"Realidade rouba os sonhos de Lygia Fagundes Telles", anunciava o Caderno 2 do Estadão em 6 de junho de 1988. A entrevista daquela que é um dos grandes nomes da literatura brasileira feita por José Castello foi realizada num momento em que toda a obra da escritora era relançada em novas edições e começava a ser traduzida para na França. Apesar das homegagens, Lygia Fagundes Telles [1923-2022] estava desiludida com a atualidade e defendia apaixonadamente o recolhimento. "Tenho sentido muita admiração pelo Rubem Fonseca, que permanece quieto, distante do mundo. Hoje eu o entendo."
Leia abaixo a íntegra da entrevista a José Castello.
A escritora Lygia Fagundes Telles não leva em conta os seus primeiros escritos, não os considera como sendo seus. Para ela, tudo só começou em 1954, com Ciranda de Pedra. O sucesso também a incomoda, porque significa invasão, assim como a vulgarização que atinge a literatura com os livros esotéricos, os de auto-ajuda e os best sellers produzidos a toque de caixa. Sufocada pela tecnologia e pela competição, Lygia quer agora fugir do nosso tempo, que ela define como de boçalidade. “Quero ficar quieta, assistir a filmes de capa-e-espada, ter um cachorro e ouvir música”.
Estado – Como você avalia a presença brasileira no Salão de Paris?
Lygia Fagundes Telles – Fomos recebidos com muita surpresa. O francês espera sempre que os brasileiros façam uma literatura folclórica, de exotismos. Eles esperam a mulata, o misticismo, a selva, a antropofagia. Mas agora começaram a entender que fazemos uma literatura que vai muito além disso.
Estado – É realmente importante ser traduzido no exterior?
Lygia – Você tem de fazer sucesso lá fora, sim, para fazer sucesso aqui dentro. Essa mentalidade ainda predomina. O Salão de Paris repercutiu muito na imprensa francesa, mas a nossa imprensa o tratou com certa ironia, até com sarcasmos. Temos uma auto-estima ainda muito baixa.
Estado – Você acredita na existência de uma escrita feminina?
Lygia – Em literatura, não se deve fazer distinção de sexo, só de qualidade. Mas não posso deixar de reconhecer que temos poucas escritoras importantes. E por quê? A resposta é primária, é inocente. É porque as mulheres começaram a escrever mais tarde do que os homens. Rimbaud já dizia: “Agora que vou deixar de escrever, só as mulheres podem escrever tão bem quanto eu.”
Estado – A mulher ainda é prisioneira dos chamados temas femininos.
Lygia Fagundes Telles – Naturalmente, Gilka Machado foi a primeira brasileira que ousou falar de sexo em seus livros. Começou a escrever em 1930, foi uma espécie de precursora de Hilda Hilst. E foi muito combatida por isso. Eu, que sou de uma geração posterior, também enfrentei muitos obstáculos. No tempo de Gilka, a mulher era prostituta, ou santa. Quando chegou a Gilka, que não era nem prostituta nem santa, os homens ficaram assustados.
Estado – Os Cadernos de Literatura rememoram seus primeiros livros, que você prefere esquecer. Como você se sentiu?
Lygia – Muito incomodada. Não gosto desses primeiros livros, não os considero meus. São livros de uma ginasiana, de uma tonta. Sou uma mulher que não gosta de mostrar seus rastros. Ao menos enquanto eu viver, eu gostaria de conservar certo controle sobre a minha obra. Para mim, ela começa em 1954, com Ciranda de Pedra. O que veio antes ainda não era meu. Mas parece que esse controle é impossível.
Estado – Mas a função de críticos e historiadores não é resolver o passado?
Lygia – Sim, mas eu sempre fui uma mulher bem-comportada, nada tenho a esconder. Não matei ninguém e depois escondi no armário, não participei de negócios ilícitos. Só me comportei mal em um lugar: na literatura. Aí sim, fui muito malcomportada.
Estado – Você se sente assim até hoje?
Lygia – Estou entrando em uma fase de recolhimento. Quero ficar quieta e isso é difícil, porque moro em São Paulo, uma cidade muito devassada. Basta pisar na rua e alguém aparece para solicitar-me. Não quero ser pedante ou mal-agradecida. Mas essas atenções me desgastam. Existem os ativos e existem os contemplativos e eu sou contemplativa. É da idade? Talvez. Quero assistir a filmes de capa-e-espada, quero ter um cachorro e ouvir música. Agora, quero coisas simples.
Estado – Você está fugindo de quê?
