
Em 10 de outubro de 1938 chegava às telas dos cinemas de São Paulo o filme “Branca de Neve e os Sete Anões”, o primeiro longa-metragem em animação de Walt Disney. O crítico e poeta Guilherme de Almeida, que assinava sua coluna sobre cinema apenas com a letra inicial “G.”, assistiu a animação no Cine Odeon, não poupou elogios ao filme e comparou Walt Disney a deus.
... Sei lá! São tantos os “homens”, disfarçados em bichos, que Disney, como um deus humano, tirou do nada nesta sua Genese! ...
Guilherme de Almeida, Estadão - 14 de outubro de 1938
Leia abaixo, com a ortografia da época, a transcrição do texto publicado na seção “Cinema” do jornal quando filme estreou no Brasil.
Estadão - 14 de outubro de 1938

No “Odeon”, “Rosario” e “Alhambra”
**** — “BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES” (”Snow White and the Seven Dwarfs). Branca-de-Neve foi a minha primeira namorada. A dos oito annos, quando a vida ainda é uma saudade fresquinha do ceu de que a gente desceu sem querer... Contaram-me o seu conto: e ella “ficou” em mim, para sempre. De uns versos meus, de moço, quando eu achava ainda...
“... que o sonho é tudo e tudo mais é
[nada”,
fiz para ella, para que durasse intacta e pura a sua lembrança, uma redoma de emoção ‘transparente, como o ataúde de vidro dos sete anõezinhos:
“Eu te guardo no fundo da memoria,
Como guardo num livro aquella flôr
Que marca a tua delicada historia,
Branca- de - Neve meu primeiro
[amor...”.
E fui vivendo dessa lembrança, convictamente, para que, um dia, eu pudesse me perguntar e responder sem remorsos:
“Que fui eu, afinal? — Um pobre
[louco
Que andou, na vida, procurando em
[vão
Sua Branca-de-Neve que era um
[pouco
De sonho e um pouco de recordação”:
e, sempre nessa procura doida, pudesse, uma tarde, contar a alguem que a procurei, procurei...
“E encontrei a Saudade : ia alva e leve
No esquife do Passado que, afinal,
E’ como o teu caixão, Branca-de-
[Neve:
O Passado é um esquife de crystal” ...
Guilherme de Almeida, Estadão - 14 de outubro de 1938
*
Ora, gostando assim sempre e sempre e tanto e tanto dessa aluada figurinha de legenda infantil, póde-se bem imaginar com que alvoroçada alegria (misturada, confesso, a um pouquinho de ciumes...) eu soube que um verdadeiro poeta do Seculo XX — Walt Disney —, praticando a verdadeira poesia do Seculo XX — o desenho-animado —, ia escrever, elle tambem, elle principalmente, o poema de Branca-de-Neve.
E com que sobresaltada ansiedade fui ao cinema, numa noite destas, tão negativa, de tão negativa primavéra, vêr afinal realisado o meu sonho menino, animada a princesinha da minha infancia, “acontecida” Branca-de-Neve.
E vi. E fiquei tranquillo, sem ciumes, sem despeito. Não era a “minha”, a m-i-n-h-a Branca-de-Neve. Era outra, de outro. Logo que a sua figurinha, nos primeiros lampejos, palpitou na téla, espetada pelo jacto de luz do projector (como uma borboleta por um alfinete de ouro no quadro de um collecionador), não pude conter em mim a classica exclamação de allivio:
— Arre!
Era outra, de outro. Era a Branca-de-Neve “de” Walt Disney : engraçadinha, realista, com o seu “make-up " muito “elaborated”, o seu “glamour”, os seus cilios postiços, o seu “baby talk”, o seu bem praticado “reducing” de “estrellinha” de Hollywood...
A minha — cabellos pretos, olhos azues, pelle alvissima anilada pelas veias — era differente: bem fim-de-raça, muito fininha, toda “fluelle”, etherea, evanescente, muito mais do ceu que da terra, com o seu corpinho ascencional de fumaça..
A de Disney é humana. A minha era... Não era divina: era apenas minha.
Mas, a “minha” Branca-de-Neve não interessa.
*
A que interessa é a Branca-de-Neve de Walt Disney.
Que tal?
Ha, antes de mais nada, no primeiro desenho de longa metragem Walt Disney, uma doce mensagem: urna mensagem de bondade. Disney é, acima de tudo, um bom. Tem horror á crueldade. Em todas as suas criações, sempre inspiradas no folclore, elle invariavelmente evita a nota “malvada”, mesmo com o sacrificio da fidelidade ao texto primitivo.
Por exemplo: na narrativa original dos “Tres Leitõezinhos”, o Lobo Mau devora os dois primeiros para depois ser cozido pelo terceiro, o vingador; na versão de Disney, os tres escapam vivos e o lobo é punido apenas humoristicamente...
Outro exemplo: em “Pied Piper”, em vez de fazer succumbir afogados os camondongos, que é como reza a historia, elle os mergulha numa ideal montanha de queijo suisso...
Ainda outro: na sua interpretação do popularissimo conto de “Jack and the Beanstalk, o Papão não é assassinado: apenas afunda-se na terra e surge, vivo, do outro lado do globo, na China antipoda...
Mais um exemplo: em vez de fazer a cigarra morrer de fome e de frio no inverno, como o exige a fabula original de Esopo, Disney faz, na sua “silly symphony”, com que as formigas a reanimem e ella se arrependa das suas loucas bohemias...
