Com a polarização, a ideologia ganhou peso na avaliação do conteúdo jornalístico. Hoje, a escolha da fonte de informação é tratada como um ato político, e o conteúdo percebido como “confiável” e “de credibilidade” passa a se confundir, em verdade, com fatos que confirmem pontos de vista prévios.
As tendências foram identificadas pela consultoria Box1824, que avaliou, a pedido do Estadão, como os hábitos de consumo de mídia se relacionam com o cenário político que o País viveu nos últimos anos.
A pesquisa foi realizada de forma online com 1.263 consumidores de notícias, assinantes ou não de veículos de mídia, de 18 anos ou mais. A amostra é composta por perfis de classes A e B. Entre os entrevistados, 60% preferem veículos “cuja linha editorial esteja alinhada aos seus valores, crenças ou visão política”, enquanto 35% afirmam pagar por conteúdo jornalístico “que apoie causas” nas quais se acredita.
‘DNA’ inato, mas acentuado pela polarização
Para Januza Lemos, diretora da Box1824 e coordenadora do estudo, o cenário é de ênfase do “DNA político” no consumo de notícias - uma característica que, embora inata ao jornalismo, ganha relevância em um contexto polarizado.
“Há épocas históricas em que isso se torna mais relevante e as pessoas passam a escolher seus meios e veículos de forma mais alinhada a essas questões”, disse Januza. “Fizemos alguns estudos um tempo atrás em que isso não era tão presente. Sempre vai haver a questão de consumir algo mais alinhado aos seus valores, mas vimos que nos últimos tempos isso está bem forte.”
O engajamento do público cresce, por um lado, na esteira de eventos da última década com relevante comoção social. Precedido pelas Jornadas de Junho, em 2013, o noticiário político do País abarcou, em dez anos, a Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff (PT), a ascensão de Jair Bolsonaro (PL), a pandemia de covid-19 e a eleição presidencial de 2022.
“Somos parecidos com os Estados Unidos no sentido que o público que consome notícias é bastante politizado, e os veículos, respondendo a uma certa demanda, privilegiam muitíssimo o noticiário político”, explica Pedro Burgos, jornalista e professor do Insper.
O agravo da polarização, no entanto, se relaciona também com a lógica de redes, que reafirma os gostos do usuário. “Com os algoritmos, a pessoa está acostumada com o acesso a coisas que, de alguma forma, foram feitas para ela. (No ‘feed’ das redes sociais) Só aparece quem ela segue, e as mensagens tendem a ser dentro da visão de mundo dela e dos temas que lhe interessam. A internet acostumou as pessoas a esse tipo de comportamento e elas esperam que sites jornalísticos operem da mesma forma”, afirmou Burgos.
‘Pós-verdade’ e informação como ‘ato político’
A ênfase na ideologia, porém, vai de encontro a outro dado obtido pela Box1824. Segundo o estudo, houve um aumento da preocupação com a credibilidade do conteúdo consumido. Das cinco principais expectativas sobre o conteúdo jornalístico, quatro estão relacionadas ao método de apuração, como “informação precisa e confiável” (citada por 54%), “transparência” (40%), “imparcialidade” (37%) e “rigor na apuração dos fatos” (28%).
Para Patrícia Paixão, jornalista e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, há confusão em parte considerável da audiência sobre o que é “de credibilidade” e o que é, em verdade, meramente confirmativo de um determinado ponto de vista. “O público tem alguns valores-chave ao considerar um jornalismo como ‘de credibilidade’, mas a prática é diferente”, disse Patrícia.
“Tem muita gente querendo, conceitualmente, o que se entende como marcadores de um bom jornalismo, como imparcialidade e neutralidade. Ao mesmo tempo, você vê que elas preferem o que adere à visão de mundo delas”, explicou Pedro Burgos. “Uma coisa é o que as pessoas dizem que preferem, outra coisa é o que elas fazem.”
O fenômeno se explica pelo conceito de pós-verdade, descrito por um artigo do Instituto Reuters como a “escolha dos fatos a se acreditar”. “Vivemos um momento em que, mesmo que você prove às pessoas que um conteúdo não é verdadeiro, elas preferem ficar com ele”, disse Patrícia Paixão.
É nesse contexto, segundo a pesquisa, que a escolha da fonte de informação passa a ser interpretada como “ato político”, gerando, por sua vez, “desconfiança e questionamento de fontes percebidas como opostas ideologicamente”.
“Isso também passa pela (maior) oferta (de veículos de mídia). Antes, você tinha somente os grandes meios de massa, que acabavam falando por todo mundo. Hoje, temos uma imensidão de ofertas ligadas a vários campos ideológicos. Isso acaba gerando mais fontes também ligadas a esses lugares ideológicos”, disse Januza Lemos. “O algoritmo reafirma e potencializa os filtros.”
Checagem e conteúdo analítico
Embora identifique um agravo do jornalismo em meio à “pós-verdade”, a coordenadora do estudo destaca que a Box1824 também constatou uma “ressaca” quanto à desinformação e ao cenário de múltiplas narrativas, contrastantes entre si, sobre um mesmo fato.
As mídias tradicionais, assim, resistem como “pontos de checagem”. Também desponta, em reação, a demanda por material analítico. A expectativa por “análises aprofundadas” é compartilhada por 14% da base entrevistada, por exemplo. Outros 11% esperam consumir “opiniões críticas” nos jornais, enquanto 10% querem “diversidade de pontos de vista”.
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