocada na posição de sistema, o que é paradoxal, porque ela foi classicamente identificada como uma força contra o sistema. Agora você não precisa mais dos partidos tradicionais para mobilizar, formar opinião e conseguir o voto das pessoas. O que temos hoje é uma aliança do bolsonarismo, que traz todas as redes de um partido digital (não institucionalizado, não inscrito na Justiça Eleitoral), com o Partido Liberal, que é um partido tradicional. Essa aliança é muito efetiva como estratégia eleitoral. Não tem hierarquia no partido digital, não tem uma ordem vinda de cima, você tem a participação de pessoas comuns. E o progressismo não tem isso.

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O senhor acha que a extrema direita também tem como aliado o algoritmo das plataformas digitais, que acaba favorecendo publicações mais sensacionalistas ou radicais?

Sim, e daí o desespero do lado progressista em regular as redes, o que de fato é uma coisa necessária. Mas o progressismo tem um problema. Se ele jogar o jogo do algoritmo, ele já perdeu, porque ele vai acabar concordando com as táticas e com os instrumentos da extrema direita. E se ele não conseguir mudar a lógica das redes, vai continuar sendo minoritário. É uma situação complicada, porque o progressismo não consegue ter um partido digital.

Por que não consegue?

Por duas razões: é muito difícil entrar na lógica do algoritmo e competir com a extrema direita; e porque o progressismo tem partidos tradicionais muito bem estabelecidos. Se ele criar um partido digital, significa abrir mão do controle do seu próprio partido. É muito diferente para partidos que nascem digitais. Poucos deles se institucionalizam, como o Cinco Estrelas, na Itália, ou o Podemos, na Espanha. Partidos que nascem digitais e continuam só digitais têm uma vantagem competitiva gigantesca. O partido digital bolsonarista não presta contas à Justiça Eleitoral. Como você vai fazer o controle do seu financiamento, por exemplo?

O senhor tem dito que o progressismo se tornou “uma série de dogmas que a gente quer enfiar goela abaixo das pessoas” e que a extrema direita “sabe escutar as pessoas e produzir um discurso em que elas se sentem representadas”. Por que isso acontece?

Qual tem sido a reação do progressismo com quem discorda dele? Chamar a pessoa de fascista, autoritária. Bom, se você fizer isso, significa que você já perdeu politicamente, porque a política é justamente ganhar as pessoas. Existe, de fato, uma cristalização das posições em que você não consegue ir além da sua própria bolha. As pessoas têm mais margem de participar e debater no partido digital bolsonarista do que dentro do progressismo. A extrema direita entendeu muito bem que na internet você não dá ordem. Não funciona assim. O que temos é uma estratégia de tentativa e erro. O tempo inteiro tentando, vendo o que cola e o que não cola. E, ao mesmo tempo, aprendendo com isso, para quando tentar a próxima ação, saber o que dá certo e não dá. O episódio do Pix deu certo, mas centenas de ações não deram. Existem casos no progressismo de pessoas que sabem produzir esse tipo de proposta de uso das redes, mas são minoritárias, e a extrema direita se consolidou na década de 2010 fazendo isso. Há uma superioridade, um desequilíbrio na disputa política. Enquanto um lado só tem partidos tradicionais, o outro tem um partido tradicional e um partido digital combinados. O resultado, em termos eleitorais, é muito favorável.

Marcos Nobre, professor titular de filosofia da Unicamp e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) Foto: Alex Silva/Estadão

O senhor tem defendido que o campo progressista precisa adotar uma tática dupla: combater a extrema direita com quem puder se aliar e, ao mesmo tempo, entregar um programa, construir uma imagem de futuro. Por que o campo progressista não consegue colocar isso em prática?

Não conseguir ter partidos digitais é uma delas. Mas acho que a gente deveria se concentrar no futuro. Até a segunda eleição de Trump, todo mundo tinha uma imagem de que as eleições dele (em 2016) e de Bolsonaro (em 2018) eram o ponto fora da curva, e que Biden e Lula seriam uma volta à normalidade. Esse discurso caiu por terra. O novo progressismo perdeu tempo precioso porque queria simplesmente manter o que existia nos anos 2000. Qual era o programa do Lula? Voltar aos anos 2000, e foi assim que ele se elegeu. Isso não é programa de futuro. Enquanto isso, a direita sem medo (direita tradicional, que não tem medo de se aliar à extrema direita) estava formulando um programa. No Brasil nem tanto, mas se você olhar para os Estados Unidos, o Projeto 2025 (lista de propostas para o novo governo Trump) tem um programa inteiro de futuro, uma base sólida e concreta do que fazer. E o progressismo não produziu programa até agora. Temos duas imagens de futuro completamente diferentes, e o que está em jogo é a questão distributiva: como você vai redistribuir os recursos que estão disponíveis e que são escassos. O novo progressismo diz: “nós precisamos redistribuir”. A direita sem medo diz: “políticas de redistribuição são injustas, porque favorecem algumas pessoas e desfavorecem outras”. E essa direita tem conseguido convencer uma maioria do eleitorado em muitos países, como os Estados Unidos, de que, se os recursos são escassos, é melhor não redistribuir para ninguém. Parece um absurdo, mas se você não entender o que está levando as pessoas a votarem no Trump, não vai conseguir entender como fazer um programa (contrário). Existe a chance de (o progressismo) fazer um programa? Agora existe, justamente porque Trump ganhou a eleição, e finalmente o progressismo vai poder se apresentar como oposição (a esse projeto de futuro).

