USP 90 anos. Discurso de Julio de Mesquita Filho em 1945: “O que é uma universidade?”

Diretor do Estadão e um dos idealizadores da USP discursou aos formandos de 1945 sobre a universidade concebida por Armando de Salles Oliveira

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Por Acervo Estadão
Atualização:
Páginas do Estadão de 28 de dezembro de 1945 com discurso de Julio de Mesquita Filho na formatura de alunos da USP. Foto: Acervo Estadão

A colação de grau da turma de 1945 da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo teve um significado especial para os presentes na cerimônia no Teatro Municipal de São Paulo em 27 de dezembro daquele ano.

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Além do clima festivo dos formandos, familiares e mestres, quase uma década depois de discursar na formatura da primeira turma da universidade, em 1937, um dos idealizadores da criação da Universidade de São Paulo, fundada oficialmente em 25 de janeiro de 1934, voltava a falar numa solenidade da instituição que ajudou a criar.

Com o fim da ditadura Vargas e a recente restituição do jornal aos seus antigos proprietários, Julio de Mesquita Filho, desta vez discursava no lugar de Armando de Salles Oliveira, seu cunhado e também diretor do jornal, incentivador dos estudos e do projeto para o surgimento da universidade e responsável pelo decreto da criação da USP quando era interventor [governador indicado] do Estado.

Armando de Salles Oliveira havia morrido alguns meses antes, em 17 maio, e Julio de Mesquita Filho foi convidado para ser o paraninfo da turma em seu lugar.

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No discurso, transcrito na íntegra abaixo, Julio de Mesquita Filho, homenageou Sales relembrando os fundamentos que nortearam a criação da Universidade de São Paulo, a necessidade de uma cidade universitária como campus, a importância da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a integração orgânica das faculdades e institutos e a importância da pesquisa e da experimentação no ensino superior.

Que mais adequada homenagem poderíamos prestar ao grande reformador do ensino no Brasil do que entreter-vos nesta solenidade sobre o conceito que a respeito do problema universitário formava aquele grande espírito? Porque para ele, como para que o ajudaram a erguer esta imponente obra, uma universidade não era nem pode ser uma simples justaposição de faculdades e institutos.”

Leia a íntegra:

Estadão, 28 de dezembro de 1945

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DISCURSO DO DR. JULIO MESQUITA FILHO

[Texto transcrito com a grafia original da época]

“Faz exatamente 9 anos que, em solenidade com esta, eu dirigia a palavra a primeira turma de bacharelandos da Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras desta Universidade. O meu mandato de então era amplo e irrestrito. Falava na qualidade de paraninfo da primeira turma, o me conferia, segundo a praxe, plena liberdade de assunto. Hoje minha missão é outra.

Fui escolhido pelos que nesse momento se despedem da vida universitária, não para saudá-los ou aconselhá-los, mas para substituir nesta tribuna aquele que, por um decreto que certamente figurará na historia do pensamento nacional como a sua maior data, fundava em 1934, não apenas o alto instituto de cultura em cujos cursos acabais de diplomar-vos, mas ainda a primeira universidade brasileira.

Quer dizer, portanto que a vossa indicação encerra uma intenção deliberada, uma ordem imperativa. Se bem a interpretei, ela significa que entre os muitos temas que essa singular personalidade que foi Armando de Salles Oliveira sugere, desejais ouvir neste instante decisivo de vossa vida de estudantes aquilo que sobre a mais bela das suas realizações de estadista vos diria o vosso paraninfo.

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E andastes bem, pois que melhor maneira de significar a vossa gratidão por quem tão assinalados serviços prestou à causa da cultura nacional do que proporcionar ocasião para que se rememorasse o espirito que presidiu a fundação tanto da Faculdade de de Filosofia, como da Universidade do que aquela é o organismo principal!

Que mais adequada homenagem poderiamos prestar ao grande reformador do ensino no Brasil do que entreter-vos nesta solenidade sobre o conceito que a respeito do problema universitário formava aquele grande espírito?

O QUE É UMA UNIVERSIDADE?

Porque para ele, como para que o ajudaram a erguer esta imponente obra, uma universidade não era nem pode ser uma simples justaposição de faculdades e institutos. A idéia que tinham desses magníficos organismos a que a civilização ocidental deve as suas mais belas conquistas e as nações líderes de hoje a sua força, esconde algo mais complexo e mais amplo. Procedia em linha reta das suas próprias origens historicas e etmologicas, das remotas eras em que o saber humano era um todo perfeitamente coerente e harmonico.

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Para eles, como para os que professavam nesses famosos institutos que tanto lustre e renome emprestaram a cidades como Bolonha, Paris, Oxford e Salamanca. Um mesmo espírito deveria animar a toda a comunhão, do mesmo modo como uma mesma doutrina deveria animar a toda a comunhão, do mesmo modo como uma mesma doutrina deveria presidir o ensino das diferentes disciplinas.

Viam nas universidades o meio mais eficiente para combater a desintegração dos conhecimentos humanos que se seguiu ao grande surto das ciências e à proliferação de institutos dedicados ao estudo das disciplinas relativas aos novos setores da natureza desbravados pela inteligencia humana.

