João Cabral de Melo Neto: “escrevi meio que com os pés”, disse sobre seu clássico ao Estadão em 1986

Crítico, perfeccionista e tentando se aposentar da escrita, imortal pernambucano avaliou ‘Morte Vida Severina’ como “a parte que menos interessa” em sua obra. Confira entrevista exclusiva

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Por Acervo Estadão
Atualização:

Um dos grandes nomes da literatura brasileira, João Cabral de Melo Neto [9/1/1920 - 9/10/1999] recebeu o repórter Moacir Amâncio em seu apartamento no Rio de Janeiro para uma entrevista exclusiva no começo de 1986. A conversa com o poeta foi publicada no Estadão em 19 de janeiro de 1986. Leia a íntegra da entrevista e veja fotos inéditas arquivadas no Acervo Estadão.

Negativos fotográficos da entrevista com João Cabral de Melo Neto em 1986.  Foto: Carlos Chicarino/Estadão

Estadão - 19 de janeiro de 1986

Entrevista com João Cabral de Melo Neto , publicada no Estadão de 19 de janeiro de 1986 Foto: Acervo/Estadão

João Cabral de Melo Neto. O poeta e sua despedida, sempre adiada

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Moacir Amâncio

Dezessete livros publicados, um nome lembrado juntamente com o de Carlos Drummond de Andrade, o poeta João Cabral de Melo Neto declara que gostaria de parar de escrever. É um desejo antigo que ele reafirma no poema de encerramento do seu último (?) livro, “Agrestes” (Nova Fronteira). “Eu faço esses anúncios porque escrever para mim é uma coisa muito difícil. Para que eu fico tendo esse trabalho gratuito se isso não significa nada, quer dizer, não me traz nenhuma vantagem?”

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É o que diz o poeta, que no último dia 6 completou 66 anos. Em sua opinião, uma idade em que já deveria parar. Mas com certo humor, João Cabral de Melo Neto acrescenta que, pelo menos até agora, não conseguiu por temer o vazio que a “aposentadoria” literária pode representar.

Como é diplomata - cônsul-geral no Porto -, não poderia nem mesmo acompanhar o futebol, pois é torcedor do América, do Rio. Além disso, a literatura tem sido o seu ponto central de interesse ao longo de 45 anos ou mais.

Em seu apartamento do Rio de Janeiro, onde permanecerá até março, após unta cirurgia no estômago (úlcera), ele fala sobre sua própria poesia e os motivos que o levaram a se transformar no antipoeta mais poeta da literatura brasileira, num tom crítico que não perdoa nem mesmo a própria obra: “A Morte e Vida Severina’ é um livro meio escrito com os pés. Por isso considero que é a parte que menos interessante minha obra”.

O senso crítico faz com que João Cabral de Melo Neto crie obstáculos para si próprio, com o objetivo de tornar ainda mais difícil o ato de escrever. A rima toante, que ele usa, é um exemplo disso. Esse tipo de rima não é muito freqüente, mas pode ser encontrado no barroco Manoel Botelho de Oliveira, em Cecília Meireles e em Manuel Bandeira. Só as vogais coincidem a partir da tônica, ensina o poeta e mestre Péricles Eugênio da Silva Ramos, em sábio-rápido-sapo, tudo-puro. Ou em João Cabral Capibaribe-Recife.

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Agora, 16 livros depois da “Pedra do Sono”, o senhor acha que chegou onde queria com sua obra poética? Realizou o que pretendia?

Eu não digo pretendia, porque isso dá impressão que você quando começa a escrever já tem um projeto perfeitamente definido. Eu não tinha esse projeto nítido. Eu queria fazer uma poesia de um certo tipo. Essa poesia de um certo tipo que eu queria fazer, creio que fiz. Se não tivesse chegado a ela eu não teria publicado e não teria feito. Nada me obriga a escrever, eu não vivo de escrever. Um sujeito que vive de escrever tem que publicar para poder ganhar dinheiro. Agora, é a poesia que eu pretendi fazer no sentido em que é a poesia que eu pude fazer. Eu tinha a idéia de um certo tipo de poesia que eu queria escrever. Talvez até fosse melhor dizer o seguinte: que eu tinha a idéia do tipo de poesia que eu não queria fazer, que é exatamente essa da emoção, isso que se chama emoção e que no fundo é um sentimentalismo mais barato e mais fácil. Emoção é outra coisa.

Há pouco, um poeta dizia em entrevista, a seu respeito, que considerava seu trabalho da mais alta qualidade, mas não conseguia sentir emoção durante a leitura. Como o senhor ve isso?

