‘Coisas da Cidade’: casarão da mais antiga farmácia de SP é demolido

Cronista contou em 1921 a história de um prédio de 1858 que abrigou a Botica ao Veado de Ouro

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Atualização:
Crônica sobre a demolição do prédio da farmácia publicada em 25 de fevereiro de 1921. Foto: Acervo Estadão

“Mais um velho edifício se vae.” Assim começa a crônica de José Martins Pinheiro Junior, sobre a demolição do prédio da farmácia mais antiga da cidade em 1921. Essa frase poderia ser tido dita por quase todos os paulistanos que vieram depois do jornalista e observador da São Paulo do começo do século 20. Isso significa que o ditado ‘São Paulo não para’ virou os séculos e ainda é válido entre nós.

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Ao testemunhar a derrubada do casarão na rua São Bento, onde funcionava desde 1858 a Botica ao Veado de Ouro, Pinheiro Neto, autor da coluna ‘Coisas da Cidade’, não se limitou a criticar ‘a frebre de construcções e remodelações’ da cidade e levou o leitor para dentro do imóvel do século 19 através de suas lembranças do local.

O prédio de 63 anos era “acaçapado, de beirais largos e largas escadas, tudo nele falava de outros tempos”. A parte interna, para Pinheiro Neto não era algo que lembrasse uma farmácia, mas um cenário para despertar o terror. Lá, “os compartimentos escuros, de tecto baixo, e frascos, retortas almofarizes por todos os cantos faziam pensar antes no sombrio laboratorio de Fausto do num estabelecimento pharmaceutico de São Paulo, em 1920″.

Leia a íntegra do texto com a grafia da época:

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Estadão - 25 de fevereiro de 1921

COISAS DA CIDADE

O VELHO S. PAULO

Mais um velho edificio que se vae... Na febre do construcções e remodulações que ha alguns lustros invadiu a cidade, causava especie, realmente, que só o antiquissimo predio da Pharmacia do “Veado de Ouro”, á rua de São Bento, continuasse de pé. Baixo, acaçapado, de beiraes largos e largas sacadas, tudo nelle falava de outros tempos, ainda não muito longinquos, mas que, para a cidade inteiramente modernisada que é a nossa, representam já um passado remoto.

E se o aspecto externo da casa vetusta chamava logo a attenção pelo contraste violento que fazia com os altos predios vizinhos, essa impressão mais se accentuava no interior, onde os compartimentos escuros, de tecto baixo, e frascos, retortas almofarizes por todos os cantos, faziam pensar antes no sombrio laboratorio de Fausto do que num estabelecimento pharmaceutico de São Paulo, em 1920...

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A Pharmacia, ou antes, a Botica do “Veado de Ouro”, como sempre se chamou o se chama ainda, data de 1855, e foi fundada alli mesmo, na rua de São Bento, da onde a arrancaram ha poucos mezes para lhe demolir o edificio e levantar, no seu logar, um arranha-ceus qualquer. Ha sessenta e tres annos... Ε´, assim, a mais antiga pharmacia da cidade, que ainda em 1865 só possuia cinco, das quaes só resta hoje a do “Veado”.

São Paulo era então, e foi ainda por muito tempo, uma cidade de estudantes, cujas pandegas e trotes alarmavam de quando em quando, as pacificas familias de Santa Ephigenia, da Consolação ou da Gloria, que eram os bairros mais afastados. Os estudantes embirravam, as vezes, com o veado da botica, davam-lhe caça, por horas mortas, para arreliar o digno boticario sr. Schaumann. Conta-se mesmo que, certo dia appareceu по “Correio Paulistano” este annuncio:

“Botica “Veado de Ouro”, rua de São Bento - O illmo. sr. Iadrão que na noite de... levou do frontespicio deste estabelecimento o veado dourado que lhe serve emblema, terá a bondade de vir ou mandar restituir, nesta casa, á rua de São Bento. Garante-se absoluto segredo e uma gratificação de 50$000.”

Excusado dizer que o veado voltou aos seus penates. Voltou, para ser de novo arrebatado, tempos depois, por outros pandegos... Hoje, os estudantes já não pregam mais dessas peças aos negociantes da cidade. E o veado dourado póde descansar tranquillo á frente do seu novo domicilio... P.

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Crônica sobre a demolição do prédio da farmácia publicada em 25 de fevereiro de 1921. Foto: Acervo Estadão

‘P’: Um cronista da cidade de São Paulo

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José Martins Pinheiro Junior, ou ‘P’, como assinava, nasceu em 12 de abril de 1884 em Silveiras (SP). Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1907. Dois anos depois, entrou para o jornal ‘O Estado de São Paulo’ como redator, cargo que exerceu durante 35 anos. No jornal, além de redigir a seção ‘Coisas da Cidade’ ocupou-se da também da coluna “Revista das Revistas”. Também foi um dos fundadores da ‘Revista do Brasil’ (1916) e do Diário da Noite (1926).

Como advogado foi nomeado, em 1931, para o cargo de Curador Fiscal das Massas Falidas da cidade de São Paulo, que ocupou até 1954 quando se aposentou. Pinheiro Junior faleceu em 2 de outubro de 1958. No Acervo Estadão estão registrados 3.311 textos publicados por ele entre os anos 1910 e 1945.

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