Duas atrizes com o mesmo nome. Mãe e filha. As “Fernandas”, como ressaltou o título da página ‘Artes e Espetáculos” do Jornal da Tarde de 30 de julho de 1990. As futuras indicações ao Oscar como melhor atriz de cinema ainda estavam num futuro distante. Fernanda Montenegro tinha 60 anos e Fernanda Torres, 24, em julho de 1990, quando receberam a repórter Ana Carmen Foschini no restaurante de um flat em São Paulo.
Fernanda e Fernandinha, como foram chamadas para diferenciar uma da outra, estavam trabalhando em peças diferentes na cidade e conversaram sobre a vida, carreira e suas diferenças e semelhanças. Leia a íntegra e veja fotos inéditas do encontro feitas pelo fotógrafo Vidal Cavalcanti.

Você é filha de operário e eu sou filha de artista na zona sul. Muda muito. Isso é muito engraçado. A mamãe sempre olhava para a gente e dizia: “A vida não é assim. Na vida de artista, pode ser que amanhã não tenha nada para vocês”.
Fernanda Torres - Jornal da Tarde, 30 de julho de 1990

Nunca fui uma mãe de chinelo na mão dizendo “agora estuda, agora vai nadar, agora aula de alemão”
Fernanda Montenegro, Jornal da Tarde, 30 de julho de 1990.
Jornal da Tarde - 30 de julho de 1990
FERNANDAS
A que luta como Scarlet O’Hara. E a quer a sua Caloi.
Por Ana Carmen Foschini
Um encontro acontece em São Paulo entre Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. No palco do teatro Ruth Escobar, Fernanda, 60 anos, se emociona e chora todas as noites com a Dona Doida do texto de Adélia Prado. No palco do Tuca, Fernandinha, 24 anos, já pode se deliciar com o banho que Orlando, de Virgínia Woolf, toma em cena.
Compraram uma resistência para o chuveiro e agora a água vem quente. Mãe e filha experimentam se olhar pela primeira vez como duas atrizes em temporada na mesma cidade, que trocam telefonemas para dizer: “Lotou, o teatro lotou!”.
Estão se conhecendo. Fernandinha ainda desconcerta a mãe, quando revela que já votou nulo, no Macaco Tião. Fernanda Montenegro responde que Deus tudo perdoa. Diz que faz parte da geração de Scarlet O’Hara, a heroína do filme E o Vento Levou que reconstrói a vida depois da guerra.
Fernanda Torres começa hoje a trabalhar como assistente de direção de Bia Lessa, na ópera Soror Angélica, uma experiência nova. Cobra da mãe ser uma nulidade em esportes, diz que a relação entre as duas está mais próxima. A mãe discorda. Fernandinha diz que é da geração “Não esqueça da minha Caloi”.
No restaurante de um flat nos Jardins, elas falaram no sábado à tarde ao Jornal da Tarde como ilustres representantes do matriarcado que impera na família de Aríete Pinheiro da Silva, verdadeiro nome de Fernanda Montenegro. Fernando Torres, seu marido há 36 anos, e o filho mais velho, Cláudio, são homens de valor, segundo ela: “Nos suportam e sobrevivem a nós”.