Não se conformavam com o triste espetáculo que oferecia o nosso ensino superior, subdividido em escolas profissionais, as mais das vezes inimigas entre si e onde imperavam os mais diversos coloridos e tendências doutrinarias. Dedicar-se às ciencias biológicas equivalia naqueles tempos a desprezar as ciências sociais, como demonstrar pendores pelo estudo das disciplinas clássicas significava alimentar o mais absoluto desprezo pela fisica ou pela química.

Como já tivemos ocasião de escrever, cada uma daquelas especialidades passava a constituir uma especie de totem diferenciador em torno do qual se agrupavam clãs perfeitamente irreconciliáveis entre si. Procurando acentuar a natureza universal das universidades afirmava Armando Salles:

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“Nunca será demais repetir que as universidades, qualquer que seja os lugar do país em que se ergam, devem ser criadas para exercer a sua influência não sobre uma região, mas sobre toda a nação. Essas instituições que não podem subsistir sem um sólido sistema de educação secundária, tem o objetivo de cultivar as ciências, a ajudar o progresso do espírito humano e dar às sociedades elementos para a renovação incessante de seus quadros científicos, técnicos e políticos.

Sem esses focos de pesquisa científica e de alta cultura, sem a rigorosa seleção pelo mérito, em beneficio da ciência, pura e aplicada, da política e da produção e sem urna consciência cada vez mais profunda do interesse geral, não há democracia que resista ao assalto das forças demagógicas e reacionárias.

Imaginava-a o próprio cérebro da nacionalidade, o centro regulador de toda a sua vida psíquica. Mas, acima das paixões humanas, pois acrescentava; “Por toda a parte urna dupla pressão de políticos e de intelectuais procura arrastar as universidades para o tumulto partidário. Dos políticos quando querem submetê-las aos interesses dos extremismos da esquerda ou da direita; e dos intelectuais, quando, professores, em vez de servir a ciência, se ‘servem nas suas catedras da ciência para fins politicos.

Sendo uma função essencial das universidades a de empregar a inteligência em estudos desinteressados, isentos de finalidades práticas, devemos resguardá-las, sem prejuízo da liberdade de cátedra, das controvérsias políticas e sociais, e dos ruídos e agitações mundanas.

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A universidade, segundo a palavra de um eminente professor americano, L. D. Coffman — é Armando de Salles Oliveira quem o cita ainda, - ensina politica mas não advoga, nem pode advogar pelo fascismo nem pelo comunismo; ensina comércio sem dedicar-se aos negócios; estuda os problemas de assistência sem envolver-se na administração dos fundos de socorro; instrui sobre tática militar, mas isso não signifiea que fomente a guerra; informa e pesquisa sobre a paz, mas não funda clubes pacifistas, em resumo, a universidade estuda tudo que diga respeito ao bem da humanidade, sem quebrar lanças em nenhuma cruzada, exceto a cruzada pela liberdade do ensino.

A única liberdade que importa a universidade é a liberdade do ensino e não a de fazer preselitos”

A NATUREZA ORGÂNICA DA UNIVERSIDADE

Por isso mesmo, o que caracteriza uma universidade e constitui sua principal razão de ser é a sua natureza eminentemente orgânica, em urna palavra, é a conjugação das suas partes componentes de tal modo que a vida dos órgãos participe intima e necessariamente da vida do todo. E para que isso se verifique, indispensável se torna que todos que tenham que cursar determinada disciplina, embora visando fins diversos, o façam sob os mesmos mestres, pelos mesmos metodos - e segundo a mesma doutrina científica.

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A ninguém escaparão as vantagens que trará um tal sistema para a formação intelectual da juventude universitária: o convivio diário e prolongado entre alunos de diferentes institutos, submetidos à mes ma disciplina e à mesma iniciação cientifica constituirá elo indestrutivel de incalculáveis consequências para a formação espiritual da mocidade. É justamente nessa formação comum e na consciência de que os conhecimentos humanos são um todo solidário que consiste o beneficio maior do regime universitário.

Felizmente, aquela fase de desagregação antagônica a este espírito universitário já se vai tornando uma reminiscência do passado. Pelo menos nos meios realmente cultos não há mais quem negue a unidade essencial dos conhecimentos humanos. E quando este ou aquele cultor da ciência se resigna a limitar suas atividades a um campo estreito da investigação, sabe perfeitamente que a tanto é obrigado pela natureza limitada das suas faculdades e não porque haja na realidade umas diferenciação substancial entre os vários setores em que a inteligencia dos homem exerce a sua função especulativa. Ora, é essa consciência da unidade fundamental dos conhecimentos humanos que constitui a própria essência da formação universitária.

