100 anos de Gilles Lapouge: leia texto sobre a morte de Camus e outros artigos publicados no Estadão

Aos longo de sete décadas, foram mais de 11 mil textos publicados. Exposição e debate na USP relembram importância do jornalista

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Foto do author Edmundo Leite
Atualização:

Gilles Lapouge tinha 27 anos quando chegou ao Brasil em 1951, vindo da França. Indicado a Julio Mesquita Filho para trabalhar no jornal O Estado de S. Paulo pelo historiador francês Fernand Braudel, Lapouge iniciaria naquele ano uma longa jornada que só se encerraria quando contava 96 anos de idade, com a sua morte em 2020.

Gilles Lapouge na coleção de jornais do Acervo Estadão em 2013. Foto: Alex Silva/Estadão

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Após os primeiros anos trabalhando em São Paulo, Gilles Lapouge, que nasceu em 7 de novembro de 1923, tornou-se correspondente do jornal em Paris, tratando com seu estilo ao mesmo tempo preciso e literário dos mais variados assuntos, do Brasil e do mundo, não se atendo ao limite geográfico do noticiário e questões francesas naturais ao ofício de correspondente.

Para celebrar o centenário do jornalista, uma pequena seleção possível desse vasto material estará na exposição Gilles Lapouge 100 Anos - Um Barqueiro Entre a França e o Brasil, na USP [Univerdidade de São Paulo], com a reprodução de páginas do jornal com alguns dos mais marcantes textos de Lapouge publicados no Estadão, como o da inesperada morte do escritor Albert Camus, em 1960, e os escritos no calor das manifestações de maio de 1968 em Paris.

A mostra começa nesta segunda-feira, 18, e ficará em cartaz até 20 de outubro, com visitação gratuita de segunda a sexta, das 8h às 18h, no saguão do Instituto de Estudos Avançados da USP (Rua da Praça do Relógio, 109 - Cidade Universitária). Alguns dos textos de Lapouge também podem ser lidos abaixo.

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Na abertura da exposição haverá uma mesa de debates, das 14h30 às 17h, aberta ao público e gratuita, em que será relembrada a trajetória jornalística do francês.

A mesa terá a presença do cônsul geral da França em São Paulo, Yves Teyssier d’Orfeuil, de Luciana Garbin, editora executiva do Estadão, e dos pesquisadores Antonio Dimas (FFLCH, IEB e IEA/USP) e Eugênio Bucci (ECA e IEA/USP). A mediação será de Maria Midori Daecto, professora do Departamento de Jornalismo e Editoração da USP. A programação faz parte da II Semana Franco-Uspiana de Cooperação Científica.

Gilles Lapouge em 1958. Cigarro, café e o jornal Estadão. Foto: Acervo/Estadão

Leia alguns textos de Gilles Lapouge:

A morte de Albert Camus

Camus: “Digo que a morte é uma aventura horrível e suja

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Estadão - 5/1/1960

PARIS, 4 (“O Estado”) — A notícia absurda chegou à tarde, Albert Camus acabara de morrer num acidente automobilístico, a 100 quilômetros de Paris. A brutalidade, a injustiça desse desaparecimento nos deixou estarrecidos, como nos deixara o de Gerard Phillipe, seu amigo. Há quinze anos os dois nomes reunidos, brilhavam, ainda no entusiasmo da Libertação, nos cartazes de “Calígula”, a mais bela talvez das peças de Camus.

Agora, ambos tão jovens, partiram para sempre. Hoje mesmo, vozes, as mais célebres, já disseram as palavras justas, mas é preciso dizer também o que foi Camus para os que tinham 20 anos no começo da Guerra. Foi em 1942, nós nos lembramos, durante os dias mais desolados da ocupação, que surgiu esse pequeno livro, “L’Etranger”, sob a capa branca da Gallimard. Uma narração pungente, uma voz diferente e apaixonada. Mais desesperada ainda por chegar dessa Argélia longínqua e então feliz.

