A Presidência da República perdeu força, o Congresso Nacional ampliou o seu poder e o Supremo Tribunal Federal (STF) assumiu um protagonismo inédito. Essas mudanças não apenas reconfiguraram a governabilidade, mas também intensificaram os conflitos institucionais e aprofundaram a radicalização no País.

No Brasil, a polarização já não se limita ao embate entre eleitores e grupos políticos – ela também se reflete nas relações entre os três Poderes. O confronto constante entre Executivo, Legislativo e Judiciário transbordou para o debate público, reforçando a percepção de um sistema em crise permanente e fortalecendo discursos extremistas, o que fragiliza ainda mais a estabilidade institucional. Procurados, governo, Congresso e STF não se manifestaram.
A paisagem nem sempre foi essa. Houve um período em que a relação entre os Poderes era mais previsível e menos turbulenta.
“Eu chamo o líder e resolvo”. Essa era a frase que o então presidente Fernando Henrique Cardoso registrou em seu livro de memórias para traduzir a dinâmica do poder em Brasília em 1996. Nesse período, o chefe do Executivo era o grande articulador do jogo político: negociava diretamente com líderes partidários, distribuía cargos estratégicos e recursos via emendas parlamentares, garantindo maioria no Congresso sem grandes sobressaltos.

O Legislativo tinha influência, mas estava longe de ser protagonista, enquanto o Supremo permanecia à margem das grandes decisões políticas: seus ministros não apenas adotavam um comportamento mais reservado, evitando excessos em eventos públicos ou entrevistas, mas também exerciam seus poderes de forma mais contida, restringindo decisões monocráticas e interpretações que extrapolassem o escopo do tribunal e interferissem em outros Poderes – como ocorre atualmente.
Reviravolta
Em 2005, o Mensalão trouxe o STF para o centro do cenário político ao transformar a Corte constitucional também em tribunal penal, condenando políticos de diferentes matizes ideológicos e marcando a primeira vez em que o Supremo assumiu papel central no embate político nacional. Dez anos depois, no auge da Lava Jato, a dinâmica se aprofundou. Diante de um Congresso empoderado e de uma base política fragmentada, Dilma Rousseff reconheceu sua fragilidade: “Eu não posso tudo”.
O que aconteceu entre esses dois momentos, explica a cientista política Argelina Figueiredo, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), foi que o Congresso, em períodos de fragilidade do Executivo, conseguiu aprovar mudanças constitucionais que ampliaram sua autonomia e independência. Entre essas alterações, destacam-se as mudanças nas leis orçamentárias, que resultaram no controle de R$ 50 bilhões em emendas parlamentares (projeção para 2025) – valores do Orçamento federal destinados por deputados e senadores a suas bases eleitorais.

