Polarização do sistema político oferece espelho distorcido de problemas reais, afirma Rodrigo Nunes

Autor de ‘Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição’ alerta para crescimento do absenteísmo no mundo e diz que guerra cultural é a ‘política continuada por outros meios’

PUBLICIDADE

Foto do author Bianca Gomes
Foto do author Guilherme Caetano
Foto: Divulgação
Entrevista comRodrigo Nunes Professor da Universidade de Essex, no Reino Unido, e da PUC-Rio

SÃO PAULO E BRASÍLIA – A polarização do sistema político oferece um espelho distorcido dos reais problemas e oposições que marcam a sociedade, avalia Rodrigo Nunes, professor de Teoria Política na Universidade de Essex, no Reino Unido, e autor de Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição. Em entrevista ao Estadão, Nunes chama a atenção para o crescimento do absenteísmo no mundo e o descompasso entre as opções oferecidas pelo sistema eleitoral e as preocupações da população.

“O apoio do Trump não cresceu significativamente de 2016 para cá. O que aconteceu foi que os eleitores do Partido Democrata não eram suficientemente entusiasmados por aquilo que Hillary Clinton e Kamala Harris representavam”, afirma o professor, que também leciona na PUC-Rio e é autor de Nem Vertical Nem Horizontal: Uma Teoria da Organização Política.

Nunes reconhece o impacto da guerra cultural, mas pondera que ela não diz respeito à cultura, e sim à política. “A guerra cultural é a política continuada por outros meios e é uma solução que funciona muito bem, especialmente para a direita.”

Veja, abaixo, os principais trechos da entrevista:

Publicidade

O que o senhor tem refletido sobre o fenômeno da polarização? Trata-se de um processo mais amplo ou algo incorporado em nossa política atual?

A primeira questão é se estamos falando de oposições que existem no interior do sistema político ou de oposições que existem no interior da sociedade. Vivemos em tempos que tendem à polarização, mas eu não diria que, por exemplo, a oposição entre PT e extrema direita oferece a representação mais adequada das verdadeiras polarizações que existem no mundo hoje.

Como assim?

A polarização no interior do sistema político oferece um espelho distorcido dos reais problemas e das reais oposições com as quais nos deparamos. As grandes questões hoje são a concentração de poder econômico, de que segue a concentração de poder político e a crise ecológica. (A oposição) é entre os poucos que se beneficiam e uma massa crescente de excluídos de um sistema e um mundo em que cabe cada vez menos gente. O que se vê no debate político brasileiro e internacional não reflete em nada esses grandes problemas de fundo. É um espelho assimétrico, porque um dos polos é extremamente ousado nesse processo de acelerar a desintegração social em benefício dos poucos, e o outro polo vai a reboque, sem a capacidade de propor as suas próprias iniciativas. A vitória de Donald Trump, por exemplo, vai na contramão de uma resposta. (Ele vem apostando em) desmontar arranjos globais, promover a pouca regulamentação que já se conseguiu fazer em torno do aquecimento global, aumentar a extração de combustíveis fósseis e expandir indústrias que são altamente poluentes.

Rodrigo Nunes, autor de 'Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição' Foto: Divulgação

Há alguma característica diferente da polarização no Brasil em relação ao que se tem em outros países?

Houve um momento em que sim. O PT, por exemplo, é um partido que nasce na contramão da história. É um partido de massas, de origem operária popular, criado num momento em que os grandes partidos desse tipo estão em decadência na maior parte do mundo, particularmente no norte global. Mesmo que o PT estivesse nessa mesma trajetória de se deslocar ao centro do restante da esquerda global, por conta dessa história diferente ele ainda se apresentava como um partido mais radical do que quase qualquer grande partido de esquerda no Ocidente. Essa é uma particularidade. Na última década, enquanto a esquerda no mundo todo continuou a caminhar para o centro, a direita caminha cada vez mais para a extrema direita. E o terceiro governo Lula demonstra não haver mais muito elã transformador no interior do PT. Significa que a gente não está diante de uma polarização (normal), mas de uma extremamente assimétrica, porque temos uma extrema direita cada vez mais radical, e uma centro-esquerda que joga apenas na defesa, porque calha de ser a única força política existente no Brasil hoje em dia que tem condições de barrar o retorno da extrema direita.

