Contatos com indígenas isolados sempre foram um tema de grande fascínio para a população urbana em diferentes fases da História do Brasil. Nos anos 60 e 70, os irmãos Orlando e Claudio Villas-Bôas, conhecidos indigenistas com várias incursões nas florestas em busca de grupos dos povos originários, fizeram expedições no norte do Mato Grosso na tentativa de encontrar um dos povos mais desconhecidos do território brasileiro. Segundo Claudio Villas-Bôas, os então chamados “índios gigantes” “eram a derradeira civilização indígena primitiva do Brasil e talvez do mundo”.
Entre janeiro de 1972 e fevereiro de 1973, o Estadão acompanhou a expedição em busca do contato com os “índios gigantes” com diferentes repórteres e fotógrafos que produziram várias reportagens e imagens, algumas delas inéditas, agora aqui publicadas, digitalizadas a partir dos negativos fotográficos originais. José Marqueiz, Luis Salgado Ribeiro, Alaur Martins e os fotógrafos Rolando de Freitas e Reginaldo Manente foram os enviados do Estadão para cobrir a tentativa de contato com os Panarás, dada como certa em 1972.
Em 10 de fevereiro de 1973, a edição do Estadão trazia as primeiras imagens do grupo indígena Panará, erroneamente chamados na época de “índios gigantes”. O tão esperado contato com os indígenas, também conhecidos como Krenakore, se deu depois de 382 dias do início da expedição comanda pelos irmãos Villas-Bôas. O contato foi feito na região do Vale do Rio Peixoto Azevedo.
No caminho da BR-163
Os irmãos Villas-Bôas, escalados pela Funai [Fundação Nacional do Índio] para fazer o contato, já tinham feitos voos no final da década de 1960 e descoberto aldeias dos Panarás. O objetivo agora era o contato direto. Havia pressa e não era só para acabar com as expectativas de como realmente era o físico dos índios “gigantes”. Também não tinha nada com questões antropológicas ou de preservação da cultura dos Panarás. O espírito do tempo é que ditava a pressa. Na ditadura militar, o lema para a região amazônica era “Integrar para não Entregar”, e no caminho da estrada Cuiabá-Santarém (BR-163), que estava rasgando a floresta, lá estavam os Panarás.
As primeiras notícias da existência dos ‘índios gigantes’ são da década de 1960. Além de serem considerados, na época, um dos últimos grupos isolados de indígenas no país, a possível existência de índios com altura acima da média causava grande atração na sociedade. Mas o mito da altura partiu nasceu de uma premissa nada exata.
Na edição de 17 de maio de 1966 do Estadão trazia o relato de que foram encontrados arcos maiores que os normais, alimentando, assim, a hipótese de eles serem maiores. “O sr. Benedito Pimentel, chefe do serviço de Administração do Serviço de Proteção aos Índios, confirmou ontem, em Brasília, a possibilidade de existência no Planalto Central de índios com altura superior a 2 metros. Disse que a hipótese parece ser confirmada por um arco encontrado pelo sertanista Francisco Meirelles, do tamanho bastante superior aos utilizados por índios conhecidos”.
Em 1950, Os irmãos Villas-Bôas, quando estavam na Serra do Cachimbo para abrir um campo de pouso, acharam uma picada onde os paus colocados pelos índios para demarcá-la eram maiores do que o habitual feitos por outros grupo. Isso também reforçava a ideia que eles eram maiores, pois “os galhos mais grossos só poderiam ser quebrados com o apoio dos ombros e a força de duas mãos”.
Outro indício, também falso e testemunhado pelos Villas-Bôas, foi o encontro de um índio Panará, chamado Mengrire, sequestrado quando criança pelos txucarramães, que media dois metros e cinco. Além da mística da altura havia outras perguntas que aumentavam o mistério dos Panarás, “os [indígenas] que conheci ou ouvi falar, nenhuma outra se apresentou tão misteriosa quanto a dos Kranhacacores”, confessou Claudio Villas-Bôas ao jornalista Luís Salgado Filho.
A obra da BR-163, parte do Plano de Integração Nacional, deveria ser entregue em dezembro de 1973. Portanto, a ‘pacificação’ dos Panará era prioridade. Além de serem considerados como obstáculos, a preocupação era que os indígenas entrassem em conflito com as equipes das obras, comandadas por batalhões de engenharia do Exército, e o contato possível contato com doenças – o que realmente aconteceu. O objetivo era ‘retirá-los da região e levá-los para o Parque Nacional do Xingu.
Em janeiro de 1972 eram divulgadas as primeiras imagens dos índios. A partir da base aérea da Serra do Cachimbo vôos de reconhecimentos eram feitos, e num, deles, o fotógrafo Rolando de Freitas conseguiu clicar a aldeia. Em reação os Panará atiraram flechas contra o avião.
Presentes e flechas
Nos vôos, além de fazer o reconhecimento da área, eram jogados presentes e fotos dos sertanistas para mostrar que eles estavam ali em paz. Também eram colocados varais na mata e pendurados presentes. Em retribuição, os Panarás deixavam objetos na mata, cujo significado era também de aproximação, segundo os indigenistas.