Depois, a voz tão tênue, e no entanto tão soberana, calou-se novamente. Camus participava do combate clandestino. Com a volta à paz, tornou-se jornalista para presservar a fraternidade da Resistência. Dia após dia, seus editoriais no “Combat” apelavam para a lucidez e para a generosidade. Chegou o dia em que a milagrosa solidariedade desapareceu. Camus abandonou seu jornal e foi esta, quem sabe, sua primeira desilusão.

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Com “La Peste” e “L’Ilomme revolté” continuou a obra que lhe valeu o prêmio Nobel. Mas amara demasiado os homens para transformar-se num literato. O teatro chamava-o. Já não se limitava a apresentar grandiosas adaptações de peças estrangeiras. Juntava-se, finalmente, ele mesmo, no palco, com os artistas. Tornara a encontrar um pouco do calor, da difícil ternura que procurava, ao compartilhar nos estádios com os esportistas.

Cada vez mais secreto, mais fechado, não era visto com frequência em Paris. Dissimulava, sob grande gentileza, o orgulho ferido que sofria com tudo. Lutava incansavelmente para que o homem de após Nietsche, de depois da morte dos deuses, se baseasse na dignidade. Sua vida curta e fulgurante não permitiu que nos desse as últimas respostas suas. Mas soube dizer com riqueza incomparável como amava a vida, como detestava a morte.

“Digo que a morte é uma aventura horrível e suja” — escrevera em um de seus primeiros livros, “Noces”. Poderia ter repetido essa frase ontem mesmo. Cheio de vida, sofria sobretudo porque sabia que ela é uma aventura absurda e que todas as perguntas continuam sem resposta.

Amava o mundo, seus dias e suas noites, sua doçuras, os homens, o céu sem igual de seu país natal, do qual parecia sentir saudade sôb a cor acizentada da luz de Paris. Durante vinte anos compartilhou de todas as esperanças, de todas as aflições dos franceses e, quem sabe, das dos jovens do mundo inteiro.

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Para todos que o amaram, o vazio deixado hoje nunca mais será preenchido.

Página do Estadão com texto de Gilles Lapouge sobre a morte de Albert Camus. Foto: Acervo Estadão

Maio de 68

Estadão - 15/5/1968

A imaginação toma o poder na França

PARIS, 14 — Sob o reino de de Gaulle, que não chega a ser um reino fraco, um punhado de estudantes conseguiu sobrepujar o governo, a polícia e as autoridades universitárias. A partir desta noite o Quartier Latin, que o ministro da Educação confiara à guarda de uma policia formidável, passa para as mãos dos estudantes.

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Sorbonne foi reaberta, não para que os professores voltas-sem às suas catedras, mas para receber a desordem, o delírio e as generosidades do que pode realmente ser chamada de ‘’Revolução Cultural”.

A estátua de Victor Hugo tem agora uma bandeira vermelha e as bandeiras negras do anarquismo flutuam por toda parte. Os muros estão cobertos de cartazes inscritos em “slogans’ meio-surrealistas e meio maoistas. Os primeiros bem exemplificados em “Mostrem os vossos desejoss de realidade” e os segundos estão retratados em “A revolução que começa transformará não apenas a sociedade capitalista, como a civilização industrial.

Imaginação e poder

Que será isso? Uma utopia poética ou política? Sem dúvida as duas como bem o demonstra um “slogan” particularmente belo e poético: “Esta noite a imaginação subiu ao poder”.

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Tudo se desenrola numa atmosfera de festa, que em mil anos de existência a Sorbonne jamais conheceu. Fala-se, discute-se, come-se, faz-se um pouco de tudo hoje na Sorbonne. Uma Sorbonne diferente.

Trabalhadores pedem aos estudantes que levem as boas idéias às suas fábricas. Os professores querem falar e os estudantes concedem-lhes essa honra. É a atmosfera de vitória a meio caminho de uma festa que lembra os grandes momentos revolucionários de 1848 ou das comunas de 1870, quando nas grandes cencentrações populares os pensamentos violentos e selvagens arremedam propostas construtivas. É perda de tempo pretender estabelecer o rumo futuro das coisas criadas por energias fantásticas, repentinamente liberadas.