Eu nunca quis ter emoção. Quando o sujeito fala em emoção, fala nesse tipo de emoção barata e fácil. Eu nunca quis ser um Casirniro de Abreu, nem um Castro Alves. Não sou um instintivo, não sou um romântico. Eu me considero intelectual, um sujeito que vive para ler, e portanto conheço bem a poesia das línguas que sei ler. De forma que se o sujeito não encontra emoção naquilo, paciência, porque ele está esperando certamente encontrar em mim essa emoção romântica, confessional, a eterna poesia de dor de corno, está compreendendo? Isso é que o sujeito chama emoção. Emoção é outra coisa, existe uma emoção intelectual também.

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E como é essa emoção intelectual?

Quando lê, por exemplo, Quevedo, o sujeito encontra essa emoção que está procurando? Não encontra. Quando o sujeito lê Marianne Moore ele encontra essa emoção? Não encontra. Quando lê Valery e Mallarmé, ele não encontra. Ele encontra essa emoção em Fagundes Varela, em Casimiro de Abreu, em Castro Alves.

De qualquer modo, muitos leitores de poesia no Brasil recebem muito bem sua poesia. A critica também. O que o senhor pensa da crítica a seu respeito?

A crítica tem sido muito simpática comigo. Tenho uma infinidade de artigos publicados sobre mim. O que eu sinto, o que eu tenho a impressão, é o seguinte: é que a nossa critica pensa muito pouco no lado técnico da poesia. São raríssimos os críticos que examinam a minha métrica, por exemplo, e a minha rima, o tipo de rima que eu uso e a métrica que eu uso. Agora, a critica que elogia é simpática, o elogio é simpático por definição, e a que não elogia me acusa de coisas que eu tenho o maior prazer em ser acusado.

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Por exemplo...

Cerebral. Eu me considero um poeta cerebral, de forma que quando um crítico diz que minha poesia não presta porque eu sou um poeta cerebral, eu fico na maior alegria, porque eu vejo que esse critico compreendeu. Porque eu sou um sujeito cerebral. Eu sou um poeta artificial, eu não sou um poeta romântico, eu não tenho nada espontâneo. Quer dizer, eu sou um sujeito que trabalha. Então, todas essas coisas que citou o critico, que em poesia são coisas negativas, para mim são coisas positivas, e são exatamente as coisas que eu quero ser.

Que tipo de leitor o senhor tinha ou tem em mente quando escreve? O senhor já contou que um dos seus amigos lhe disse que gostava muito de “Morte e Vida Severina”. Sua resposta foi de que não tinha escrito o livro para ele. Para ele tinha escrito “Uma Faca Só Lâmina”.

Exato. Isso aconteceu com o Vinícius de Morais. Era meu amigo íntimo, um grande poeta. O Vinícius estava no maior entusiasmo com “Morte e Vida Severina”. Então eu disse para ele: mas não foi para você que eu escrevi “Morte e Vida Severina”. Para você eu escrevi “Uma Faca Só Lâmina”.

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O repórter Moacir Amâncio entrevista João Cabral de Melo Neto no Rio de Janeiro em 1986.  Foto: Carlos Chicarino/Estadão

Como o senhor divide então os leitores?

Tenho ainda hoje essa impressão, que você não pode fazer uma poesia muito requintada, porque o Brasil não é só um pais de leitores cultos e requintados. O Brasil é um país de uma grande porcentagem de analfabetos. Se você escrever uma poesia só requintada você está privando uma grande quantidade de brasileiros de ler poesia, e se você escrever somente para esse tipo de brasileiro com pouca cultura, ou analfabeto, você está privando o outro brasileiro culto de poesia também.

Uma luta em duas frentes.

Eu tinha impressão que seria possível lutar, ou por outra, escrever em duas frentes. Escrever para o leitor culto e para o leitor analfabeto. Sobretudo eu sou de Pernambuco e vejo a força que tem a literatura de cordel, que é uma literatura para analfabetos. Não é feita para ninguém ler. Aquilo é feito para ser lido em voz alta, para uma quantidade de analfabetos que ouve aquilo. Por isso “Morte e Vida Severina” eu escrevi daquela maneira fácil, pensando que eu ia atingir esse tipo de leitor de romanceiro de cordel, entende? Não atingi. Tenho a impressão de que, apesar de ter tentado fazer uma coisa simples, no fundo fiz uma coisa sofisticada.

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O senhor quer dizer que “Morte e Vida Severina” está abaixo do nível de sua poesia?