Fernanda foi criada em um bairro do Rio que ainda era parecido com a zona rural. Fernandinha cresceu brincando em coxias. Como foi essa diferença de criação entre vocês?
Fernanda — Quando eu nasci, Jacarepaguá, na zona de Campinho, era uma região cheia de chácaras. Até meus filhos nascerem, se passaram 30 anos, e minha vida se modificou muito.
Fernandinha — Você é filha de operário e eu sou filha de artista na zona sul. Muda muito. Isso é muito engraçado. A mamãe sempre olhava para a gente e dizia: “A vida não é assim. Na vida de artista, pode ser que amanhã não tenha nada para vocês”. Eu não fui para a Disneylândia quando eu tinha dez anos de idade. A gente até foi, mas não foi aquela coisa de gente rica, a gente nunca foi milionário.
Você foi para a Disney?
Fernandinha — Com eles. Mas olha bem essa viagem. Era a primeira vez que eles estavam indo para a Europa, esses dois (os pais). Aí, cataram a família, mais a babá, que o dólar nessa época não estava isso. Era 1975.
Fernanda — E tínhamos três Moliéres (passagens para a Europa) para gastar. Fernando tinha o dele, eu tinha o meu e tinha ainda um terceiro prêmio.
Fernandinha — Mas era assim, dois dias em um lugar, dois dias no outro. Ela dizia: “Brinquedo, só em Nova York”. A gente passava por David, por Michelangelo e eu perguntava: “Mãe, onde é Nova York”? E tem também a viagem hippie para Machu Pichu. O Cláudio, outro dia falou nisso. Disse: “Cara, eles eram doidões, levar a gente para Machu Pichu”.
Fernanda — Porque quando a gente tem uma cabeça tribal como é a minha e também é a de Fernando, a gente sabe que os filhos logo vão ter sua vida e tem coisas que você quer viver junto.
Fernandinha, ela era severa como mãe?
Fernandinha — Não, eles eram “energia racional, a verdadeira luz da humanidade”. Você tinha que rapidamente esclarecer seu raciocínio, para poder ter alguma base de negociação. Então era assim: “Meu Deus, agora vou enfrentar um duelo de raciocínio e eu sou só uma criança. Mas a gente não faz esporte, mãe. Isso é um problema, minha mãe.
Fernanda — Não, vocês não fazem esporte porque isso é de vocês.
Fernandinha — Isso é da família.
Fernanda — Ah, bom, se é da familia não é uma deturpação de educação. Nunca fui uma mãe de chinelo na mão dizendo “agora estuda, agora vai nadar, agora aula de alemão”

Fernandinha, por que você reclama de não ter feito esporte se também foi uma opção sua? Você poderia estar fazendo esporte agora.
Fernandinha — Eu devia ter malhado. Malhação é o horror, mas devia ter esse prazer de praia, de pegar onda. O Cláudio nunca pegou onda. Eu, quando via uma bola, desviava, nunca tive talento. Você vê a Torloni, uma mulher maravilhosa. Ela acorda e vai correr, mãe.
Fernanda — É pura queixa boba.
Fernandinha — Não é pura queixa boba. É uma falha na família.
A Fernandinha foi uma pessoa que contestou valores, houve atrito, conflitos?
Fernanda — Eu também fui adolescente e deixei meus pais completamente aturdidos com uma filha que, queria ser atriz.
Fernandinha — Não teve trauma, mas teve uma hora em que houve embate. Algumas vezes vocês se assustaram.
Em que hora foi esse susto?
Fernanda — Na hora em que ela quis chegar em casa às 3 horas da manhã, com 13, 14 anos.
Fernandinha — A gente nunca dormiu muito fora. Aí, uma hora isso não é mais possível. Você cresce e fala: “agora estou a fim de chegar tarde”. Comecei a ir ao Tablado, (curso de Teatro), a ter meus amigos, comeceu a ir ao Baixo (Leblon). Isso começou aos 13 e foi até os 16. Eu lembro que nos 17 eu senti que a minha vida ia melhorar. E começou uma vontade violenta em mim de ter a minha casa. Eu comprei um buraco com 16 anos.
Fernanda — Com o primeiro dinheirinho que ela conseguiu com seus cachês, ela comprou a casa própria. Coitada, isso é uma herança de mãe e de avó. Esse matriarcado tem essa fixação em ter seu teto.
Essa familia é um matriarcado?
Fernanda — É um matriarcado. Nossos homens são fortíssimos porque nos suportam e sobrevivem a nós.
Fernandinha — E aí teve também outra coisa, eu com 18 anos fui morar com o (Pedro) Bial. E durante um tempo teve uma distância e a gente perdeu uma certa intimidade.
Fernanda — Não, filha, o que se perdeu foi a meninice dos filhos.
O que a Fernanda Montenegro, casada há tanto tempo com o Fernando Torres, acha dos três casamentos de Fernandinha (com Pedro Bial, Lui Farias e Antônio Pedro Vanzolini)?
Fernandinha — Eu já tive três e deveria ter tido os três pela vida.
Fernanda — Eu acho que a hora que ela encontrar o homem certo, ela vai ficar com ele.
Fernandinha — O mundo mudou.
Fernanda — É, e a minha geração foi feita para o futuro e o eterno. Mas não é por isso que eu não vou entender. Não julgo.
Fernandinha — E, mas outro dia você me disse “minha filha, quantos vão ser? Tenho esse problema em dizer quem é o meu genro”.
Vocês se acham parecidas?
Fernandinha — A gente é parecida de cara.
Fernanda — Mas você é mais bonita que eu, mais bem acabada.
Fernandinha — Imagina, você era uma gata. Olha mãe, a gente sabe que nós não somos estragadinhas, mas a gente não é de parar o trânsito, não é?
E de gênio, são parecidas?
Fernandinha — É engraçado falar de você. Tem duas mulheres, a Fernando Montenegro, mais séria, e tem a Arlete, a administradora do lar. Eu não tenho isso da Arlete.
Fernanda — Pois eu acho você uma excelente administradora. Eu é que não sou.
Fernandinha — Que é isso? Você adora um telefone e umas continhas. Eu acho que eu segurei essa coisa de auto-suficiência, odeio depender de qualquer pessoa. Isso eu herdei desse lado matriarcal da família.
Na semana passada, fui ao México para dublar o filme One Man’s Show, de Sérgio Toledo, tinha acabado de estrear aqui Orlando. Tentei voltar no mesmo dia. Quando cheguei no aeroporto, descobri que só tinha reservas até Miami e que de Miami a São Paulo não tinha lugar em avião nenhum. Liguei para minha mãe. O que é que se faz numa hora dessas? Ai, ela me disse “calma, Nanda, é você quem tem que resolver isso. Claro. E pára de sentir pena de você que isso é um passo para a depressão”.