Movimento

O que há é um movimento de reformas fundamentais que o governo, a menos que esteja disposto a aceitar uma catástrofe, terá de acompanhar. Contudo, um outro grupo de estudantes, bem menos numerosos é verdade, quer ir ainda mais longe. Para esses, a reforma. universitaria é apenas um primeiro passo para algo maior que é a reforma da sociedade.

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Denuncia-se tudo, mas há uma incapacidade total de definir os termos da nova sociedade que deverá substituir essa que vão destruir. Nos próximos dias algo mais ocorrerá. Do lado do poder, há grande embaraço.

Apenas Pompidou ganhou com tudo isso. Ele estava no Irâ, quando a crise irrompeu e durante oito dias os seus auxiliares deram inequívocas demonstrações de medo, de confusão e de nulidade. Três horas depois de sua volta, o ministro cedeu, evitando o agravamento dos inocentes. Resta saber o que fará para recuperar aos poucos a autoridade, que foi bastante desgastada.

A oposição lucra, mas apenas em termos, porque aos olhos dos vitoriosos quem participa do sistema é cúmplice. Seu sonho é destruir esse sistema, sem distinção de partidos. De parte dos estudantes, nota-se claramente um horror verdadeiro por toda e qualquer espécie de instituição, seja a hierarquia universitária, o gaulismo ou os partidos da oposição. Resta, do outro lado, o grupo de reitores da Universidade, que pedem reformas a um ministro de Educação que já não entende mais nada.

Capa do Estadão de 15 de maio de 1960 com texto de Gilles Lapouge. Foto: Acervo Estadão


Memória e conhecimento

Estadão - 26/5/1996

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Não há nostagia

A Elf acaba de reunir em conclave os seus “aposentados”. Que delicadeza! A Elf tira do esquecimento esses leais servidores, que fizeram a glória da empresa, antes de ir plantar hortaliças em seus jardinzinhos de velho, e se debruça sobre o abandono em que se encontram, convidando-os para uma reunião de “ex-combatentes”. Que festança que ia ser! Eles cantariam canções de botequim, músicas do tempo do Onça, e relembrariam os velhos tempos. A saudade ia sair pelo ladrão. Saudade? Você disse “saudade”? Que nada! Ao convocar seus “ex-”, seus inúteis, seu “arquivo morto”, o que a Elf queria não era celebrar o passado e sim, estranhamente, desenhar o futuro.

Os aposentados foram reanimados a todo vapor porque a Elf, apesar de todo o sangue fresco, jovem, rutilante, em ebulição que tem injetado em suas próprias veias, nestes últimos anos, estava entrando em pane: lhe faltavam informações sobre a química dos polímeros. Os jovens cérebros de engenheiro que pululam na sociedade atual nada sabiam sobre esses polímeros. Estavam inteiramente perdidos. E a Elf também. Foi por isso que pediram socorro aos “obsoletos”, aos “burros velhos” que, abandonando seus pastos, vieram trotando até Paris, alegres como pôneis que correm na campina, orgulhosos como um piolho na cabeça do papa!

Expuseram-lhes o problema dos polímeros e eles morreram de rir: era pueril. Bobo de tão fácil. Tinham feito isso a vida inteira. Num passe de mágica, resolveram o problema dos polímeros. E voltaram a cuidar de suas hortaliças. Essa história é exemplar. Com a crise, as aposentadorias se aceleram. Um engenheiro de 50 anos já é um engenheiro inútil. Não serve para mais nada. É uma nulidade: só jovens de 25 ou 30 anos conseguem acompanhar o turbilhão. Exceto no caso em que a fábrica tem de reativar uma técnica que já tem vinte ou trinta anos de idade. Nessa hora, os “modernos” viram um zero à esquerda, e é necessário chamar a “velharia”.

Outro exemplo: a geração que construiu as primeiras instalações nucleares francesas, os reatores a grafite, desapareceu. Mas vai ser necessário desmantelar essas centrais, que estão sofrendo de corrosão radiolítica de grafite, e o problema é que nenhuma das jovens cabeças de hoje participou da montagem do reator. E como é possível desmontar aquilo que a gente não montou?