Eu acho que está. Em primeiro lugar, foi o poema em que eu menos trabalhei. Eu escrevi de encomenda. Uma grupo teatral aqui, da Maria Clara Machado, queria um auto de Natal, de forma que eu escrevi aquilo às pressas e não pude trabalhar como gostaria de ter trabalhado, como trabalhei todos os meus outros livros. Sinto que é um livro meio escrito com os pés. É a parte que menos interessa na minha obra.

Quer dizer que o alvo não foi atingido mesmo?

Eu tenho a impressão que é um poema fracassado. Escrevi para esse leitor ou auditor do romanceiro de cordel, para esse Brasil de pouca cultura, e esse Brasil nunca manifestou nenhum interesse por ele. Quem manifestou interesse por ele foi o Brasil das capitais, o Brasil que vai aos teatros. Foi um grande mal-entendido. Quem gosta dele é a gente para quem eu não escrevi. E a gente para quem eu escrevi nunca tomou conhecimento dele.

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É o problema da poesia e da comunicação com o público. Como o senhor sente ou vê a questão?

Eu sinto que sou um poeta de minoria. Nunca me enganei sobre isso. Nunca pretendi ser um poeta de best-seller. Não. Sou um poeta de minoria, como Murilo Mendes foi um poeta de minoria, Manuel Bandeira era um poeta de minoria.

Mas parece que seus livros vendem bem.

O que acontece é que no Brasil, depois que você chega a certa idade e cria um nome, compram o seu livro não para ler, compram o seu livro para botar na estante e para dizer que compraram

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.Esse descompromisso com o público não permite plena e efetiva liberdade de trabalho e invenção?

É uma observação verdadeira.

O senhor diz que não vê influência da sua obra na poesia brasileira. Mas os críticos sempre apontam neste ou naquele poeta algum sinal de influencia da sua obra, um tipo de construção de frase, uma tentativa rítmica que lembra o autor de “Psicologia da Composição”.

Talvez haja incapacidade, no escritor, de reconhecer a influência dele noutro escritor. Talvez essa seja a explicação. Mas eu repito que não vejo nenhuma influência, nem sob o ponto de vista formal, nem sob o que a gente podia chamar de a minha visão do mundo. Para a minha vaidade seria muito agradável dizer que eu influencio, mas não reconheço absolutamente. Eu não encontrei nenhum poeta brasileiro em que encontrasse minha influência. Não me lembro. Eu não posso dizer também que conheço os poetas brasileiros. Vivo fora, de forma que só conheço os livros que me mandam.

Você observa uma certa contenção verbal, uma certa frieza, um certo cerebralismo, mas você vê que todo mundo continua a falar em emoção, nesse sentido de sentimentalidade.

Durante esta entrevista o senhor vem fazendo várias observações criticas. Deve lembrar-se que sua poesia também é critica, ela partiu de uma posição de critica, não é?

O meu ideal antes de escrever poesia foi escrever critica. Não escrevi critica porque quando comecei a escrever poesia vi que não tinha cultura nem experiência para ser critico literário. Mas o meu ideal foi sempre ser critico literário. Depois, por ser diplomata, fui viver fora. E você para ser crítico literário tem que estar dentro da literatura. Você não pode ser critico literário ausente do Brasil. Agora, eu sinto que a minha poesia toda é critica, não somente porque eu tenho muitos poemas falando de escritores, de pintores, de artistas, mas também porque a minha poesia quase sempre é uma visão crítica da realidade. Dentro da realidade social de Pernambuco é, até vamos dizer assim, uma crítica moral. Existe não só uma critica estética, como uma critica moral.

Quer dizer, poesia e crítica não são incompatíveis.

Muita gente acha que há uma incompatibilidade, eu não acho. O Eliot é um poeta crítico. A Marianne Moore é um poeta crítico. O Ezra Pound era uma poeta crítica. A grande contradição talvez da obra do Ezra Pound é que ele, sendo um poeta critico, quis ser um poeta de celebração. As partes mais fracas dos “Cantos” são quando ele quer celebrar as coisas. Mas você veja que ele retomou aquela densidade nos “Cantos Pisanos”, que foram escritos quando ele estava preso dentro de uma jaula. Ele foi acusado de espião.

É possível ver na sua poesia uma critica até mesmo contra a famosa “doçura” da língua portuguesa. Certa vez Unamuno disse que o português é o espanhol sem ossos, elogiando. O senhor ao contrario, estaria colocando ossos no português.

Bom, isso é verdade. Eu evito uma linguagem desante, escorregadia. Eu tenho a impressão que se você escreve numa linguagem escorregadia, você não fixa a atenção do leitor. Faço isso um pouco não só por uma certa incapacidade musical que eu tenho, porque eu não tenho ouvido musical nenhum, como também procuro fazer isso para prender a atenção do leitor. Tem autores que você lê, você está pensando em outra coisa e quando volta vê que não perdeu nada, é como novela de rádio.