Vocês já pensaram em montar uma companhia ou dirigir um teatro ?
Fernandinha — The Fernanda’s Circus.
Fernanda — A gente acha que um dia vai trabalhar juntas. Uma hora vai ter um texto.
Vocês dão palpites nos personagens da outra?
Fernandinha — A gente troca idéia, mas não dá, né. O cara vai lá, trabalha, rala, e vem a sua mãe falar do seu trabalho, a sua filha dizer o que você deve fazer?
Fernanda, o que você disse à Fernandinha sobre drogas?
Fernanda — Eu sempre me posicionei contra, sou caretíssima nisso. É a vida deles, cada um responda por si. Eu sou do tempo em que você comprava qualquer droga na farmácia e nesse tempo não tinha gente induzindo criança em colégio a usar droga. Há muitos anos sou pela liberalização total.
Fernandinha — Como dizia um amigo meu, eu nunca encontrei esse pipoqueiro. Ele não trabalhava lá no meu colégio.
Vocês discutem politica em casa?
Fernandinha — Não. Quando eu cheguei na escola já estava na época da Anistia e eu tive um desinteresse enorme.
Fernanda — A gente tem votado nas mesmas pessoas.
Vocês já tiveram alguma briga tão feia com um diretor como a que acontece com Marilia Pêra em Rebeldades?
Fernandinha — Já tive momentos de infelicidade profunda só de olhar aquele ser humano.
Fernanda — Eu nunca briguei assim não.
Fernandinha — Você nunca ficou muito infeliz, mãe? Você tem mais experiência. Eu sou criança, quando estou infeliz quero levar todo mundo para o buraco junto.
Fernanda — Nada é eterno. Sou da geração Scarlet O’Hara, tenho a pretensão de ter o destino nas mãos. Nem que a chuva dure quatro anos, nove meses e não sei quantos dias, como no romance do Garcia Marquez (Cem Anos de Solidão), um dia ela pára.
Fernandinha — E eu sou da geração “Eu quero a minha Caloi”.
Jornal da Tarde - 30 de julho de 1990

Leia também
GALERIA DE FOTOS
Jornal da Tarde
Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.
Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.
Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.