Vão ter, portanto, de tirar do túmulo os que, outrora, construíram essas instalações. Será necessário recrutar, mais que depressa, um exército de engenheiros reumáticos mas detentores de um “saber perdido”, como se o general Eisenhower, para desembarcar na Normandia, tivesse de fazer os soldados mumificados do faraó Ramsés II saírem de seus sarcófagos, ou de usar os antigos soldados da Guerra do Chaco.

Há 25 anos, a Nasa mandou o homem à Lua. Desde então, a ciência deu passos gigantescos. Apesar disso, se, em 1996, os americanos tivessem de reeditar essa proeza, seriam incapazes de realizá-la corretamente (ou, então, teriam de imaginar novos procedimentos). Esses “buracos na memória” são preocupantes. Podem bloquear um programa, paralisar uma linha de montagem. Há quem tente encontrar um paliativo: não bastaria dar uma olhadela nos arquivos? Talvez se encontre, guardado num disquete, o método esquecido.

Na França, formou-se uma sociedade que armazenou, em seus arquivos de computador, a experiência dos empregados mais qualificados, visando constituir uma gigantesca memória das empresas: queriam descrever todos os gestos, todas as dosagens, todas as seqüências de ações que permitiriam às futuras indústrias ter acesso, em caso de urgência, a técnicas esquecidas. Mas foi um fracasso. Tinham tentado cavalgar uma quimera: o que falta não é o conhecimento, a ciência, a teoria; o que se evapora é o gesto, a graça, o hábito, a inspiração ou o mistério, tudo o que conduz a mão ou o cérebro do técnico, do engenheiro, do operário, quase sem que eles próprios o percebam.

Tente registrar, em seu arquivo de computador, uma graça, uma inspiração, um mistério! Uma imitação de mobiliário do século 18, fabricado com as impecáveis ferramentas de que dispomos hoje, nunca será tão bonito quanto um móvel de Boulle. Por quê? Porque a mão do antigo ebenista hesitava, acariciava a madeira tateando, às cegas, como se andasse no escuro, estremecia à procura da curva indizível da cerejeira ou do carvalho, enquanto as máquinas modernas sabem fazer tudo à perfeição, exceto hesitar.

E ninguém conseguiu, ainda, arquivar uma hesitação num Macintosh! Os paleontólogos sabem como os homens de Neanderthal acendiam o fogo ou entalhavam flechas de sílex. Mas suas mãos não o sabem, pois os professores de fogo ou sílex jazem em suas tumbas há 50 mil anos. Por isso, todo ano, especialistas em Pré-História saem de seus escritórios, no College de France, e vão em busca dos gestos perdidos: esses homens sérios fazem um pedacinho de madeira girar dentro de um entalhe, para fazer saltar uma faísca, ou então batem uma pedra de sílex na outra, tirando delas pedaços pontudos, com que farão a flecha especializada na caça ao mamute.

A indústria deve dar ouvidos à lição dos paleontólogos: não pode contentar- se em extrair de seus arquivos as fórmulas químicas, físicas ou artesanais que os homens de ontem aplicavam. O que é preciso exumar é algo de mais secreto e fugidio do que uma equação matemática ou o desenho de uma válvula de segurança: é a memória do corpo, a furtiva marca deixada pelos gestos que desapareceram, o imponderável, o imperceptível.

Deve-se reaprender o timing, a palpitação que percorriam as mãos sem que elas sequer o percebessem, como os pulmões respiram, como o sangue corre nas veias. Ora, nenhuma documentação, nenhum dicionário, nenhum relatório contém o alfabeto indizível, ilegível e obscuro com o qual esses antigos códigos eram registrados. A pergunta, então, é: pode-se guardar na memória o inconsciente dos artesãos, dos operários, dos técnicos desaparecidos?