Lygia – Sempre viajei muito. Mas não viajo para fugir do espaço, desse ou daquele lugar, e sim para fugir de nosso tempo. A tecnologia, a competição, a vulgarização das coisas sufocam-me. Santo Agostinho tem uma frase que me faz refletir muito. “Foge, late, tace”, ele escreveu. Quer dizer: “Foge, esconde-te, cala-te!” Há nessa frase grande sabedoria. Eu também quero fugir deste nosso tempo de boçalidade. Sempre tivemos o grão da violência em nós, mas agora ele se está tornando monstruoso. Abro o jornal e está escrito: “MST organiza saques no Nordeste.” Eu sou contra os saques. Mas quando você está com fome, quando você tem dez filhos em casa gritando que querem comida, você vai e saqueia. O que te resta? A violência está em quem saqueia? Eu diria assim: a fome, sim, é um estado de violência.
Estado – A literatura não tem mais função social?
Lygia – Os escritores estão ficando desesperados porque percebem que a palavra está perdendo poder. Eu mesma me pergunto, sinceramente, se com a palavra ainda posso ajudar o próximo. De um quase cego, Aldous Huxley, ouvi certa vez: “O dia em que o Brasil tiver mais escolas, terá menos hospitais.” Mas, agora, refazendo a frase de Huxley, sou obrigada a dizer: “Temos de ter mais escolas e também mais hospitais.” Osvaldo Cruz, se pudesse ressuscitar, cobriria a cara de vergonha. Hoje, a educação das crianças está nas mãos da Xuxa e da Carla Perez, então o que podemos esperar?
Estado – Como você se sente contemplada por tantas homenagens?
Lygia – Eu sou grata pelo sucesso, mas ele é muito invasivo. Honra-me muito ser membro da Academia Brasileira de Letras, mas há momentos em que essa honraria me pesa. Existem as visitas que sou obrigada a receber em casa, os candidatos a novas vagas, e alguns deles são bastante insistentes. Outro dia, um deles quis visitar-me. “Não precisa vir, eu já conheço sua obra”, eu respondi. Mas ele insistiu e veio. Isso tudo é muito incômodo. Será que você entende a minha cólera? A cada eleição, surge uma onda de cobranças. E eu odeio cobrador. Tenho sentido muita admiração pelo Rubem Fonseca, que permanece quieto, distante do mundo. Hoje eu o entendo.
Estado – Você faz inimigos por causa dessa aversão ao mundo?
Lygia – Mas o que posso fazer? Nem sempre uso óculos, mas deveria usar. Então, cruzo com uma pessoa na calçada e eu não a reconheço. Não a reconheço porque não a vi, só por isso. Mas logo vêm as perguntas: “Por que ela não me reconheceu?” “Será que se está sentindo assim tão importante?” E logo sou sufocada por essas interpretações.
Estado – Não será um efeito da onda de vulgarização que cerca a arte?
Lygia – Sim, hoje somos vistos como objetos de consumo ligeiro. Convidam-me para ir a uma boate, à meia-noite, só porque vão lançar uma marca de caneta e acham que eu devo estar presente. E ainda acham que estou feliz só porque vão dar-me em troca um prato de comida e um copo de vinho. O artista tornou-se um objeto que se carrega de cá para lá. É odioso.
Estado – E esses acabam tomados pelo que não são.
Lygia – É verdade. Agora mesmo está havendo uma retomada de 1968. Eu sempre fui uma escritora engajada, mas, na hora de falar dos escritores engajados, sempre esquecem de mim. Esquecem-se que, em As Meninas, que foi publicado nos anos 70 pela José Olympio, uma das personagens principais é uma subversiva. E naquele livro existe a descrição meticulosa de uma sessão de tortura. Tentam fazer de mim uma escritora que não sou.
Estado – Não seria um efeito da onda moralista que se espalha pelo País?
Lygia – Outro dia, numa entrevista, perguntaram-me o que eu penso a respeito do amor homossexual. A vida é tão breve, a felicidade tão rara, meu Deus, deixem as pessoas fazer o que quiserem com seus corpos! Só não gosto e não aceito a vulgarização. O sexo é grave, nobre, belo, então a vulgarização me dói. Mas, afora o vulgar, a liberdade no amor deve ser absoluta. Com tanta violência, por que vamos perseguir justamente o amor? Já basta a miséria que nos tira quase tudo.
Estado – As mulheres a acompanham nesse anseio de liberdade?
