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Lança-perfume e carnaval: saiba como era a folia até a proibição da droga nos anos 60

Tubos com o produto químico entorpecente foram a sensação dos carnavais do início século 20 até 1965

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Foto do author Edmundo Leite
Atualização:
Anúncio do lança-perfume Colombina no Estadão em 1926.  Foto: Estadão


Foliões com tubos de lança-perfume em baile de carnaval, 1961.  Foto: Acervo Estadão

Quando o lança-perfume foi efetivamente proibido no Brasil em 1965, o Estadão noticiou “Chega, sem o lança-perfume, o carnaval de 65″:

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“Pela primeira vez em muitos anos, o lança-perfume não estará presente ao Carnaval paulista. O mais tradicional acessório dos folguedos carnavalescos, que após decênios de largo uso se associara indelevelmente ao triduo, desapareceu completamente da praça por força de rigoroso cumprimento do decreto presidencial que desde 1961 proibiu seu fabrico e uso.”

Alguns meses após a primeira folia sem lança-perfume, o colunista Luis Martins escreveu um artigo no qual não deixava dúvida sobre o protagonismo da substância nas festas carnavalescas passadas:

“O meu carnaval, hoje “todo subjetivo” e vivendo apenas de sensações retrospectivas, está impregnado do cheiro mórbido, excitante e capitoso dos lança-perfumes. Era o aroma, a poesia, a magia do Carnaval. Sem ele, a festa seria uma festa qualquer, a orgia uma orgia comum. Côr, música, barulho, cantorias, zé-pereira, fantasias, confeti, serpentinas, bebedeira, confusão, não resolviam.

Era preciso, para ser Carnaval, que a atmosfera toda recendesse a éter perfumado, que os frios e finos esguichos, espirrando dos tubos, se cruzassem, como lança-chamas numa batalha campal, picando a epiderme, excitando os sentidos, provocando a confraternização dos sexos e a doce perspectiva de aventuras... Evoé, Momo!”

O Estado de S.Paulo,22/02/1936 Foto: Acervo/ Estadão

Luis Martins escreveu o seu artigo em agosto de 1965 porque lera no Estadão que o deputado Aureo Melo apresentou um projeto de lei propondo a volta da liberação do lança-perfume em todo o Brasil alegando que o “lança-perfume é um divertimento inocente, elegante e de bom-tom”.

Após abrir uma pequena brecha ao contraditório sobre os malefícios do lança-perfume - “O pessoal estava abusando” - Martins brincou: “Se é tão inocente assim como ele diz, não sei. Mas, se eu fôsse deputado, creio que haveria de votar a favor do seu projeto de lei. Por sentimentalismo ou, se quiserem, não faz mal que digam: por puro saudosismo. Para ter a sensação de que o Carnaval - o “meu” carnaval - ainda não morreu...” [leia a íntegra no final dessa notícia]

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Apesar do tom pessoal, o texto de Martins expunha a realidade das várias gerações que viveram seus carnavais movidos, sem qualquer restrição, a uma substância química nociva que pode causar graves danos à saúde e até a morte.

Efeito entorpecente

Se no começo eram o geladinho na pele e o perfume gostoso que se evaporava que faziam sucesso quando espirrados pelo ar, não demorou para que os foliões passassem a inalar lança-perfume diretamente pelo nariz e pela boca para experimentar os efeitos entorpecentes do cloreto de etila e das outras substâncias que compunham o produto.

Mas até começar a ter seu uso questionado, a partir da década de 50, o uso do lança-perfume era tão disseminado que, logo após o Natal e o Ano Novo, começavam a aparecer nos jornais os anúncios publicitários de vários fabricantes.

“O perfumador VLan é o preferido para os folguedos carnavalescos... VLAN é o lança-perfume escolhido não só pela sua esmerada confecção como, especialmente, pelas suas finas e ennebriantes essencias. VLAN não irrita a pelle. VLAN não offende a vista”, dizia o anúncio publicado no Estadão de 13 de janeiro de 1929.

Estadão - 13 de janeiro de 1929

Anúncio do lança-perfume Vlan no Estadão de 13 de janeiro de 1929. Foto: Acervo Estadão

Multinacional do lança-perfume

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

O sucesso do produto químico criado na França foi tão grande no Brasil que a empresa francesa Rhodia se instalou no País após a Primeira Guerra Mundial apenas para fabricar o seu lança-perfume, o Rodo, um dos mais populares.