O caso da indústria é espetacular, pois a aceleração do progresso, a importância dos trunfos fazem dessa reconquista do passado a condição para o sucesso. Mas as mesmas dúvidas surgem a respeito de todos os compartimentos da aventura humana: o saber, a arte, o artesanato, etc. Os pintores atuais, mesmo os talentosos, seriam incapazes de desenhar como um pintorzinho medíocre do século 16. Nenhum poeta contemporâneo, mesmo maravilhoso, saberia produzir os alexandrinos de um poeta amador do século 17.

E essas regressões dizem respeito não apenas aos criadores, os pintores, os escultores, os poetas, mas também aos consumidores de arte. As grandes retrospectivas de pintura nos mostraram que o público já nem é mais capaz de ver as figuras que lhe são mostradas. Foram feitos estudos, na época da exposição de Nicolas Poussin, em 1994, no Grand Palais, com resultados consternadores: a maioria dos visitantes era incapaz de decifrar os quadros do autor das Quatro Estações. É que, em 1996, ignoramos aquilo que um “honnête homme” do século 17 sabia na ponta da língua: a mitologia greco-romana, a Bíblia.

Os amadores de pintura de 1996 nem sequer localizam, nas telas de Poussin, as figuras de Apolo, de São Paulo, de Eliezer e Rebeca, de São João ou São Mateus. Mais espantoso ainda: há quem sequer reconheça a Virgem!

Essa constatação desencantada poderia estender-se a todos os pintores clássicos. Rafael e Michelangelo, Caravaggio e Piero della Francesca, grande parte de Rembrandt e Rubens retrata sem cessar a dor do Gólgota, o desespero de Maria, a cólera de Judite ou a decapitação de Holofernes, os amores de Sansão e Dalila, a sedução da rainha de Sabá, os esplendores da corte do rei Salomão, o êxtase dos peregrinos de Emaús após a Ressurreição.

Esse desaparecimento da cultura clássica mutila igualmente a literatura: como ler Dante, Rabelais, Camões, Shakespeare ou, até mesmo, mais perto de nós, James Joyce, se seus textos estão saturados de cristianismo ou de mitos que o nosso tempo esqueceu? Não trata- se de lamentar que a religião ou o estudo dos gregos tenham declinado (isso já é outra história), mas de confessar que toda a arte clássica está se esvaziando de sentido porque ignoramos a antiguidade grega, latina ou hebraica.

Representantes das igrejas, do Estado, dos museus e dos meios de comunicação acabam de reunir-se, em Paris, para tentar encontrar o meio de combater esse enorme “buraco” na memória, exatamente como os industriais, que estão em busca de suas próprias lembranças. Não há nostalgia alguma nessas observações. Nenhuma saudade de antanho, dos tempos das diligências, da lâmpada a óleo. Há a constatação de que nem sempre o progresso está à nossa frente. Às vezes ele está escondido atrás de nós, por exempo quando a Elf tem de reunir seus empregados de ontem.

O progresso efetua-se matando o que ficou para trás, com a condição de recolher dele a sabedoria, a experiência, os resíduos. O navio a motor destronou o clipper que dobrou o cabo Horn, mas nenhum steamer poderia ignorar o conhecimento que os veleiros tinham dos ventos, das correntes marinhas, das cordas que amarravam cada vela.

Chronos (ou Saturno), filho de Gaia, a terra, e de Uranos, o céu, é o deus do tempo. Não se contenta em devorar todos os seus filhos (Júpiter foi o único que conseguiu escapar), que é a sua forma de deixar claro que o tempo é, ao mesmo tempo, criador e destruidor. Chronos cortou também, com uma foice que lhe foi gentilmente oferecida por sua mãe Gaia, os testículos de seu pai Uranos. Desses testículos jorra o esperma que faz se formar densa espuma sobre as ondas do mar. E dessa espuma sai Afrodite, de radiosa beleza. É assim o tempo. Anda misturando as pistas, avançando e recuando ao mesmo tempo, e é por isso que é tão fecundo.

Desse ator sutil, enigmático e astucioso, os truques são mais enroscados do que um novelo de lã nas garras de um gato: ele flui nos dois sentidos ao mesmo tempo, às vezes rumo à véspera, rumo ao dia seguinte outras vezes. Esse é o seu capricho, esse é seu luxo.