Essas trocas sinalizavam que o encontro estava perto. Foram feitos todos os esforços para que ele acontecesse. Os sertanistas e sua equipe desceram o Rio Peixoto de Azevedo para ficar mais perto e lá montaram uma base avançada na margem do com o objetivo de construir uma pista de pouso. Realmente parecia que em 1972, o mistério acabaria. Mas nem tudo andou bem. Em maio, o que mais se temia aconteceu. Um dos trabalhadores da estrada foi flechado, mas sobreviveu. Para piorar, em agosto os Panará queimaram sua aldeia e desapareceram na mata.
“Só quando o Corinthians for campeão”
Em outubro, o esperado encontro quase aconteceu. Um grupo de Panarás chegou à margem do rio para recolher os presentes, mas Cláudio tentou se aproximar e o grupo desapareceu. O fotógrafo Reginaldo Manente, em conversa com o Acervo Estadão lembrou a frustração daquele momento. Ele que ficava na base de Cachimbo, sobrevoava o posto avançado para fazer fotos da região e entregar mensagens para o jornalista Salgado Filho. Já pensando em ir embora, numa delas escreveu ‘sabe quando os Villas-Bôas vão ver os índios? Só quando o Corinthians for campeão!”. Lembrando que naquele ano o Corinthians amargava 18 anos sem ganhar um título.
Para surpresa de Manente, que já estava em São Paulo, ele recebe uma carta de Orlando Villas-Bôas com o escrito: “O Corinthians já foi campeão?”. Era o sinal de que o encontro tinha sido feito. E ele ocorreu em 4 de fevereiro de 1973, “o sertanista Cláudio Villas-Boas conseguiu domingo o tão esperado pessoal dom os kranhakakores - índios gigantes - atingindo assim o principal objetivo da missão que partiu do Parque Nacional do Xingu para o Valer do Rio Peixoto Azevedo” (Estadão, 6/2/1973).
Chegam as imagens
Mas a imagem de um Panará, que acabaria com o mistério e curiosidade sobre se eles eram realmente gigantes, saiu na edição de 10 de fevereiro, onde também foram publicados detalhes do encontro. A reportagem e as fotos referem-se ao segundo encontro dos irmãos Villas-Boas com os Panarés. Segundo José Marqueiz o repórter do Estadão que presenciou o encontro “os irmãos Villas-Bôas riram e dançaram ao manter, em menos de cinco dias, o segundo contato com os índios gigantes, a 800 metros do acampamento erguido na margem direita do Rio Peixoto de Azevedo. Apesar desse contato ter sido apenas com dois índios, os sertanistas o classificaram como ‘o mais difícil até agora e também como o mais definitivo”.
A importância do encontro pode ser entendida pela proximidade e intimidade que os irmãos conseguiram com os dois Panarás, segundo Marqueiz. “Os Villas-Bôas desembarcaram da canoa e pediram que os demais esperassem. Orlando seguiu na frente levando colares. Claudio trazia facões. Enquanto eles avançavam, os dois índios recuaram. Os sertanistas pararam e começaram a fazer brincadeiras e gestos amigos. Os dois selvagens pararam atrás de uma árvore, Orlando avançou e conseguiu colocar um colar no pescoço de um deles. Cláudio procurou contato com o outro e entregou-lhe presentes. Os kranhacarores retribuíram com um maço de flores”.
Destino: Xingu
Marqueiz também trouxe a informação que todos esperavam, como era uma Panará. Segundo ele os dois indígenas que tinham entre 18 e 20 anos segundo Orlando Villas-Bôas tinham “corpos atléticos e pintados de preto com tinta de jenipapo, os dois índios tinham de 1,70 a 1,80 m. O cabelo é cortado bem rente à cabeça e têm diversos cortes cicatrizados, provavelmente feitos à faca, descendo em perpendicular do peito até a altura do umbigo. Nas duas coxas, os mesmos sinais”.
O destino dos Panarás já estava traçado há muito tempo. Após eles serem encontrados, pacificados e retirados do caminho das estrada, eles seriam levados para o Parque Nacional do Xingu. Orlando Villas-Bôas em janeiro de 1972 já sabia que isso seria ruim para eles. Ao Jornal da Tarde de 24 de janeiro de 1972 ele confessou que “seria uma loucura tentar levar para o Parque [do Xingu]. Primeiro porque não vão querer trocar o meio onde vivem há séculos por terras desconhecidas. E, segundo, porque seria impossível a convivência deles, no parque, com os Txucarramae, seus inimigos”.
Volta para casa
Também como era de se esperar, boa parte do grupo original encontrado pela expedição foi dizimado por doenças após o contato com os brancos. Em 1975, o destino traçado à revelia dos Panarás, foi cumprido. Os 79 Panarás que restaram foram transferidos para o Parque Nacional do Xingu. No parque não se adaptaram, e sentiam-se incomodados em viver ao lados dos seus inimigos, os Caiapós.
Nessa realidade iniciaram uma jornada para voltar à terra de origem. Em 1991, em busca de terra boa para a sua agricultura, a comunidade decidiu voltar para o seu território. O local do qual foram retirados estavam destruídos por garimpos e fazendas. Mas encontraram uma parte intacta do território tradicional, ainda preservado. Esse território de 488 mil hectares foi reivindicado por eles e que a área fosse demarcada. A terra foi reconhecida pela Funai em 1994.
Nos anos seguintes os Panarás foram se mudando para a nova aldeia chamada Nacypotire. No total foram 178 índios que voltaram para suas terras. A luta dos Panarás pela sua terra não terminou ai. Em 2003, numa decisão inédita os Panarás receberam indenização da União por danos sofridos durante o processo de contato e transferência à força das suas terras.
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