O dia 8 de agosto de 1963 entrou para a história dos grandes crimes mundiais. Naquela data, 15 ladrões, entre eles um chamado Ronald Biggs, roubaram o trem postal que fazia a rota entre Glasgow, na Escócia, e Londres, na Inglaterra. O assalto ao trem pagador, como ficaria conhecido, rendeu ao bando 2,6 milhões de libras esterlinas e foi considerado na época pela imprensa britânica como “roubo do século”.
“Trem-correio assaltado na Inglaterra: roubado um milhão de esterlinas”, noticiou o Estadão no dia seguinte, ainda com poucas informações recebidas das agências de notícias internacionais, quando o total roubado ainda não estava estabelecido.
A partir daquele 8 de agosto, após o assalto, começava também uma espetacular história de fuga que, anos depois, acabaria no Brasil e transformaria um dos ladrões ingleses do trem pagador num dos personagens mais folclóricos do Rio de Janeiro.
Após ser descoberto na Cidade Maravilhosa em 1974, Ronald Biggs foi preso, mas não pode ser extraditado. Sua companheira brasileira, a Raimunda de Castro, esperava um filho de Biggs, o menino que na década seguinte ficaria nacionalmente famoso como Mike, um dos integrantes do grupo musical infantil Balão Mágico.
Até resolver voltar para a Inglaterra em 2001, Ronald Biggs passou anos numa festiva liberdade, comparecendo periodicamente à Polícia Federal para assinar seus papéis obrigatórios, mas também desfrutando da celebridade como um bon-vivant cidadão carioca, zombando da polícia britânica, posando para fotos com anônimos e celebridades e participando da vida cultural do Rio.
O roubo
Após o roubo, que durou cerca de 20 minutos, os ladrões fugiram para uma granja sem deixar rastro. Lá dividiram o dinheiro, e só foram identificados dias depois porque deixaram impressões digitais. A polícia inglesa começou a receber inúmeros telefonemas de detetives amadores interessados no caso, além de pistas falsas sobre o local do esconderijo dos ladrões.
Condenação, fuga e celebridade
Ronald Biggs, embora não estivesse entre os chefes da quadrilha, foi o único a virar celebridade entre os assaltantes. Foi preso um ano depois e condenado a 30 anos de prisão, mas conseguiu fugir da prisão numa ação espetacular.
“Segundo a Scotland Yard, a fuga foi executada com precisão militar. Um enorme caminhão parou junto ao muro do presídio e foi lançada uma escada de cordas e um cabo de aço no patio de ginástica. Imediatamente, Biggs e os outros três companheiros dominaram os guardas que tentaram impedir-lhes a escalada, ao mesmo tempo que, na carroçaria do caminhão, um cúmplice mantinha outro guarda como refém, sob a mira de um revólver.
Depois de ficar quatro meses escondido nos arredores de Londres, o assaltante, com nome falso, conseguiu viajar para a Bélgica e, em seguida, para a França, onde fez uma operação plástica no rosto. Lá, Biggs obteve novo passaporte falso, e viajou para a Austrália, a Argentina e, em 1970, chegou ao Brasil.
No Rio de Janeiro viveu como turista e marceneiro. Conheceu a dançarina brasileira Raimunda de Castro, com quem se casou e teve um filho. Foi descoberto no Brasil pela Scotland Yard em 1974, mas, de acordo com as leis brasileiras por ter um filho brasileiro, tinha permanência no País garantida.
Sex Pistols
O ex-ladrão ficou famoso e passou, então, a se integrar à vida carioca, e até artística. Sem o dinheiro do roubo, que alegou ter gastado em fugas, subornos e na operação plástica, soube ganhar dinheiro dando entrevistas exclusivas à imprensa e um esquema publicitário que transformou seu nome em grife.
Em 1978, dois integrantes da banda punk britânica Sex Pistols em férias no Rio de Janeiro se encontraram com Ronald Biggs e gravaram uma partipação dele para o disco do grupo, então no auge do sucesso. Na música de sua autoria, No one is innocent, em forma de oração, a letra pede que Deus salve ‘todos nós pecadores’.
Sequestrado
Em 1981, um comando sequestrou Ronald Biggs no Rio de Janeiro e o levou para Barbadoso, antiga colônia britânica, com a intenção de que lá fosse deportado para voltar a cumprir a pena pelo qual foi condenado na Inglaterra. Após 37 dias presos em Barbados, Ronald Biggs foi devolvido ao Brasil, onde chegou beijando o chão, como o papa fazia, e clamando para ver o filho.
Biggs também publicou no Brasil e no exterior em 1981 o livro A minha verdade, em que contava como tinha sido o assalto ao trem. No ano seguinte, seu filho Michael era uma das crianças mais famosas do Brasil, como integrante do programa infantil de televisão Balão Mágico.
Dicas contra assaltos na Eco-92
Durante a Eco-92 Biggs participou de um programa da Rádio-Imprensa FM, dando dicas de segurança aos turistas estrangeiros para evitar assaltos no Rio. No mesmo ano, na televisão, atuou como garoto-propaganda de uma empresa de segurança. Aparecia sentado à beira da piscina, com um copo na mão, dizendo: “Se você quer proteger seu patrimônio, escute a opinião de quem entende um pouquinho do assunto”.
Em 1998, Biggs foi citado no "Samba no pé e mãos ao alto, isso é um assalto", enredo da escola de samba Porto da Pedra que deu destaque ao célebre assalto ao trem.
Após vários pedidos - sem efeito - do governo britânico, pedindo a extradição do criminoso, em 2001 Biggs, doente, decidiu por vontade própria se entregar à polícia de seu país. Ele acreditava que teria condições de um melhor tratamento de saúde lá viajou à Inglaterra em um avião fretado pelo tabloide The Sun que teria pago cerca de R$ 1 milhão para ter exclusividade na cobertura de seu retorno.
Em 2009, teve liberdade concedida por compaixão das autoridades britânicas, devido a seu delicado estado de saúde.
Ronald Biggs morreu aos 84 anos, em 2013, no Reino Unido. Na notícia sobre a sua morte, o Estadão ouviu amigos e vizinhos que conviveram com Biggs durante os anos em que ele viveu no Rio. Entre eles, Ronaldo Mendes, chamado de xará pelo inglês:
“Ele foi o gringo mais carioca que conheci. Adorava cerveja e futebol, mas nunca me disse para qual time torcia. Era gente boa com todo mundo e vivia da fama. Cobrava para tirar fotos e receber os turistas em sua casa, onde promovia festas e churrascos. Quando me encontrava no bar do Gomez, me chamava de xará, e eu brincava que não era xará de ladrão.”
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