Gerações de estudantes brasileiros de todos os níveis têm nos livros da coleção “Primeiros Passos” um porto seguro para a introdução ao conhecimento de assuntos complexos que não estavam nos livros escolares. Numa iniciativa mercadológica de sucesso, a editora Brasiliense desde os anos 80 contrata especialistas para apresentar de forma clara e didática temas que são detalhados em livros em formato de bolso com o prefixo “O que é” no título. Para “O que é Nordeste Brasileiro”, lançado em 1984, o nome escolhido foi o do jornalista Carlos Garcia, então chefe da sucursal do jornal O Estado de S. Paulo em Recife.
Com a experiência acumulada em décadas de profissão, Garcia declarou na época do lançamento que acreditava ter cumprido com o seu livro uma tarefa de grande importância: não só fornecer um conjunto de informações básicas sobre a região, como desfazer equívocos sobre a realidade nordestina. E para isso, disse ao jornal, não foi necessário grande esforço, pois o conteúdo do livro era uma síntese das reportagens que ele fez percorrendo a região de ponta a ponta desde que começou no jornalismo, na década de 1950.
O reconhecimento ao trabalho de Garcia sobre a região pode ser medido com uma das resenhas publicadas sobre o seu livro, assinada por Gilberto Freyre, um dos maiores intelectuais brasileiros e que também teve o nordeste como tema de sua vasta obra. “O livro de Carlos Garcia é valioso pelo que informa. É valido como vibrante denúncia do que vem sendo discriminação, da parte de Brasília, contra um Nordeste considerado quase subbrasileiro”, escreveu o autor do fundamental “Casa-Grande & Senzala”.
Em outra crítica publicada sobre o livro, o jornalista econômico Alberto Tamer aponta um traço marcante do trabalho de Carlos Garcia, a capacidade de aliar um texto crítico às informações precisas. “Toda a temática da região ali está, viva, clara, dinâmica, bastando ao leitor apenas um pouco de atenção para ler nas entrelinhas o protesto veemente de um homem do Nordeste contra as injustiças de tantas décadas, que alimentaram essa pobreza e essa miséria, jogada pelas televisões na face de todos os brasileiros nas cenas dramáticas da última seca.”
Desfazer a imagem de que a região era apenas seca e miséria foi uma constante no trabalho do jornalista. Nas várias vezes em que tratou do assunto nas páginas do jornal, suas abordagens sobre a falta dágua na região iam muito além dos efeitos econômicos. Realizava verdadeiros tratados, mostrando os aspectos sociais, comportamentais e culturais que a estiagem provocava na população da região.
Um exemplo é a reportagem sob um título que remetia aos versos de Luiz Gonzaga - “Mandacaru floriu: é a chuva” - em que os leitores do Estadão de 5 de novembro de 1970 eram informados numa página inteira na contra-capa do jornal como os agricultores do sertão nordestino recebiam os sinais da natureza de que o período de seca estava para terminar.
Num texto introdutório repleto de detalhes da rotina dos sertanejos e de seu linguajar, Carlos Garcia praticamente levou o leitor do Estadão daquela dia para dentro de um roçado nordestino:
“O calor está acima do normal e o vento sopra forte, da direção do poente. Para o sertanejo, são sinais de chuvas próximas e de que haverá “inverno”. Nesta época o nordestino está preocupado em observar os indícios que lhe dirão se o próximo ano será sêco ou não”. E todos os sinais indicam um bom “inverno”: o mandacaru está florido (sinal já cantado pelo compositor Luis Gonzaga em baião: “Mandacaru quando fulóra na sêca, é sinal que a chuva chega no sertão”); outras árvores também estão florindo; os animais silvestres estão dando cria (“bicho não ia dar cria sabendo que o filho ia morrer na sêca e bicho sabe se vai chover ou não”); a curimatã (peixe dos rios e açudes do Nordeste) está ovada (ela só desova com “água nova”, ou seja quando caem as primeiras chuvas). Na região semi-árida do Nordeste, sujeita ao fenômeno cíclico das secas – o chamado sertão – as chuvas podem começar em novembro, dezembro ou janeiro, mas sempre caem primeiro no Piauí e vêm avançando em direção ao leste. E as primeiras chuvas já começaram a cair naquele Estado.”
Em reportagens como essa, Garcia deixava o estilo jornalístico mais tradicional para os textos suplementares, onde dados, análises e entrevistas mostravam a agilidade e versatilidade de um repórter para qualquer tipo de publicação.