Longevidade

Estadão - 26/5/2020

O Valor dos idosos

De Melbourne a Bruxelas, de Los Angeles a Budapeste, a imprensa mundial evoca uma “guerra de idades”, entre os chamados “baby boomers” e os jovens da chamada geração Z, os “zoomers”, nascidos depois de 1990. Lembramos que os sociólogos dividem os humanos em quatro grandes grupos segundo. Os mais velhos são os “baby boomers” (nascidos entre 1944 e 1964), que, em sua idade adulta, viveram um período de prosperidade excepcional. Um mundo em paz. A economia em recuperação. Foi o início do que chamamos na França de “Os 30 Anos Gloriosos”.

Em seguida, vem a geração X, dos nascidos entre 1966 e 1976 (alguns autores propõem outras datas: entre 1961 e 1981). Essa geração presenciou a queda do Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria, as ilusões embriagadoras de um mundo apaziguado. Mas também chegou o período da aids e do pesadelo do emprego precário.

Depois, temos a geração Y, dos millennials, nascidos entre 1984 e 1996, que sofrem com o desemprego e o início da globalização. Finalmente, os que nasceram entre 1996 e 2015 formam a geração Z, os chamados “zoomers”.

O aquecimento climático não é mais uma mania dos estudiosos, mas uma probabilidade que semeia o terror, sobretudo entre os jovens. O tempo da despreocupação, da felicidade, acabou. E, para completar, vêm se somar a ascensão dos populismos e a fadiga da ideia democrática. A chegada de um inimigo invisível, difícil de localizar e desconhecido, o coronavírus, que em poucos meses encheu os cemitérios com uma preferência marcante, segundo os médicos e as estatísticas, pela carne murcha dos velhos.

Os sociólogos ainda não batizaram essa geração perdida. Sem dúvida, perceberam que depois do Z (zoomers) o alfabeto não tem mais letras. Os linguistas foram pegos desprevenidos. Se eu fosse profeta ou especialista em Cabala, concluiria que o fim do mundo está próximo e o apocalipse, impaciente para entrar em ação, já que não existe nenhuma letra depois do Z. Felizmente, não sou profeta.

Retornemos aos velhos. Eles não têm um grande poder de fogo. Nos asilos onde vivem, não dizem nada, e se contentam em morrer. Alguns países, como China, Itália, França, se aproveitam disso. Eliminam das suas estatísticas as mortes de pessoas idosas. É uma maneira de reduzir o número de mortes da pandemia e de levar a crer que a França (e outros países que fizeram o mesmo cálculo) administra com brio esta nova provação, porque sua medicina é excelente, seus hospitais perfeitos, seu sistema de saúde é o primeiro do mundo.

Tudo é falso. A medicina francesa foi notável outrora. Não é mais. O sistema de saúde está em frangalhos. Os médicos e enfermeiras estão no limite. Rapidamente conhecemos a verdade, e ela é cruel: nos primeiros dias do confinamento, os asilos, longe de serem poupados pela covid-19, apresentaram uma taxa de mortalidade espantosa. Idosos morriam às dezenas ou centenas.

Assim, muito rapidamente, e para evitar que a polêmica se agravasse, os velhos mortos foram reintroduzidos nas estatísticas (a mesma besteira foi cometida por outros países europeus). Os americanos têm uma palavra para designar as discriminações em detrimento das pessoas idosas: “ageísmo”. Essa discriminação é reprovada, mas faz parte da cultura americana.

O Los Angeles Times realça os sinais de uma fratura entre gerações. “As pessoas idosas testemunham comportamentos e discursos que deixam entender que sua vida não tem tanto valor quanto a reativação da economia.” O vice-governador do Texas, Dan Patrick, foi ainda mais franco: “Há coisas mais importantes que a vida. Como salvar este país para seus filhos e seus netos”.

O Washington Post expressou : a América não se preocupa com os velhos . Os EUA perdem seus velhos porque eles são frágeis, claro, mas eles morrem igualmente de uma outra epidemia que é ainda mais grave - a desvalorização da vida das pessoas idosas.”