Ligya – Angela Rangel, nossa primeira poetisa, que era cega, escreveu seus versos só para exaltar e engrandecer os nobres. Se ela escrevesse hoje, faria versos para exaltar o ACM, o Collor, o Fernando Henrique. Faria só poemas bajulatórios. E sabe por que ela exaltava os poderosos? Porque ela tinha medo. No seu tempo, a mulher tinha de vir apadrinhada pelo senador, pelo marechal, ou não conseguia um mísero lugar ao sol. Angela Rangel não olhava sequer para o próprio umbigo, já que era cega. Mas olhava para o umbigo dos poderosos. Será que isso mudou?
Estado – E mudou?
Lygia – A Madonna, a Carla Perez, a Xuxa, há uma tendência a colocar-se tudo na mesma frigideira e, ao lado dela, também as escritoras. Não digo isso porque me sinto numa torre de marfim. O Brasil é um país em que falta educação. Mas agora se anuncia que Carla Perez será educadora em um programa de TV! Não tenho nada contra essa moça, mas isso me revolta. Estão misturando os canais, nivelando tudo.
Estado – Que efeitos essa vulgarização provoca na literatura?
Lygia – Aí estão os livros esotéricos, os manuais de auto-ajuda, os best sellers escritos a toque de caixa. Por que essa onda de novas religiões? É o desespero humano, é a miséria. As pessoas se estão sentindo cada vez mais desprotegidas. Os governos não as protegem mais. É o desespero do homem que foi expulso de seu sonho, é Adão errando entre serpentes, pedras e espinhos.
Estado – A literatura pode ajudar a mudar o mundo?
Lygia – Espero que a minha palavra possa ajudar um pouco. Mas isso é muito diferente de ver a literatura como um manual de felicidade e sucesso. Às vezes me perguntam sobre o papel do escritor na cultura. Mas que cultura? Só me resta rir, porque a cultura hoje é um luxo.
Estado – Você parece bastante pessimista. Isso não dói?
Lygia – Em Paris, no Jardim das Plantas, há um relógio. Em seu mostrador, está escrito: “Horas non numero nisi serenas.” Quer dizer: “Conto somente as horas felizes.” Esse relógio, com esse dístico tão lindo, só guarda as horas boas. As outras, ele esquece. Eu sou como esse relógio. Eu fico apenas com as horas doces, mas não adianta porque o registro das horas é implacável. Norberto Bobbio diz que é preciso ser pessimista para conseguir-se alguma coisa. Respeito o Bobbio, mas, apesar de tudo, ainda sou otimista.
Estado – E o que você tem feito das horas más?
Lygia – Há uma frase de André Malraux da qual eu gosto muito: “A verdade sobre o homem é, antes de tudo, aquilo que ele mantém escondido”, ele diz. Essa verdade que você está buscando em mim agora está escondida. É o meu segredo e na posse desse segredo reside, talvez, a minha força. Mas essa verdade escondida, eu tento passá-la pela escrita. Na hora em que escrevo, eu a revelo.
Estado – Muitos escritores ainda acreditam que a qualidade de uma literatura se mede por seu poder em romper com o passado e produzir o novo. O que você pensa dessa tese?
Lygia – Você vai ler esses escritores que se dizem originais e a maioria deles está “renovando” com o texto de Machado de Assis. Gosto muito de Roland Barthes que, uma vez, disse: “Nesse instante eu marcho na retaguarda da vanguarda.” Estou com ele. Gosto de pensar também no Eclesiastes, que diz: “Tudo depende do tempo e do acaso.” As melhores coisas da vida guardam sempre um grão de loucura e de mistério. Não, não me interessa ser original.
Estado – E por que esse desejo de novidade persistente?
Lygia – É um efeito da moda. Veja essas pobres modelos. Elas põem olheiras em seus rostos, passam fome, parecem drogadas. E tudo isso para ser original a qualquer custo. Para os estilistas da moda, o belo é anacrônico. Pois eles estão fazendo uma revolução oca e idiota. Na literatura, essa obsessão pelo novo também produz alguns monstros. Mas hoje é Machado, um escritor do século 19, que começa a deslumbrar os europeus.
Estado – Como você encara o futuro?
Lygia – Agora quero citar Shakespeare, que tem uma frase terrível, mas da qual não consigo fugir. Ele diz: “Esse céu tão borrascoso não se desanuviará sem uma tormenta.” Esse é o meu medo. Estamos sob um céu tão negro, sob nuvens tão sombrias que talvez a tormenta seja inevitável. E, se ela vier, Deus nos ajude.
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