Canudos - Em 5 de outubro de 1972, os leitores do Estadão puderam ler outro grande momento do repórter, quando Carlos Garcia escreveu sobre a sua ida a Canudos 75 anos depois do massacre dos seguidores de Antônio Conselheiro. Na reportagem, um dos maiores orgulhos profissionais que gostava de contar para familiares, colegas e amigos, Garcia refez os passos de Euclides da Cunha em Os Sertões para descrever que “desde a época em que viveu Conselheiro o sertão nordestino sofreu transformações radicais”.
“Graças aos avanços da tecnologia e do próprio desenvolvimento do País, o sertanejo não constitui mais aquela sociedade insulada, quase que sem contatos com a civilização instalada ao longo do litoral. Já não existe no Nordeste uma civilização sertaneja e uma civilização litorânea. Os transportes, os meios de comunicação, a energia, a infra-estrutura, embora ainda deficiente, já existe nos sertões. Até mesmo a televisão, através de estações repetidoras, chega às cidades e povoados outrora palco das pregações do Conselheiro.
Já não morrem mais ninguém de sede nem de fome aguda durante as secas que periodicamente assolam a região. Os açudes e as rodovias impedem que isso volte a acontecer. A presença do Governo cada vez maior prenuncia para breve o fim dos “coronéis” que, hoje, tem apenas uma ínfima parcela do poder e da importância que tinham no fim do século passado. É obvio que uma nova Canudos jamais poderá surgir no sertão nordestino, mas não um novo Conselheiro. Se as condições físicas do Sertão foram transformadas radicalmente nos últimos 75 anos, o homem sertanejo pouca coisa mudou.”
Outro ponto alto da reportagem foi o perfil do nonagenário José Ciriaco de Santana, o Tizé, então único sobrevivente conhecido ainda vivo da Guerra de Canudos. Tizé contou a Garcia que era um menino de 11 anos que morava a três quilômetros do povoado quando Antonio Conselheiro chegou com seus seguidores para ali se fixar. “Os jagunços vinham, diziam que era pra todos se mudar. Quem não ia logo, os jagunços voltavam e tocavam fogo nas casas – conta ele, hoje, no povoado de Cororobó, onde vive esperando a morte, com os seus 90 anos.”
Antes de entrar nos detalhes das memórias do entrevistado, Garcia descreve o homem que os leitores poderiam visualizar mesmo que uma foto feita por Ricker Vieira não tivesse sido publicada ao lado do texto: “Barba rala e branca, cabelos também brancos, a espinha dobrada que para andar precisa do apoio de um cajado, como usava o Conselheiro, não por admiração ao Conselheiro, mas por hábito das pessoas trôpegas no sertão. Gestos gentis, mandando entrar, oferecendo cadeiras, a hospitalidade característica do sertanejo. Ralhando aos gritos com o cachorro que também vinha saudar os visitantes. Assim é Tizé.”
Torturado na ditadura – Mas nem todos os leitores gostavam dos textos de Carlos Garcia, sobretudo alguns que ocupavam mesas em gabinetes do poder. Apontando os problemas da região em suas reportagens e de sua equipe – além dos repórteres na capital pernambucana, coordenava a rede de correspondentes nas outras capitais do Nordeste – atravessou os anos da ditadura militar tendo que se esquivar da truculência autoritária do regime. Numa entrevista a Evaldo Costa, Homero Fonseca e Mário Hélio em 2004, Garcia contabilizou 13 convocações para depor, “quase todas do tempo do Estadão, que era onde eu podia tratar de certos assuntos. Fui, inclusive, alvo de um IPM (Inquérito Policial Militar).
Em março de 1974, uma dessas convocações não ficaria restrita apenas a um depoimento formal. Garcia foi levado algemado do escritório da sucursal do Estadão no centro do Recife para falar com um coronel (não dos antigos coronéis retratados em suas reportagens, mas coronel mesmo), do Exército Brasileiro, no caso Cúrcio Neto, da 4ª Seção. “Ficaram rodando comigo uns 20 minutos, fazendo ameaças, conversando besteira. Diziam coisas do tipo: “A gente nunca mais tinha jogado ninguém da ponte...” Mas fui levado para o DOI-Codi. Quando cheguei lá, um grupo começou a fazer um enorme alarido, para intimidar. Depois, me colocaram no pau-de-arara, e deram choques. Ligavam a maquininha e botavam um polo na orelha e outro nos testículos ou no pênis.”
Em 2015, Garcia contaria no documentário “Estranhos na Noite – Mordaça no Estadão em Tempos de Censura”, de Camilo Tavares e José Maria Mayrink, mais detalhes da crueldade dos torturadores. Nas sessões de exibição do filme, o silêncio total das plateias no momento em que Garcia narra como ficou pendurado num gancho sem poder tocar os pés no chão chegava a ser agoniante.