Em 1969, o repórter José Marqueiz entrevistou um antigo funcionário da fábrica de lança-perfumes da Rhodia em Santo André e contou no Estadão a história de como a substância transformou o “grosseiro” carnaval de entrudo e das laranjinhas perfumadas do Brasil numa festa mais refinada.

“A tal ponto que o Museu Histórico de Ouro Preto, quando soube da proibição de seu uso, escreveu à “Rhodia” — principal indústria produtora de lança-perfume no Brasil — solicitando catálogos, tubos vazios, válvulas e tudo o que dissesse respeito ao lança-perfume, para que, no futuro, pudesse contar, no seu acervo, com alguns elementos referentes ao mais popular e característico produto do nosso carnaval.”

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Leia abaixo a íntegra dos textos originais e veja anúncios de lança-perfume publicados ao longo dos anos:

Anúncio do lança-perfume Rodo, da Rhodia, em 1926.  Foto: Estadão

Estadão – 12 de fevereiro de 1969

Lança-perfume, só uma boa lembrança

Jose Marqueiz

Da Sucursal do ABC

O Brasil viverá, este ano, mais um carnaval sem lança-perfume. E é mesmo provável que muitos outros carnavais serão também assim, pois não será revogado tão já o decreto do ex-presidente Castelo Branco que proibiu a fabricação, a importação, e o uso do lança-perfume no País.

Para muitos, porém, o carnaval brasileiro perdeu bastante de seu colorido com a proibição do lança-perfume, “um produto elegante e de bom-tom”, graças ao qual terminaram muitas das brincadeiras grosseiras que marcavam os dias do antigo carnaval.

Para outros, a proibição foi justa, pois a deturpação do uso do produto constituía uma das mais gritantes imoralidades do carnaval brasileiro

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Esse produto, que gerou tanta controvérsia no Brasil, foi criado na França, onde era originariamente usado nas reuniões aristocráticas. No Brasil, ele logo se popularizou ganhou as ruas e os salões, deu emprego para multa gente e foi o principal responsável pela implantação, em Santo André, de uma indústria que aqui veio especificamente para produzi-lo e que, hoje, cinquenta anos após seu nascimento, é uma das maiores organizações industriais do País, cerca de 16.000 trabalhadores.

Em nenhuma nação do mundo, sua utilização foi tão acentuada. Embora nascendo na França, a lança-perfume acabaria por se transformar num produto tipicamente brasileiro, que se incorporou às tradições do nosso carnaval.

A tal ponto que o Museu Histórico de Ouro Preto, quando soube da proibição de seu uso, escreveu à “Rhodia” — principal indústria produtora de lança-perfume no Brasil — solicitando catálogos, tubos vazios, válvulas e tudo o que dissesse respeito ao lança-perfume, para que, no futuro, pudesse contar, no seu acervo, com alguns elementos referentes ao mais popular e característico produto do nosso carnaval.

Quando o lança-perfume podia ser usado no carnaval brasileiro, muita gente vivia em função de sua produção e comercialização. A cada ano, eram três milhões de tubos vendidos e o mercado sempre reagia satisfatoriamente. Sua proibição significou o desemprego de muitos trabalhadores, principalmente nas fábricas que forneciam matérias primas e componentes.

Todavia, com o passar dos anos, a proibição do uso do lança-perfume iria gerar, paradoxalmente, novos empregos . As máquinas que antes o produziam foram mobilizadas para outro fim. Em lugar do lança-perfume, passaram a produzir aerosois.

As mesmas máquinas, o mesmo princípio, mas um fim totalmente novo e um mercado ainda maior. Quem se lembra do lança-perfume, pode agora comparar os tubos dos novos aerosois inseticidas, desodorantes de ambiente e até produtos de toucador aos antigos tubos metálicos daquele tradicional produto. Em apresentação são praticamente iguais. Em conteúdo, completamente diferentes.

A queda do nível de emprego foi, portanto, compensada pela pesquisa e descoberta de produtos que pudessem ser fabricados com as velhas máquinas do lança-perfume.

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Todavia, isso não basta para um homem que tem sua vida emocionalmente ligada à produção do lança-perfume e que, praticamente o, viu o produto nascer, desenvolver-se e morrer no Brasil.

Ele conhece a historia desse produto, pode realmente ser considerado um perito na sua produção e comercialização e ainda espera ver nascer um outro produto que substitua o lança-perfume, preenchendo a grande lacuna que ficou e também atendendo às exigências das autoridades brasileiras.