Imposições ou, pelo menos, influencias da rigorosa ethica do “Hays Office”? — Não creio. Walt Disney é um sincero por natureza.
Ora, essa nota de espontanea, instinctiva bondade, predomina, requintada, em “Branca-de-Neve e os Sete Anões”. Disney cancellou da “Schneeweischen” dos Irmãos Grimm todo “elemento cruel”. A princezinha não soffre tanto pelos despeitos da rainha: das tres armadilhas (a do laço, a do pente envenenado e a da maçan) Disney só conservou a ultima, porque não é “bom” fazer ou vêr alguem soffrer assim tanto ...
No original allemão, a rainha má succumbe a uma horrivel morte lenta, dansando no dia do casamento de Branca-de-Neve, com os pés mettidos em sapatos de ferro em braza: Disney, comprehendendo que uma verdadeira “heroina” não poderia permittir um processo de tão morbida crueldade, preferiu fazer com que a rainha-bruxa morresse repentinamente despencando-se de um precipicio...
Isso, quanto á moral do primeiro “feature-length” de Walt Disney.
*
E quanto ao resto? — Simplesmente uma delicia.
Prefiro, naturalmente, na “Branca-de-Neve e os Sete Anões” do genial “animador”, o coefficiente pessoal, isto é, tudo quanto é criação sua, enxerto seu, personalíssimo, collaboração propria trazida ao popular conto-de-fada. Ahi á que se encontra Disney, puramente Disney. Em primeiro logar, o “animalista. Pela sua ternura, elle é um São Francisco de Assis ou um Axel Munthe...
Gosto mais de qualquer dos seus bichinhos, legitimamente seus, do que das suas figuras humanas. Porque elles são mais humanos. Porque Disney, no seu magico anthropomorphismo, muito mais communicativo que o de quantos fabulistas que abarrotam estantes inteiras de bibliothecas, dá aos animaes que trata tão amorosamente muito maior e melhor humanidade do que a que possuem as proprias criaturas humanas.
Vejo o “homo sapiens” de Linneu muito mais nitidamente em “Pluto”, no “Patinho Donald” ou no “Camondongo Mickey”, do que num cirurgião, num jockey, num grammatico, num meirinho, num literato ou num Irmão do Santissimo... E que surprehendentes criaturas não soube elle tirar do nada nesta sua ultima producção!
Por exemplo: o passarinho, quasi implume ainda (primeira personagem, para mim, nesta fila), dando “dós de peito” como um “tenorino” de opera-lyica italiana... Ou então, a corça maternal com o seu filhinho... Ou a tartaruga sempre atrasada... Ou... Sei lá! São tantos os “homens”, disfarçados em bichos, que Disney, como um deus humano, tirou do nada nesta sua Genese!
Agora, o poeta. Walt Disney compoz verdadeiras estrophes de luz, côr e movimento neste seu desenho-longo. Estrophes lyricas (aquellas primeiras sequencias de Branca-de-Neve com os pombinhos, junto á cisterna, e aquelle seu primeiro beijo ao Principe Encantado, levado por um pombo-correio . . . ).
Estrophes épicas (aquella pintura do pavôr, com a princezinha aterrorisada perseguida por todos os imaginarios Espiritos Maus da floresta que, dissipadas as trevas, se transformam nos bichinhos bons do bom Deus. . .). Estrophes parnasianas (todas as scenas da rainha-bruxa no seu laboratorio de magia, preparando o philtro diabolico e a maçan lethal. . . ). Estrophes tragicas (a shakespeareana fuga e morte da megéra perseguida pelos animaes, pela tempestade, pelos anões e pelos dois corvos carniceiros...).
O psychologo. Com que fina observação e funda analyse soube elle definir os sete anões, expôr o problema humano que é cada um delles, marcal-os diversamente, dissecal-os scientificamente. “Doc”, “Sleepy”, “Grumpy”, “Depey”, “Happy”, “Bashful” e “Sneezy” parecem-me especimens distinctos de museu, que deveriam figurar em grandes boccaes cheios de alcool, com a sua etiqueta classificadora cada qual, todos tão diversos, característicos, inconfundiveis. (Entre parenthesis: — As minhas preferencias vão para “Doc” e “Bashful”).
Finalmente, o humorista. Para precisar o perfeito “sense of humour” (como se isso ainda fosse preciso!) de Walt Disney, citarei apenas duas passagens do seu filme admiravel: — o trabalho dos bichinhos ajudando Branca-de-Neve na limpeza do “cottage” dos anões, quando, por exemplo, os dois passarinhos estendem a roupa no varal, para seccar, atando os braços de uma camisa... ; ou todas as sequencias comicas da noite mal dormida dos anõezinhos mal alojados no rez-do-chão da sua cabana.
*
“Branca-de-Neve e os Sete Anões” levaram-me a uma conclusão, que eu fui “desenvolvendo” em mim ao sahir, ante-hontem, do “Odeon”. Esta conclusão:
Se um dia, repentinamente, por um flagello tremendo, uma catastrophe horripilante (são tão communs, nos Estados Unidos, onde tudo é grandioso, essas grandiosas desgraças) succumbissem todos os artistas de cinema de Hollywood, talvez não fizessem elles a falta que se imagina: — Walt Disney, sózinho, no seu laboratorio, com os seus recursos de imaginação e de technica, recrearia o Mundo de Celluloide. E quem sabe esse tambem ficaria melhor, como dizem que ficou o nosso mundo depois de lavado pelo Diluvio?...— G.
Leia também
Estadão - 9 de outubro de 1938
