Racha na Faria Lima em 1973. Saiba como eram as corridas clandestinas na avenida e veja fotos

Jovens com carros e motos se reuniam em frente à lanchonete para disputas. Vizinhos reclamavam, sem sucesso, com a polícia

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Por Acervo Estadão
Racha na Avenida Brigadeiro Faria Lima atraía centenas de pessoas e tirava o sossego dos moradores nos finais de semana Foto: Kenji Honda/Estadão

Em 27 de agosto de 1973, o Jornal da Tarde publicou uma reportagem sobre os rachas - corridas clandestinas de carros e motos - na Avenida Brigadeiro Faria Lima - em São Paulo. O repórter Ricardo Vespucci e o fotógrafo Kenji Honda contaram e mostraram em uma página inteira como era a rotina no trecho perto do Shopping Iguatemi e da lanchonete Rick Store nas noites de sextas e sábados. Cinquenta anos depois, Carlos Eduardo Entini, do Acervo Estadão, pesquisou e publicou as imagens inéditas da reportagem vistas na galeria abaixo. Veja as fotos e leia o texto original da época.

Jornal da Tarde - 27 de agosto de 1973

Reportagem do Jornal da Tarde de 27 de agosto de 1973 Foto: Acervo/Estadão

GALERIA DE FOTOS

Sinal verde. Vai começar a grande noite de fórmula livre na Avenida

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Os carros largam, e em dez segundos estão a 130 quilômetros por hora. Os carros brecam, e os espectadores aplaudem. Os motoqueiros passam sobre uma roda só, e os espectadores aplaudem. É a avenida Faria Lima em qualquer madrugada de sábado.

Reportagem de Ricardo Vespucci, fotos de Kenji Honda

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1 O sinal de partida é a luz verde de um semáforo, e a pista é uma avenida da cidade, onde a velocidade máxima permitida é de 60 quilômetros por hora. Não há muros de proteção, e os espectadores ficam ao longo das calçadas e das Ilhas. Os carros de corrida são qualquer carro, e correm entre os automóveis comuns, os ônibus e os táxis que usam a avenida simplesmente para ir de um lugar a outro. São as corridas fórmula livre, disputadas todas as sextas e sábados, das dez da noite às 2h30 da manhã na avenida Faria Lima.

Os carros, carros nacionais de todas as martas, inclusive jipes e utilitários com motores preparados e escapamentos abertos, chegam em poucos segundos a atingir 130, 140 quilômetros por hora em um percurso de quatro ou cinco quarteirões. Vão por uma pista e voltam por outra, fazendo cantar os pneus nas saídas, nas curvas e nas freadas.

As corridas de fórmula livre começam no farol da entrada de Shopping Center lguatemi e terminam em frente ao Rick Store, uma lanchonete do outro lado da avenida Faria Lima. São várias corridas; esse vaivém de carros envenenados não pára um instante, durante suas cinco horas de duração.

Os motores parecem estar dentro da sala do apartamento do prédio em frente ao Shopping Center lguatemi. A dona da casa, uma viúva, fala do barulho de todos os fins de semana; ela tem que falar alto para ser ouvida.

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Um Dodge Dart, um Corcel e um Volks tomam posição, alinhados diante do farol vermelho. Os pilotos trocam olhares e gestos desafiadores. Sinal verde: largam. O ronco dos motores era alto quando estavam parados, acelerando, mas agora é muito maior. Em dez segundos estão fazendo 130 quilômetros por hora. Quatro quarteirões adiante, brecam, num barulho forte e longo. Fazem o balão num intervalo da ilha e voltam, para brecar barulhentamente pouco depois do Rick Store. Mais um balão, e voltam ao ponto de partida, para nova corrida ou novo “racha”, segundo a terminologia dos frequentadores.

A plateia — umas quinhentas pessoas — assiste às corridas com grande entusiasmo, aplaudindo, xingando, vaiando. Um desses espectadores, sentado em cima da capota do seu carro para ver melhor, não perde nenhuma dessas corridas:

— Em matéria de diversão, não dá outra coisa. Não tem nada pra fazer. então a gente vem aqui.

Um amigo, ao lado do carro:

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— Eles sã o muito loucos. O cara tem que tá muito louco pra fazer isso. Cara normal não faz essas coisas.

Tudo cuca-fresca. Filhinhos-de-papai. Eles só racham quando tem gente assistindo. Quem é que não gosta de aparecer? Correr no autódromo não dá: não tem essa torcida e eles cobram 20 ou 30 paus.

À meia-noite e meia, a viúva como muitos moradores do lugar já não aguenta mais. Como tem acontecido todas as últimas sextas e sábados, ela pega o telefone, sem muitas esperanças. Disca o número do 14° Distrito Policial. Ninguém atende. Tenta mais cinco vezes. Ninguém atende. x

Liga para a Rádio Patrulha. Atendem: “Vamos mandar uma viatura, ouviu?” Liga para a Rone “Vamos fazer uma viatura passar por aí”. Liga para a Rota: “Pode ficar tranquila que em alguns minutos chega a viatura”.