“Um produto que não permita a deturpação de seu uso, mas que restitua ao nosso carnaval boa parcela daquele colorido e daquela alegria que o caracterizavam”.

Seu nome é João de Carvalho. Metódico ao falar, cordial e “bastante saudoso dos carnavais do passado”, ele ainda trabalha na “Rhodia”, onde é alto funcionário.

Como a maior parte de seus velhos colegas do setor de lança-perfume, foi remanejado para outras áreas. Hoje, chefia o Departamento de Especialidades Farmacêuticas e, com saudades, vê que os velhos pavilhões da antiga fábrica de lança-perfume foram totalmente transformados, para produzir a maior parte dos 15 milhões de aerosois que o Brasil consome.

Mas, ao mesmo tempo, mostra-se compreensivo e feliz: “Isso significou um grande progresso, ao permitir a revolução de nossos hábitos, e ao dar emprego a um número de trabalhadores muito maior do que dava o nosso lança-perfume”.

Ele era ainda um menino quando havia no Brasil o carnaval entrudo. “Era uma brincadeira grotesca, quase selvagem. Jogavam e farinha e água em cima da gente e, sinceramente, apesar de sua originalidade, aquele tipo de carnaval lembrava tribos indígenas comemorando uma vitoria”.

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Realmente, em fins do século passado, o carnaval brasileiro tinha essa marcante característica. Observadores e cronistas chamavam-no de “grosseiro”. E os foliões deixavam transparecer o desejo de organizar uma festa mais requintada e menos brutal.

A partir de 1900, o carnaval brasileiro passaria a ter uma característica marcante: o lança-perfume — que viajantes brasileiros haviam trazido da França — viria substituir es laranjinhas de cheiro”, a farinha e a água. O novo produto, “além de refrescante e aromatizante, iria possibilitar a mais fácil comunicação entre os foliões e daria mais requinte ao carnaval brasileiro.

Nasceu na França, mas só cresceu mesmo foi no Brasil

A história do lança-perfume segundo João de Carvalho, deve ser separada geograficamente. Ele se desenvolveu no Brasil e atingiu seu apogeu e maior grau de utilização nos três dias de nosso carnaval. Contudo, foi in ventado na França. Em 1890, pesquisadores franceses descobriram o cloreto de etila e passaram a usá-lo como anestésico local para pequenas cirurgias.

A partir dessa descoberta, novas pesquisas seriam desenvolvidas com vistas a obtenção de novos medicamentos. Nesse terreno, os resultados nem sempre foram positivos, até que o contador francês Chatenoud, em 1895, associou um tipo de perfume ao cloreto de etila. Conseguindo obter “um novo e interessante produto’'. A descoberta teve ampla repercussão e as damas francesas passaram a utiloizá-lo largamente.

Anos após da descoberta de Chatenoud, viajantes brasileiros conheceram o novo produto. Lembraram-se do carnaval entrudo e da necessidade de acabar com sua grosseria, dando-lhe mais requinte.

Pequena parcela foi então importada para o Brasil, numa época em que os próprios foliões já começavam a substituir a farinha e os baldes de água pelas “laranjinhas de cheiro’', confeccionadas com parafina e contendo água perfumada.

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O carnaval começava a ter mais elegância. João de Carvalho lembra que essas laranjinhas eram atiradas contra os foliões e estouravam, perfumando o corpo da pessoa. Nessa mesma época, surgiram também outros objetos contendo líquidos perfumados, já com as característias das futuras bombas de lançar aerosois.

Consumo impressionou

Mesmo antes da Primeira Grande Guerra, o lança-perfume já registrava um nível de fabricação cada vez mais elevado. Seu alto consumo impressionava os próprios empresários europeus. Em menos de 15 anos, a importação havia sido de 3 milhões de tubos por ano. Mesmo durante a guerra, seu consumo continuou, embora em menor escala, principalmente devido aos entraves criados à importação pelo governo brasileiro.

Terminada a Primeira Grande Guerra, empresários franceses, entusiasmados com o alto consumo do produto no Brasil, resolveram instalar aqui uma fábrica para produzi-lo. A idéia surgiu em 1918 e, um ano após, a “Rhodia” já se instalava no município de Santo André.

A principal finalidade da nova indústria era fabricar o lanca-perfume, além de outros produtos, como o ácido sulfurico, o ácido clorídrico, o cloreto de etila e sulfato de sódio.