Mas como é possível fazer verso sem ter ouvido musical?

Eu não tenho ouvido musical para a melodia. Talvez tenha para o ritmo. O ritmo não é só musical, existe um ritmo sintático. Vocè, diante de uma obra de arquitetura, vê que ela tem um ritmo. Esse ritmo não é musical, porque a arquitetura é muda. Existe um ritmo visual, existe um ritmo intelectual, que é um ritmo sintático.

Mas poesia também é som.

Ai é que está o negócio. Você pode marcar o ritmo do poema independentemente. Mesmo que você leia em voz alta, o ritmo sintático cria esse ritmo para o ouvido. Eu digo que não tenho ouvido musical no sentido que eu não tenho ouvido melódico. Eu sou incapaz de distinguir uma melodia de outra. Eu só distingo a melodia do Hino Nacional e a melodia do Hino de Pernambuco. Fora daí você assovia uma música e eu não sei o que que é. Um concerto para mim é a maior tortura.

E o flamenco? É um tema de sua poesia.

Pois é, talvez a única música. O flamenco e o frevo pernambucano. Acho que é uma música muito ritmada. Eu gosto do frevo porque não me faz dormir. A música em geral me faz dormir, e o meu esforço não é dormir não, sabe? O meu esforço é acordar.

Voltando à poesia. O senhor poderia falar sobre o desenvolvimento do seu verso? O senhor partiu do verso livre para chegar a métrica e à rima. Hoje em dia quase não se fala na técnica exigida pela poesia. Fala-se em espontaneidade e etc.

Eu nunca acreditei na espontaneidade e na facilidade. Tem gente que acha que ser autêntico é ser espontâneo. Quando está sendo espontâneo, você está sendo você mesmo. Eu tenho impressão que isso é um engano. Você está sendo você mesmo quando você trabalha para ser você mesmo. A autenticidade é um negócio de esforço. Eu comecei escrevendo verso livre, nos meus três ou quatro primeiros livros. Mas você vê que a partir de “Rio”, que é um livro de 1953, eu tinha 33 anos, praticamente abandonei o verso livre e comecei a usar a rima toante, que é uma coisa tradicional da poesia espanhola. Eu tinha vivido na Espanha e praticamente tinha descoberto a rima toante. Foi tradição da literatura portuguesa anterior ao Renascimento. Do Renascimento para cá, de todo o Camões para cá, a rima toante caiu em desuso na língua portuguesa. Mas você encontra, por exemplo, na literatura popular de Pernambuco textos ainda assonantados. Devem ter vindo de Portugal ou da Espanha via Portugal.

Uma renovação a partir do passado. Um desafio.

Quando eu digo que sou um poeta artificial, cerebral, não acredito no espontâneo, está claro, tudo que me desse trabalho eu procurava fazer, eu procurava me criar obstáculos, entende? De forma que por isso é que eu comecei a escrever versos medidos e com verso assonantado, porque eu precisava. Robert Frost, poeta norte-americano, dizia uma coisa muito engraçada. Dizia que escrever em verso livre é como jogar tênis sem rede. Eu tinha necessidade de certa dificuldade.

E por que o verso de oito sílabas?

O verso de dez sílabas eu acho cansado. Depois do parnasianismo, de toda essa sonetagem nacional, acho stale, rançoso. Agora, o verso de sete sílabas, que eu uso também, é um verso mais fácil. Para nós, ibéricos, espanhóis, portugueses, hispano-americanos, brasileiros, o verso espontâneo é o de sete sílabas. Para o francês o verso popular é o de oito sílabas. Para o ouvido brasileiro o verso de oito sílabas, sobretudo se você não acentua na quarta silaba, soa como prosa. Os franceses não usam cesura para esse verso. A cesura torna o verso multo monótono. De forma que eu procuro fazer o verso o mais próximo da prosa possível. E o verso de oito sílabas me dá isso. Você veja co “Auto do Frade”. O frei Caneca fala em sete sílabas, mas quando o povo está falando na rua, muda para oito.

Isso me chamou a atenção, por que a diferença?

O verso de sete sílabas dispara melhor. Para os comentários do povo, tenho impressão que o verso de oito sílabas, mais próximo da prosa, era melhor. Eu prefiro o verso de oito sílabas porque para o nosso ouvido ele não soa como verso, soa como prosa. A não ser se você pegar ,por exemplo, o verso de oito sílabas e acentuar todos os versos na quarta e na oitava. Então ele soa como verso, mas soa como dois versos de quatro sílabas.