Quais os prejuízos de uma política concentrada em dois polos aqui no Brasil, o PT e a extrema direita?

A resposta mais comum é dizer que a polarização é um problema porque as boas soluções estão sempre no centro, na conciliação. E à medida que o embate político se move cada vez mais para os extremos, você elimina esse espaço onde as boas soluções aparecem. Eu penso de outra maneira. À medida que uma polarização que não reflete as reais oposições existentes na sociedade se congela, o que desaparece não é o bom senso, mas a possibilidade de dar as respostas necessárias. Hoje em dia não existe solução de meio-termo para a questão ambiental. Num relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) de 2018, por exemplo, dizia-se que temos uma década para reduzir drasticamente as emissões, se quisermos evitar um aumento da temperatura global de mais de 1,5ºC. Um slogan do movimento ambiental diz: “ganhar devagar é igual a perder”. Nesse caso, não existe solução meia-sola. Todas as boas soluções necessariamente serão soluções radicais.

Publicidade

Se Lula e Bolsonaro não conseguem representar essas reais polarizações da sociedade, por que eles parecem ser as duas únicas opções para se votar?

Uma resposta possível é dizer que a política não é apenas um instrumento neutro, um canal de transmissão de desejos da sociedade, mas ela reorganiza os desejos da sociedade. Um exemplo disso é toda a questão do conservadorismo moral, dos costumes. O que isso muda na vida do trabalhador que acorda cedo, pega transporte público lotado, dorme pouco e não tem opções de lazer? Nada. Mas num momento de forte polarização, a construção de identidades cada vez mais consolidadas, que cada vez mais se definem por oposição uma à outra, cada uma delas abraça aquilo que a outra exclui, e isso reorganiza aquilo que as pessoas sentem, desejam e acham ser prioritário.

Então essa guerra cultural tem força?

Tem. A origem da guerra cultural está nos Estados Unidos dos anos 1960, quando o Partido Democrata – até então o partido do sul racista branco – se torna o partido do movimento dos direitos civis e passa a abrigar uma massa de votantes negros que estão naquele momento sendo incluídos como eleitores. Isso obriga o Partido Republicano – que tinha sido o partido a favor da abolição da escravidão – a um realinhamento para ocupar esse vácuo, e ele passa a mobilizar o ressentimento dos eleitores brancos, deixados para trás. Isso significa que o Partido Republicano está respondendo às demandas econômicas e sociais desse eleitorado? Não. Existe uma confusão muito grande quando se fala em guerra cultural. Não se trata de cultura, trata-se de política. A guerra cultural é a política continuada por outros meios e é uma solução que funciona muito bem, especialmente para a direita.

A gente não está diante de uma polarização (normal), mas de uma extremamente assimétrica, porque temos uma extrema direita cada vez mais radical, e uma centro-esquerda que joga apenas na defesa, porque calha de ser a única força política existente no Brasil hoje em dia que tem condições de barrar o retorno da extrema direita

E por que exatamente é a extrema direita quem cresce, quem consegue mobilizar mais e se conectar com a população?

Não é toda a verdade dizer que a extrema direita está crescendo. A gente tem visto no Brasil que a base de Bolsonaro parece se manter constante, enquanto a base de Lula parece estar em crise, começando a desidratar. O que a gente tem visto no mundo é o crescimento do absenteísmo: um descompasso muito grande entre as duas opções que são oferecidas pelo sistema eleitoral e aquilo que realmente preocupa ou ocupa a população. O apoio a Trump não cresceu significativamente de 2016 para cá. O que aconteceu foi que os eleitores do Partido Democrata não eram suficientemente entusiasmados por aquilo que Hillary Clinton e Kamala Harris representavam. A eleição do Biden foi uma exceção, um momento em que a base do Partido Democrata esteve suficientemente preocupada com a possibilidade de uma outra vitória de Trump. E a gente tem visto isso cada vez mais. Agora, na Alemanha, a AfD, o partido de extrema direita, chegou em segundo lugar porque houve uma participação recorde nas eleições. O problema é fundamentalmente esse.