Mas, em seus primeiros anos de atividade a importação do lança-perfume continuava. Quatro anos após, a importação cessou definitivamente e a partir de então o lança-perfume atingiu seu apogeu no Brasil, voltando a diminuir seu consumo e produção apenas durante a Segunda Grande Guerra.

À época da introdução do lança-perfume no Brasil, o carnaval ganhou mais vida e maior entusiasmo, passando, inclusive, a constituir efetiva atração turística.

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Anualmente, eram produzidos cerca de 3 milhões de tubos e, para os turistas, o lança-perfume representava um atrativo adicional. Muitos foram os artistas de renome que solicitavam pessoalmente o produto, quando vinham passar o carnaval aqui.

A vez dos aerosois

Porém, como o lança-perfume estava sendo usado para outros fins, sua importação, fabricação, comércio e uso foram proibidos por decreto presidencial. Antes disso, todavia, as fábricas já haviam começado a estudar um meio de utilizar, durante todo o ano, as máquinas empregadas em seu fabrico, pois elas ficavam em atividade apenas durante cerca de 6 meses. Após muitas pesquisas, começou então a produção de aerosois.

Com a proibição do uso do lança-perfume, esses novos produtos se desenvolveram e, hoje, o Brasil consome cerca de 15 milhões de tubos de aerosol, com amplas perspectivas de expansão, pois a embalagem aerosol pode ser empregada em produtos inseticidas, fixadores de cabelo, desodorantes, tintas e inclusive para ornamentação de árvores de Natal, lustramóveis, sabão de barba e medicamentos.

Uma de suas utilizações mais engenhosas é para a vacinação em massa de aves. Os americanos vão mais além, usando os aerosois até para acondicionamento de produtos alimentícios.

Notícia da proibição do lança-perfume no Estadão de 14 de fevereiro de 1965. Foto: Acervo Estadão

Um discurso, é o começo do fim

O lança perfume alcançou o ponto máximo de sua utilização no carnaval brasileiro em 1957. Em abril desse ano, porém, o então deputado Carlos de Alburquerque apresentou ao Congresso Nacional projeto de lei probindo sua importação, comércio e e uso.

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Justificava que o produto era motivo “ao mesmo tempo, de perplexidade, tristeza e indignação pelas proporções de libertinagem e pela frequência de atos de completo amoralismo que êle fôssem praticados nas ruas das cidades e especialmente nos recintos fechados”.

Assinalava que “o carnaval brasileiro perdeu sua alegria de outrora, principalmente por causa do uso de bebidas alcoolicas e a absorção de éter dos chamados lança-perfumes”. Mais além, acentuava que o produto era a causa de “brigas e conflitos de grandes proporções, além de desastres, com perdas de vidas humanas”.

Referindo-se aos fabricantes do produto, Carlos de Albuquerque realçava que, acima do interesse das indústrias privadas, “estão os da sociedade brasileira, especialmente os da nossa mocidade”, finalizando: “Flagelo social, o lança-perfume deve ser combatido com todo o vigor e decisão”

Em 1961, a proibição

Quatro ano após esse pronunciamento, o ex-presidente Janio Quadros baixava decreto, probindo a fabricação, o comércio e o uso do lança-perfume, sob a alegaçao de que o “cloreto de etila, usado na sua fabricação, é substancia nociva á saude” e considerando que se vinha generalizando de maneira alarmante a prática de aspiração do produto como meio de embriaguês.

Apesar do decreto presidencial, o lança-perfume continuou a ser usado nos bailes carnavalescos. Os Jornais da época noticiavam as atividades de um Grupo de Trabalho, constituído pelo ministro da Indústria e Comércio, que estava estudando a volta da fabricação e uso do produto, enquanto “elementos da alta administração do Estado de São Paulo tomavam posição aberta contra o decreto”

Como o decreto não previa tempo suficiente para sua vigência, “criando sérias dificuldades econômicas e financeiras a várias indústrias”, o Conselho de Ministros resolveu aceitar o seu uso e fabricação até 1962.

Posteriormente, o governo federal, por intermédio do Ministério do Trabalho, prorrogou novamente a permissão para a fabricação, o comércio e o uso do lança-perfume para mais 2 anos.

‘Terminada a prorrogação, um jornal de São Paulo daria uma pequena manchete: “Pela primeira vez em muitos anos, o lança-perfume não estará presente ao Carnaval Paulista”.