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O senhor fala em entregar uma imagem do futuro, mas a extrema direita parece adotar um projeto que se baseia em voltar no tempo. Bolsonaro mesmo, enquanto presidente, já disse que teria de destruir muita coisa antes de começar a construir. Que imagem do futuro o senhor vê governos como o de Bolsonaro ou Trump entregando aos seus eleitores?

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Trump usa imagens do passado para esse programa positivo, mas ele está olhando para o futuro. É uma ideia de como deve ser a organização global a partir de agora e qual é o papel da principal potência nessa reorganização global. Então, é um programa positivo. O que sair disso vai ser uma reorganização do capitalismo, à qual o novo progressismo vai ter de se opor. Por isso que é muito importante compreender o que está acontecendo agora no governo de Trump. Acompanhá-lo de perto vai permitir justamente a construção desse novo progressismo.

O senhor vê saída para esse mundo dividido?

Tem saída, o problema é que ela não está disponível. Ela tem de ser construída. A direita sem medo está implementando o seu programa, e a transição para uma nova ordem global está sendo realizada no momento em que nós estamos falando. Para o novo progressismo, o programa vai sair da oposição que fizer à direita sem medo. Você pode dizer: “vai dar tempo?” Essa é outra questão. Existe uma aliança hoje no mundo para preservar a democracia e impedir o colapso ambiental, mas um projeto de futuro tem de ir além disso. Não pode ser simplesmente defender o que existe e impedir o desastre.

Existe uma aliança hoje no mundo para preservar a democracia e impedir o colapso ambiental, mas um projeto de futuro tem de ir além disso. Não pode ser simplesmente defender o que existe e impedir o desastre

As investigações contra Bolsonaro chegaram ao STF. Ao mesmo tempo em que, se comprovada a tentativa de golpe, os responsáveis devem ser punidos, por outro lado, é razoável imaginar que um ex-presidente preso pode recrudescer a divisão no País. Qual cenário o senhor vê pela frente?

Primeiro, eu preciso fazer um elogio às instituições brasileiras. O Brasil sempre esteve dois anos atrás dos Estados Unidos. Trump se elege em 2016; Bolsonaro, em 2018. A insurreição contra a democracia nos Estados Unidos foi em janeiro de 2021; aqui, em janeiro de 2023. Mas a gente fez uma coisa que os Estados Unidos não conseguiram. Bolsonaro foi declarado inelegível e denunciado por tentar abolir a democracia. Isso não é pouca coisa. A minha impressão é que, do ponto de vista do sistema político, a solução ideal para eles é ter Bolsonaro inelegível, mas não preso. Porque eles conseguem os votos de Bolsonaro, mas não colocam a base bolsonarista numa posição em que ela pode disputar a hegemonia da aliança da direita sem medo. Se isso não acontecer, (imagino que haja) uma candidatura a presidente com algum nome de Bolsonaro na vice, como aconteceu na Prefeitura de São Paulo.

O presidente Lula sofreu um tombo inédito na sua popularidade no último mês. Quais efeitos isso tem para a governabilidade hoje e para as eleições de 2026, na sua opinião?

O governo Lula não conseguiu ainda produzir uma imagem de futuro para as pessoas. Você tem o lema da reconstrução, (mas as pessoas dizem) “te dei dois anos para reconstruir, você me promete o que para depois de 2026?”. Só que produzir essa imagem de futuro sem ter um partido digital é muito difícil, porque você não consegue chegar nas pessoas. Elas se informam hoje, por mais paradoxal que possa parecer, como 100 anos atrás, na década de 1920, em que cada partido tinha o seu jornal, a sua rádio, as suas comunidades de bairro. Quando as pessoas recebiam a informação, estas já chegavam interpretadas. É o que a gente chama hoje de bolha. Isso mudou no período posterior à Segunda Guerra Mundial, quando as pessoas passaram a se informar pelos mesmos canais de televisão, que transmitiam as informações mais ou menos da mesma maneira, segundo um critério jornalístico de objetividade que tinha se tornado dominante. Nós estamos de volta a uma situação em as pessoas não consomem mais apenas fatos, e sim fatos e interpretação juntos. E se você tem isso, você precisa de um partido digital para chegar às pessoas. É claro que o PT consegue chegar à sua militância, mas não passa dela, e o bolsonarismo consegue ir além do bolsonarismo.

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