O senhor vê espaço para o centro se viabilizar eleitoralmente?

Do mítico centro liberal brasileiro pode-se dizer aquilo que Gandhi disse da civilização ocidental: seria uma ótima ideia. Na prática, ele existiu em pouquíssimos momentos da história brasileira, em momentos em que havia condições materiais para isso e uma disputa interna às elites. Essa condições não existem agora. Qualquer pessoa hoje pregando a razoabilidade e a racionalidade estará pregando para ouvidos pouco dispostos a ouvir. Todo mundo sente que as muitas mudanças necessárias só serão possíveis se esse sistema for chacoalhado com muita força. E todo mundo sabe que, na hora H, o mítico centro tende a acabar se aliando à direita, mesmo que ela seja extrema.

Publicidade

PUBLICIDADE

A esquerda também deveria, por exemplo, entrar nessa guerra cultural e radicalizar?

A grande dificuldade para alguém que se encontra diante de uma política de polarização assimétrica bem-sucedida é justamente esse dilema. Ou você aceita os termos em que o outro está pautando o debate – e aí você admite que o outro conseguiu pautar o debate –, ou você tenta resistir e procurar pautar o debate nos seus próprios termos. O problema é que há muito tempo, diante dessa polarização assimétrica, a resposta da esquerda é tentar oferecer a mesma coisa que a direita oferece. Mas para que diabos você precisa existir se o que você vai passar a fazer é copiar o seu adversário? A maneira mais óbvia de pensar a política eleitoral é “vamos fazer uma pesquisa, descobrir o que as pessoas estão querendo e vamos oferecer aquilo”. O problema é que a verdadeira política se faz a partir daquilo que você acredita serem princípios que são inegociáveis, mesmo que não sejam os mais populares naquele momento. E toda a arte da política está em você ser capaz de construir no desejo dos outros, no pensamento dos outros, uma convergência com aquilo que você acredita serem esses princípios inegociáveis. Aí, portanto, está a dificuldade.

O que a gente tem visto no mundo é o crescimento do absenteísmo: um descompasso muito grande entre as duas opções que são oferecidas pelo sistema eleitoral e aquilo que realmente preocupa ou ocupa a população

A gente olha em todas as pesquisas e se assusta com o índice de confiança muito baixo nas instituições, STF, Congresso. O que explica essa crise de confiança?

PUBLICIDADE

Talvez seja a crise da democracia por excelência. A crise da democracia é o risco inerente de corrupção da democracia, em que a corrupção não quer dizer o desvio de dinheiro público. Trata-se do descolamento das instituições, da participação e da representação efetiva das necessidades e das vontades das pessoas. Acontece desde fora, com a intervenção do poder econômico sobre a democracia, e desde dentro, com a autonomização das instituições de representação em relação aos seus representados. As pessoas deixam de acreditar nas instituições. E a gente está vivendo há mais de uma década no interior de um momento histórico que é aberto justamente pelo episódio mais escandaloso de falta de responsividade institucional, que foi a crise financeira de 2008. Teria sido um momento perfeito para impor algum limite a um sistema cujo descontrole e desregulamentação tinham sido a causa da crise e, no entanto, aquela injeção gigantesca de trilhões de dólares no mundo todo serve para salvar os bancos e repassar a conta desse salvamento às populações sob a forma de medidas de austeridade. Não é à toa que um dos principais slogans do início da década passada, que é quando começam movimentos de resposta a esse episódio, é: “não nos representam”. Porque é isso que fica escancarado.

E o senhor vê algum sinal de que isso pode estar acontecendo ou alguma instituição se movendo nesse sentido de recuperar a credibilidade?

A gente teve um movimento na década passada, com a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, 15M, Junho de 2013, depois toda a mobilização do Black Lives Matter, e depois uma tentativa de fazer isso passar à política institucional. Talvez esses movimentos apareçam de maneira cada vez mais desesperada de agora em diante justamente porque eles têm dificuldade de encontrar interlocutores nas instituições, na política eleitoral. Agora a gente talvez esteja num momento de intervalo, de interregno, em que não tem nada muito evidente no horizonte.