É que nesse ano, expirava o prazo, o caso passaria à alçada do Ministério da Saúde, cujo titular, fundamentado nas conclusões da Comissão da Biofarmácia, da Sociedade Brasileira de Anestesiologla, do instituto Médico Legal e do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia, optou definitivamente pela proibição do produto.

Um ano após, o lança-perfume foi então substituído pelos chamados “jato-perfume”, tubos de matéria plástica contendo perfume e álcool.

Como o decreto apenas proibia o uso do lança-perfume, os policiais nada podiam fazer contra os novos produtos.

Foi então que o ex-presidente Castelo Branco baixou o decreto 55.796, proibindo em todo o território nacional, “a fabricação, o comércio e o uso do lança-perfume, bem como o emprego de aerosois em preparados destinados a constituir instrumentos de folguedos carnavalescos, ou não”.

Propagandas de lança-perfume

O Estado de S.Paulo, 08/01/1922 Foto: Acervo/ Estadão


Capa de O Estado de S.Paulo de15/02/1931 Foto: Acervo/ Estadão


Capa de O Estado de S.Paulo,22/02/1925 Foto: Acervo/ Estadão



 Foto: Estadão


1 de fevereiro de 1925 Foto: Estadão


10 de fevereiro de 1924 Foto: Estadão


6 de janeiro de 1929 Foto: Estadão


Edição de 1 de janeiro de 1921 Foto: Estadão


Capa de O Estado de S.Paulo de 15/2/1931 Foto: Acervo/ Estadão

Estadão - 19 de agosto de 1965

LANÇA-PERFUME

Por Luis Martins

Quem aqui me vê, tão quietarão, pacato cidadão e ordeiro pai de família, adepto do pijama caseiro e amante das chinelas domésticas, monogamo praticante, pela graça de Deus e as leis dos homens, não pode imaginar o desvairado, delirante, assanhadíssimo folião carnavalesco que fui no tempo que hoje se me afigura ilusoriamente revestido dos sortilegios de idade edenica, aí pelos últimos anos 20 e toda a década de 30, não me recordo mais se antes ou depois de Cristo. No começo do mundo, isto é, na adolescencia e mocidade.

Lembram-se dos versos de Manuel Bandeira?

“Uns tomam eter, outros

cocaína.

Eu já tomei tristeza. Hoje

tomo alegrias”.

Eu era dos que tomavam eter. O meu carnaval, hoje “todo subjetivo” e vivendo apenas de sensações retrospectivas, está impregnado do cheiro mórbido, excitante e capitoso dos lança-perfumes. Era o aroma, a poesia, a magia do Carnaval. Sem ele, a festa seria uma festa qualquer, a orgia uma orgia comum. Côr, música, barulho, cantorias, zé-pereira, fantasias, confeti, serpentinas, bebedeira, confusão, não resolviam.

Era preciso, para ser Carnaval, que a atmosfera toda recendesse a éter perfumado, que os frios e finos esguichos, espirrando dos tubos, se cruzassem, como lança-chamas numa batalha campal, picando a epiderme, excitando os sentidos, provocando a confraternização dos sexos e a doce perspectiva de aventuras... Evoé, Momo!

Há muito, tudo isso passou. O entusiasmo carnavalesco foi, comigo, um fogo de artifício deslumbrante, mas de curta duração. Aos 30 anos, o folião estava aposentado. No estirão de tempo subsequente, o Carnaval, parece, mudou muito. E há alguns anos, eu li nos jornais que o uso o até a fabricação dos lança-perfumes foram proibidos. O pessoal estava abusando.

Agora, no “Estado” de ontem, cai-me diante dos olhos uma notída: em Brasília, um deputado, o sr. Áureo Melo, apresentou na Câmara um projeto de lei que autoriza novamente a fabricação do lança-perfume em todo o País; e, justificando a iniciativa, alega o deputado que “o lança-perfume é um divertimento inocente, elegante e de bom-tom”.

Se é tão inocente assim como ele diz, não sei. Mas, se eu fôsse deputado, creio que haveria de votar a favor do seu projeto de lei. Por sentimentalismo ou, se quiserem, não faz mal que digam: por puro saudosismo. Para ter a sensação de que o Carnaval — o “meu” Carnaval — ainda não morreu...

Carnaval em rotogravura

Capa da Revista em Rotogravura de 1940 Foto: Acervo/ Estadão

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