Carta publicada no Estado em 25/8/1897.
Hontem, na cidade Baixa, ao atravessar em passeio uma rua, o general Savaget teve bruscamente tolhida a sua marcha cautelosa de convalescente.
Um cidadão qualquer reconheceu-o e pronunciou-lhe o nome, e, celere como um relampago, este nome immortal abrangeu num momento aquella zona commercial da cidade.
Estacaram, de subito, negociantes que seguiam - passos estugados, azafamados, ruminando cifras, architectando transacções - caminho dos bancos e da Bolsa; paralizou-se durante alguns minutos a movimentação complicadissima de um mercado enorme e num dia commum, de trabalho, abriu-se repentinamente, como um parenthesis, vibrante e festivo, um quarto de hora de verdadeira festa nacional.
A linguagem secca dos telegrammas transmitiu para ahi o facto, mas não o pôde definir.
O velho combatente, que reviveu em Cocorobó o heroismo lendario de Leonidas, teve, talvez, a mais bella consagração da sua gloria imperecivel.
Comprehende-se a magestade do triumpho dos heróes que chegam, longamente esperados, entrando nas cidades ornamentadas, sob arcos triumphaes artisticamente constituidos, emergindo aureolados do seio de um povo que veiu á praça publica com o proposito, a intenção preestabelecida de saudal-os ardentemente.
Forra-se, porém á comprehensão vulgar, a scena extraordinaria dessa ovação planeada num segundo, sem bandas marciaes, sem hynnos vibrantes, sem estandartes multicores palpitando nos ares, sem chefes, sem a mis-en-scena banal de sarrafos pintados,- feita repentinamente, ao acaso, no angulo de uma rua e fundindo as almas todas em um brado unico de admiração, surgindo de chofre e surprehendendo mais aos manifestantes do que ao victoriado.
E num bairro exclusivamente comercial, explodindo de dentro da frieza calculista e systematica do egoísmo humano...
Como verdadeiro heróe, vencido pela expansão affectiva dos corações, fragillimo ante as saudações carinhosas.
De verre pour gemir, d'airain pour resister, o velho lidador que atravessava, sob um chuveiro de balas as gargantas das thermopylas do sertão, animando com um sorriso perenne o soldado, - commoveu-se profundamente.
Este facto, altamente expressivo, deve ser memorado; o povo aquilata com instincto admiravel o valor desses homens e não erra nunca.
Eu conhecia de ha muito, irradiando da historia, definida em paginas notaveis, essa modestia caracteristica dos valentes e dos fortes.
Vi-a de perto, agóra, ao visitar o general Savaget e o coronel Carlos Telles.
Encontrei este ultimo no quartel da Palma.
Almoçava, rodeado de amigos, convalescente ainda de dois ferimentos, tendo sobre os hombros o palla riograndense, veste tradicional e inseparavel do soldado do sul.
Afeito, de ha muito, como testemunha das mais agitadas quadras da existencia da Republica, a presenciar afogueadas expansões de bravura em que os valentes se revestem de uma feição theatral, que é como o - charlatanismo da coragem - assombrou-me a placidez modesta de um homem, cujo nome é, hoje, na bocca do nosso soldado, a palavra sagrada da victoria.
Inquiriu-me, solicito, pelos parentes ausentes, e ao referir-se depois, respondendo a perguntas dos circumstantes, nos episodios capitaes da guerra, observei a preoccupação de occultar os proprios feitos, annullando-se voluntariamente, pelo patentear exclusivo de alheios rasgos de bravura.
Por outro lado, quem visitasse o general Savaget, no forte da Jequitaia, procurando o chefe impavido da 2ª columna e prefigurando uma feição expressiva e energica de lidador estrenuo, teria positivamente uma decepção, ante um homem de aspecto modesto e digno, conversando calmo, com uma dicção correctissima e gestos commedidos, revestido de uma adoravel placidez burgueza, de todo contrastando ao renome guerreiro que o circumde.
Ao despedir-me, em intima evocação de antiquissima leitura, illuminou-me o pensamento a phrase de French ao deixar John Stirling: senti-me de algum modo enuobrecido e elevado a uma esphera superior áquella em que de ordinario nos deixamos voluntariamente ficar.
E depois disto sinto uma piedade extranha pelos bravos - e são tantos em toda a parte! - que fervilham em todos os logares, de postura desempenada como se vestissem fardas sob espartilhos justos - de olhar dominador e gestos sacudídos - espantando a burguezia timida com o relatar de estrepitosas façanhas, arastando estridulamente, retinindo nas pedras das calçadas, os gladios acintilantes...
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Tags: Guerra de Canudos, Euclides da Cunha
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