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Uma e meia. Outra vez o telefone. O 14° continua não atendendo. Rone e Rota repetem as promessas A Rádio Patrulha agora responde: “Desculpe, minha senhora, mas nossas viaturas estão atendendo outras ocorrências”.

Já que a polícia não vem — e quando vem, solta bombas de efeito moral e vai embora, e os corredores voltam - alguns moradores daqueles quarteirões da Cidade Jardim descobriram uma fórmula: às sextas e aos sábados deitar antes das dez, para que o ronco dos motores apanhem em sono pesado. Mas são poucos que conseguem dormir tão cedo.

O estacionamento em frente ao Rick Store, no posto Shell à direita, e nas ruas transversais Grécia e Iramia, transformam-se em boxes dos corredores.

Dentro do Rick Store, alguns comem crepes e tomam sucos. Há uma grande aglomeração dentro do banheiro dos homens, cheio de fumaça e do cheiro do perfume da moda, usado por muitos dos rapazes.

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2 Dizer a turma do Rick Store é errado. São duas turmas definidas, distas e separadas, por razões que alemãozinho (zinho porque tem uma moto pequena, uma Honda 50) e Chaleira (ele tem uma Honda 350 que parece uma chaleira) sabem explicar. Alemãozinho, blusão de couro e óculos de motociclista, vai explicar:

— Até maio, a turma de moto se reunia aqui. Aqui no Rick Store só vinha motoqueiro, cara que gosta de moto. Era uma turminha lega. A gente, como faz até hoje, se reunia para fazer programa: sair com meninas pegar urna festinha, fazer uma excursão.

Chaleira completa:

— A gente saia em 100, 150 motos. Não havia diferença: quem tinha moto pequena, como o Alemãozinho não se sentia diminuído. A gente não saía para rachar. E, de fato, não dava nem pra correr.

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Alemãozinho, que estuda e trabalha:

— Dá saudades daqueles tempos. Porque agora, aqui, pra nós, praticamente já acabou. A gente já tá até pensando numa outra lanchonete para fazer nosso ponto, um ponto de motoqueiros. Aqui, agora, é essa palhaçada. Os carros rachando.

Na pista, a sexta batida da noite: um Opala preto tentou passar no espaço insuficiente entre dois carros e acabou batendo duas vezes, com os lados da carroçaria.

Normalmente, quando os carros batem, eles não param, como revela um espectador:

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— Eles dão a volta completa e param no Rick, para acertar as contas.

Alemãozinho:

— Os caras dos carros não têm amizade entre si. Vêm aqui só para isso: param no farol, o farol abre, e pau. Entre os motoqueiros é diferente. A coisa mais comum é dois motociclistas se encontrarem na rua, e mesmo não se conhecendo, dar uma buzinadinha, um farolzinho, dar gasolina, ajudar a pagar a prestação das motos dos outros. Cara de moto não é cafageste, como todo mundo diz. Aqui no nosso grupo, por exemplo, tem médico, engenheiro do Detran, investigador do Deops.

Um ônibus quase vazio passa. Os torcedores vaiam e xingam. Outros aplaudem com palmas demoradas.

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Parte da filosofia de motoqueiro:

— Quando a gente quer dar pau, rachar, a gente vai no Morumbi, que é deserto. Não aqui. Se um carro desses, por exemplo, subir na guia, leva no mínimo 50 pessoas pro beleléu. No Morumbi é diferente: lá a gente tá arriscando uma vida só. a vida da gente.

Alemãozinho resume as diferenças:

— Entre eles e nós.. bom, dá pra ver pela aparência.

E se defende:

— Quando a polícia vem, joga bomba em cima da gente, dos motoqueiros. Mas moto não tem escapamento aberto nem canta pneu.

Uma e meia da manhã. Aproxima-se do Rick uma viatura Piloto da Rone. Passa devagar. Uma manobra no intervalo de ilha bem em frente à lanchonete é o bastante para que os rapazes comecem a se dispersar, correndo pelos canteiros, pela pista, para dentro do posto de gasolina, pelas ruas transversais. A perua da Rone, depois de instantes, some. Alguém comenta, num grupo de espectadores assíduos.

— De vez em quando, uma viatura de policia vem “rachar” aqui também.

Os garçons começam a fechar o Rick. São entre duas e meia e três da madrugada de sábado. O ronco dos motores continua. Os motoqueiros aceleram suas motos e vão dormir, segundo dizem uns aos outros. Os carros continuam correndo freando, dando cavalos de pau, entre os automóveis comuns.

A viúva sabe que agora está quase na hora de poder deitar. Antes, relê a carta que alguns moradores do seu prédio e de outros assinaram. A carta é endereçada ao general Humberto de Souza Mello, comandante do II Exército. Pede providências e explica que a Rone, a Rota, o DSV, a RP e o 14° DP, embora todos os fins de semana sejam requisitados, raramente atenderam e nunca tomaram providências eficazes.

A viúva confia naquela carta. Só tem uma mágoa:

— Alguns moradores não assinaram, pois temem represálias. Dizem que os meninos que correm são filhos de gente influente, deputados, militares.

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

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