O último texto

Estadão - 5/6/2020

Coincidências da raiva

No sábado, um novo tipo de foguete americano se acoplou à estação orbital e, dois dias depois, nos Estados Unidos, a morte de um homem negro por um policial incendiou as principais cidades americanas. Duas Américas se chocaram: ada genialidade e ado racismo.Poucas horas depois, Paris e algumas das maiores cidades europeias já estavam nas ruas para denunciara morte, por estrangulamento policial, de um homem negro no Val d’Oise, em 2016. E, em meio a todos esses episódios, todas essas convulsões, o coronavírus seguia seu rumo de silêncio e horror.

É forte a tentação de misturar esses dramas no mesmo discurso, principalmente os dois mortos, o de Val d’Oise, em 2016, e o de Minneapolis, em 2020. A passagem entre os dois casos é bastante clara: dois negros, na França e nos EUA, foram vítimas de um policial.De fato, o amálgama entre os dois “excessos” se deu em manifestações em Paris e em outras cidades europeias que se apressaram para passar por essa porta aberta. Nas manifestações de rua, nas redes e nos subúrbios da Europa, aponta-se para o mesmo culpado: o racismo que empesteia tanto a polícia americana quanto a francesa.

A imprensa francesa evitou esse argumento. Mesmo dedicando grandes artigos aos dois episódios, a maioria se recusa – com indignação o Fígaro e condescendência o Libération – a colocar na mesma cesta as polícias americana e francesa. Os números sublinham essa diferença: a polícia americana mata de 800 a mil pessoas por ano. A polícia francesa, menos de 30. O recorde é da Inglaterra, que mata apenas 5 pessoas a cada ano.

As comparações continuam. Os EUA são um país terrivelmente violento. As armas de fogo são autorizadas e onipresentes. “Sempre que estamos lidando com um criminoso, achamos que ele pode estar armado e às vezes sacamos a arma antes dele”, disse um policial americano.

Na França, ainda que as redes sociais se embebedem com o caso francês e o americano, há mais restrições. Nos círculos políticos, tudo é silêncio ou reserva. O partido comunista, até agora, não disse nada. Apenas Jean-Luc Mélenchon, eloquente porta-voz das ideias anarco-sindical-trotskistas, explicou que os subúrbios franceses estão em guerra perpétua.

Marine Le Pen, que antes defendia as teses negacionistas de seu pai, acaba de prestar homenagem ao general De Gaulle. Certamente é uma boa escolha, pois ele sem dúvida foi um dos maiores políticos (franceses) de seu tempo. É sincera a adesão de Marine ao gênio do general? Ou, então, Marine só considera proveitoso colocar De Gaulle em seu kit de campanha para as eleições presidenciais que se aproximam e nas quais ela tem chance?

De qualquer maneira, precisamos conceder que, mesmo se a polícia francesa não puder se igualar à americana, permanece um ponto comum: tanto aqui quanto lá, as relações entre a polícia e os negros (e os imigrantes em geral) são violentas. Deve-se dizer que os subúrbios franceses – habitados por imigrantes malquistos – não são felizes.

Nessas áreas o desemprego está crescendo como um vírus. Perdidos diante de uma educação inadequada, os jovens negros “abandonam” o ensino médio muito cedo. O que você pode fazer com as tragédias de Racine, a filosofia de Voltaire ou as equações de Blaise Pascal quando você é pobre e não entende a cultura francesa? Adeus, escola! E olá solidão, desespero, drogas e subemprego!

Assim como as minorias que habitam as cidades americanas, as minorias africanas dos subúrbios franceses estão fadadas a criar “homens e mulheres cheios de raiva”. Nem François Hollande ontem, nem Emmanuel Macron hoje ousaram cuidar desse espinho que gangrena a sociedade francesa. Mal sabem que “os amanhãs cantam”.

O escritor e correspondente do 'Estado', Gilles Lapouge Foto: JF DIORIO|ESTADÃO

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