Apesar da violência sofrida, Garcia não levava isso como um trauma e nem se vangloriava da experiência de ter resistido. Ao filho Rodrigo, também jornalista, dizia ficar mais triste pelo País ter passado por isso do que a própria dor pessoal. Mesmo sendo oferecida pelo jornal a possibilidade de mudar-se para outra cidade ou país, Garcia optou por continuar trabalhando no Recife após tirar alguns dias de descanso com a a família. Tampouco, a violência sofrida o intimidou de publicar mais conteúdos que desagradassem ao regime.
Em novembro, trechos da a entrevista que fez com o deputado Marcos Freire, do oposicionista MDB, analisando a vitória do partido sobre os candidatos do regime entrariam para a famosa lista de matérias censuradas do jornal substituídas por versos de “Os Lusíadas”, de Camões.
Por anos, a sucursal do Recife e sua casa seriam pontos de encontro de diferentes gerações de jornalistas e intelectuais pernambucanos, além de proteger perseguidos pelo regime. “Eu recebia as informações de outros jornalistas, dos familiares dos presos e dos militantes. Imediatamente, eu fazia os textos e mandava para São Paulo. Lá havia um esquema para distribuir com as agências internacionais, que repassavam para o mundo inteiro. Isso tornava difícil a morte dos presos porque, aí, os militares ficariam responsáveis.”
Na década de 90, quando o jornal iniciou a informatização de suas operações e, com isso, passou a fechar sucursais em outros estados, entre elas a de Recife, Garcia foi convidado a assumir o comando do arquivo do Estadão. Pela primeira vez na vida, deixaria de trabalhar na capital pernambucana e se mudaria para São Paulo, onde o filho Rodrigo já estava morando desde que fizera o Curso de Focas, o treinamento do Estadão para jovens jornalistas. A nova missão seria conduzir o arquivo na transformação do acervo em um banco de dados informatizado.
Volta ao Recife - O seu desligamento do jornal após concluir a primeira fase da informatização levou Garcia de volta ao Recife onde iniciara a carreira como autodidata no Jornal Pequeno, passando também por Última Hora Nordeste, Diário da Noite e Jornal do Commércio. Bom de conversa, um de seus prazeres, e com trânsito em vários setores na capital pernambucana, Garcia assumiria uma coluna de notas políticas na Folha de Pernambuco.
Também tornaria-se sócio de uma pequena editora e gráfica, a Comunigraf, além de ser Secretário estadual de Cultura no governo de Jarbas Vasconcelos (PMDB). Nos dois anos em que exerceu o cargo, sucedendo o amigo Ariano Suassuna, a diretriz de Garcia era valorizar a cultura popular com o mesmo prestígio dedicado à cultura erudita. Tinha como orgulho de sua gestão o restauro da Torre Malakoff, um dos vários monumentos do século 19 no Recife Antigo.
Covid - Diagnosticado com Parkison desde 2008, Garcia era um paciente exemplar nos tratamentos fisioterápicos para atenuar os efeitos da doença. Apesar de algumas dificuldades físicas, mantinha a lucidez de sempre e era um voraz espectador de telejornais. “Era superinformado sobre tudo”, contou o filho em entrevista após a morte do pai.
Em 10 de abril, passou a ter dificuldades respiratórias e foi diagnosticado com Covid 19. Ficaria 17 dias internado no Real Hospital Português de Recife, dez deles entubado. Quando a respiração melhorou e saiu da entubação, recebeu a visita da mulher, Vanize Maria Cabral de Vasconcelos, a quem ainda conseguiu declarar o seu amor, assim como mandar uma mensagem por celular para o filho, com a voz fraca, dizendo “eu te amo”. Morreu no dia seguinte, terça-feira, 27, com choque septico e pneumonia bacteriana agravando o quadro das outras duas doenças que tratava.
Enterrado quarta-feira, 28, no cemitério Parque das Flores, Garcia deixa os filhos Rodrigo e Roberta, do primeiro casamento com Maria Ângela, de quem ficou viúvo em 1991, as enteadas Katarina, Ana Carolina e Rafaela, e os netos Gabriel, Marina e Maria Cecília. Gerações de jornalistas que conviveram com Garcia no Recife também fizeram declarações de como se sentiam órfãos com a partida do mestre e amigo.
A missa de sétimo dia será na Igreja Nossa Senhor de Fátima, em Boa Viagem, no Recife, às 17h da segunda-feira, 3/5.
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