Quanto tempo o senhor demora para terminar um poema?

Pode demorar anos. O poema para mim não é uma coisa que eu escreva de uma vez. Eu tomo nota, depois aquilo começa a se cristalizar num poema. Tomo a nota, deixo na gaveta anos depois eu pego, acrescento uma coisa, reformo ou jogo fora. Em geral eu não jogo fora. Quando eu morrer vão encontrar muita coisa inacabada, porque em geral eu não jogo fora, porque digo, um dia vai ver que eu consigo sair, elaborar essa nota, no momento atual eu não terno condições.

Mesmo depois de 17 livros, escrever continua difícil?

Eu não tenho nenhuma habilidade para escrever. A aparente habilidade que eu tenho é resultado de um esforço muito grande. Depois de todos esses anos eu ainda não escrevo com facilidade.

Quando o poema está pronto?

Você sente... Eu sinto que meu poema está pronto quando não posso mexer em nada. Enquanto eu posso mexer, eu não publico. Só publico quando digo, bom, já estou completamente enfarado desse poema e já não posso mais mexer nele, ou então acho que já não cabe mais mexer nele. Olha, o Cocteau dizia uma coisa. Você já viu estojo? Você fecha o estojo e dá aquele estalinho, não é? Quando um poema está pronto você tem a impressão que ouve um estalinho como quando fecha um estojo. Quando o poema está pronto parece que há um tic assim.

O último poema de “Agrestes” tem um tom de despedida. O que isto significa?

Eu tento me despedir há muito tempo. Em 1950, quando eu tinha 30 anos, eu entendia que seria a despedida, que não escreveria mais poesia. Porque eu fazia uma poesia altamente intelectual. Quando escrevi “O Cão sem Plumas”, escrevi uma coisa inteiramente diferente. Eu me lembro que quando estava em Barcelona, li numa revista que a expectativa de vida na cidade do Recife, onde eu nasci, era de 28 anos. Na Índia era de 29 anos. Aquele negócio me abalou profundamente. Quer dizer que no Brasil as senhoras ficam fazendo coisas para os favelados da Índia e no Brasil existe uma cidade onde a miséria é maior do que na Índia. Aquilo me chocou muito. Bom, eu disse, não estou mais interessado em fazer poesia, isso. Eu não escrevo porque tenho esse tipo de emoção que me obriga a escrever. Se eu quiser parar de escrever eu paro.

Mas nunca parou.

Aí eu senti o seguinte. Se eu me desinteressasse por escrever eu ia sentir que minha vida ia ficar vazia, compreende? Sobretudo para um sujeito que é diplomata, que vive permanentemente fora do Brasil. A 1iteratura é meu centro de interesse, de forma que se eu deixasse de escrever eu ia perder esse centro de interesse da minha vida. Mais de uma vez eu tentei, ou por outra, eu anunciei que pararia de escrever, mas cada vez eu vejo isso. Faço esses anúncios porque escrever para mim é uma coisa muito dificil. Quando eu lhe disse que sou um poeta cerebral e artificial, isso quer dizer que para mim significa um trabalho muito doloroso, vamos dizer. Fico pensando, para que eu fico tendo esse trabalho gratuito se isso não significa nada, quer dizer, não me traz nenhuma vantagem? Vantagem profissional não’traz nenhuma, ao contrário. Agora, o que acontece é isso. Eu gostaria de parar de escrever.

A coisa vai sendo adiada

Eu sinto então que ia me desinteressar de literatura e minha vida ia ficar vazia de uma coisa que é essencial para mim. Então eu volto a escrever. Nesse poema de “Agrestes” realmente... eu tenho a impressão de que aos 66 anos a gente já devia parar de escrever, ou por outra, ninguém exija mais que escreva, compreende? Se eu passo uns anos sem escrever, já todo mundo acha que eu estou incapaz de escrever, de forma que eu realmente gostaria de parar, de escrever, mas não sei se vou conseguir, por isso. Tenho medo que isso me deixe um vazio que eu não sabe-ria como suplantar, Não poderia suplantar nem com o futebol, porque eu não estou mais em idade de jogar e não posso acompanhar o futebol, porque vivo no Exterior; Como que eu vou acompanhar os jogos do América?

O escritor João Cabral de Melo Neto concede entrevista ao Estadão em 1986. Foto: Carlos Chicarino/Estadão

Pesquisa, digitalização, tratamento de imagens, transcrição, indexação, redação e edição: Liz Batista e Andrio Feijó.

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