Antes dessas mudanças, o governo federal tinha poder sobre a liberação das emendas, usando esse mecanismo como moeda de troca para garantir apoio no Congresso e aprovar sua agenda. Agora, afirma o economista Marcos Mendes, a lógica mudou: as emendas passaram a ser obrigatórias, o que significa que o presidente da República não pode mais decidir se paga ou não – o governo, portanto, é obrigado a repassar o dinheiro diretamente aos parlamentares todos os anos, reduzindo sua margem de negociação e ampliando o controle do Congresso sobre o Orçamento.
O fortalecimento do Congresso ocorre também com a restrição de mecanismos antes essenciais à governabilidade do Executivo, como as medidas provisórias – normas editadas pelo presidente da República com força de lei e aplicação imediata, que precisam ser aprovadas pelo Congresso dentro de um determinado prazo para se tornarem definitivas.
Até 2009, a legislação facilitava esse processo, conferindo ao Executivo maior poder, já que, muitas vezes, uma MP de interesse do governo federal era editada e geralmente convertida em lei. Ao longo dos anos, porém, diversas mudanças tornaram a tramitação mais difícil, impondo novas exigências e limitando o uso desse instrumento, reduzindo assim a influência do Executivo sobre a agenda legislativa. Como mostrou o Estadão, o terceiro governo Lula tem a menor taxa de aprovação de MPs desde 1988.
Transformações institucionais
O que para alguns simboliza o fortalecimento do Congresso frente ao Executivo, para outros é um ajuste às distorções de uma Constituição que confere “poderes imperiais” à Presidência.
A explicação vem de quem ocupou a cadeira mais importante da Câmara dos Deputados entre 2016 e 2021 e testemunhou essa mudança de perto. Rodrigo Maia (PSDB), hoje à frente da Confederação Nacional de Instituições Financeiras, defende as transformações institucionais dos últimos anos, mas admite que o Legislativo avançou além do esperado, sobretudo durante o governo Bolsonaro.
“Ele não gostava muito daquilo (política). Resolveu delegar a nós”, resume, sintetizando o vácuo de poder que deu ao Congresso um protagonismo sem precedentes.
“Esse embate constante entre os Poderes gera instabilidade e amplia a percepção de que o sistema político está em colapso, o que só reforça os discursos radicais”
Rodrigo Maia
ex-presidente da Câmara dos Deputados
A dinâmica, afirma Maia, criou um cenário em que a disputa pelo poder entre Executivo e Legislativo intensifica o tensionamento institucional e alimenta a polarização. “Esse embate constante entre os Poderes gera instabilidade e amplia a percepção de que o sistema político está em colapso, o que só reforça os discursos radicais.”
Peça central no embate político
Ao mesmo tempo em que o Congresso conquistou maior protagonismo, o Supremo passou por uma transformação radical. A Corte, antes distante do debate público, se tornou peça central no embate político. O tribunal deixou de ser “esse outro desconhecido”, expressão cunhada pelo ex-ministro do STF Aliomar Baleeiro em 1968 – e que deu nome a uma obra clássica sobre o desconhecimento da sociedade em relação às funções e à relevância da Corte –, para se tornar uma das principais arenas políticas do País, impulsionado, muito em parte, pelo protagonismo crescente de seus ministros nos últimos anos.
O contraste entre essa nova realidade e a postura de outras Supremas Cortes mundo afora ficou evidente para o jurista Oscar Vilhena durante uma mesa de debate nos Estados Unidos. Diante de uma ministra da Suprema Corte americana – séria, lacônica, quase inacessível –, Vilhena arriscou uma pergunta sobre a aplicação da pena de morte para adolescentes naquele país. A resposta veio direta, acompanhada de um olhar firme:
— Não posso responder, teremos de enfrentar esse caso em breve.
Ele tentou outro tema, talvez o aborto, já amplamente debatido e decidido, imaginou. Mas a juíza manteve a frieza:
— Isso também não preciso responder, a Suprema Corte já decidiu.
“Perdeu-se a cerimônia, uma certa liturgia do cargo. Isso gera desconfiança e prejudica a imagem do STF como uma instituição imparcial e técnica, o que aumenta o tensionamento e a polarização”
Oscar Vilhena
jurista
O que poderia ser apenas uma anedota contada pelo jurista ao Estadão carrega, na verdade, um simbolismo poderoso. Para Vilhena, esse deveria ser o modelo de conduta dos ministros do Supremo: manterem-se o mais restritos possível aos processos, distantes dos holofotes, de eventos corporativos e do embate no varejo político. Além disso, ele cita a necessidade de um código de conduta mais transparente.
“Perdeu-se a cerimônia, uma certa liturgia do cargo. Isso gera desconfiança e prejudica a imagem da Corte como uma instituição imparcial e técnica, o que aumenta o tensionamento e a polarização. O Supremo precisa repensar seu papel”, alerta.

Para reduzir tensões e mitigar a polarização, o pesquisador e jurista Diego Werneck defende que os ministros do Supremo adotem uma postura mais autocontida e restritiva no exercício de suas prerrogativas constitucionais, limitando as decisões individuais, estabelecendo critérios mais objetivos para a definição da pauta de julgamentos e, acima de tudo, garantindo que a Corte não apenas atue com imparcialidade, mas também transmita isso à sociedade.
“Se o STF continuar sendo visto como um ator político, em vez de um guardião constitucional, a polarização só se aprofundará”
Diego Werneck
jurista
“Se o STF continuar sendo visto como um ator político, em vez de um guardião constitucional, a polarização só se aprofundará. O Supremo precisa dar um passo para trás e retomar sua função de árbitro institucional”, analisa.

Da mesma forma, o Congresso e o Executivo também devem atuar de forma convergente em prol da democracia, na avaliação de Steven Levitsky, professor de Ciência Política em Harvard e autor de Como as Democracias Morrem e Como Salvar as Democracias. Para ele, parlamentares e o presidente da República devem evitar o que chama de "jogo duro constitucional" – o uso estratégico das instituições como armas políticas contra adversários.
“Quando a polarização atinge um ponto em que líderes ou membros de um partido começam a temer que um governo do outro partido representará uma ameaça existencial, seja para eles, suas comunidades, suas famílias ou até mesmo para a democracia, isso se torna perigoso”, disse Levitsky ao Estadão. “E muito dessa dinâmica é incentivada por esses comportamentos entre os líderes políticos de oposição e governista.”
Estratégias intensificam conflitos institucionais
Nos últimos anos, o Congresso tem postergado ao máximo a votação de pautas essenciais para o governo, forçando concessões do Executivo em troca da aprovação. Na mesma medida, o presidente força a judicialização de temas polêmicos, que não têm apoio do Congresso e sobre os quais quer manter sua posição.
Embora essas estratégias estejam dentro das regras democráticas, elas intensificam os conflitos institucionais e reforçam a percepção de um embate permanente entre os Poderes, alimentando a polarização, fortalecendo discursos radicais, deslegitimando adversários e minando a confiança da população nas instituições, diz Levitsky.
Vilhena complementa que a saída da polarização passa pelo compromisso dos Poderes constituídos em reduzir conflitos institucionais, restaurar a previsibilidade nas relações e reconstruir pontes com a sociedade. “Só saímos da polarização se todos participarem desse esforço, reduzindo o conflito institucional e reconstruindo a confiança entre os Poderes e a sociedade”, conclui.
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