Sem que se tenha sempre em mente essa condição básica, primordial, poderá existir, como se disse há pouco, um excelente ensino. Não haverá entretanto jamais ensino universitário propriamente dito. Aqueles que a ele se submeterem poderão vir a ser razoáveis técnicos de laboratório, ou bons pesquisadores em qualquer ramo do saber, Só por acaso, porém, tornar-se-ão possuidores daquele alto espírito que a consciência dos que participam de um esforço coletivo indivizível em benefício da comunhão a que pertencem e do progresso geral das ciências, concede aos que a ele se dedicam. E é esse gereneroso sentimento, - ia dizer, essa generoso orgulho que constitui o verdadeiro espirito universitário de que tantos falam e tão poucos compreendem.

Pelo rápido esboço que acabo de traçar, apreendestes perfeitamente toda a extrema delicadeza do problema que Armando de Salles de Oliveira e seus íntimos colaboradores procuraram resolver. Vistes como no grande homem de Estado aparecia a estrutura interna e doutrinaria do instituto em que se enfeixa hoje a poeira de escolas sem coesão nem eficiência a que se reduzia o lamenável aparelhamento cultural encontrado pelo chefe do Partido Constitucionalista, no início do seu fecundo governo.

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Pois bem, senhores. A ideia em si, a sua parte conceptual pura de nada valeria se não n’acompanhasse a sua superestrutura material. Se não erramos, se o espirito universitario é realmente aquele espírito a que nos vimos referindo, fácil será compreender que só as cidades universitárias poderão criar as condições de meio indispensáveis á sua eclosão, pois é no convívio diuturno que só elas poderão proporcionar que professores e alunos se darão conta de que tão indispensáveis para o país são a filologia grega e a critica da razão pura, como a química e a biologia; à analise matemática e a fisica atômica como a ciência do direito.

A FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS E O ESPIRITO UNIVERSITÁRIO

Desde que a sua estrutura arquitetônica seja concebida de acordo com os princípios gerais que vamos anunciando, a cidade universitária tornaria possível a centralização das catedras que se destinam ao ensino das matérias chamadas básicas, isto é, daquelas que se dedicam às ciências puras, como a matemática, a química, a botânica, a biologia geral, a zoologla, a fisiologia, a anatomia etc.

No pensamento do fundador desta Faculdade e no dos seus companheiros de luta, seriam desagregadas das diferentes escolas em que são obrigatoriamente ministradas para passar a ser exclusivas de uma Faculdade central; da Faculdade a que pertenceis, alma mater do organismo total, organismo que, por definição, deve dedicar-se aos chamados altos estudos desinteressados, os quais são a finalidade precipua de uma universidade realmente digna desse nome, a cuja volta se agrupariam os demais institutos profissionais.

Para que este pensamento adquira nitidez maior, vejamos um exemplo concreto: admitamos que a química, a física, a biologia geral e a zoologia fossem matérias ensinadas nos cursos não somente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde procurariam seus diplomas os que se destinassem ao doutoramento em ciencias, mas ainda nas de Medicina, Farmácia e Odontologia.

Pois bem, segundo a concepção que presidiu a redação do decreto de 25 de janeiro de 1935, seriam elas eliminadas desses diferentes institutos para que os alunos tanto de medicina quanto de farmácia e odontologia as cursassen na Faculdade de Filosfia, Ciências e Letras. Da mesma maneira os que se destinassem á Escola Politécnica deixariam de cursar nela a análise matemática, a física, a química, para segui-las nas respectivas subsedes destinadas ás mesmas disciplinas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

O mesmo aconteceria com a Economia Politica que seria ministrada exclusivamente nesta Faculdade, onde os alunos de Direito deveriam cursá-la. Assim as faculdades dedicadas à formação de profissionais de maedicina, farmácia, odontologia, engenharia, direito, agricultura, etc, veriam os seus cursos reduzidos exclusivamente às carreiras práticas e tecnicas propriamente ditas.

Poderia estender-se a regra acima mesmo ás Escolas do Exército e da Marinha. O desconhecimento, o quase divórcio existente entre os civis e militares em nosso país tem sido causa de um trágico mal entendido entre os primeiros e as classes armadas. A desconfiança mútua e, às vezes, até a prevenção, fazendo que uns formem dos outros um juízo falso, quase sempre injusto, desapareceriam por completo se, no período universitário, os estudantes da Escola Militar ou da Escola Naval e os dos outros estabelecimentos universitários tivessem a oportunidade de uma convívio estreito que se daria, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, através dos cursos de Matemática, Física, Química e mais disciplinas indispensáveis à carreira das armas.

Cremos não serem necessárias mais extensas explanações para que quantos tenham o hábito de meditar sobre coisas do ensino apreendam o imenso alcance de uma tal sistematização. Para estes não escapará a significação decorrente do fato se submeterem os alunos, que se destinam a diferentes especialidades, a uma formação científica básica uniforme, a um convívio sob o mesmo teto e, portanto, à ação contínua de um mesmo espírito formativo.

A passagem da totalidade do corpo docente pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras dar-lhe-ia uma percepção nitida e tangível daquele espírito universitário a que acima nos referimos e que se definiu como sendo a própria consciência da unidade do saber humano e da colaboração de todos na obra comum em prol do progresso tanto da terra em que nascemos como da ciência em si mesma.

A permanência numa faculdade cujo traço diferencial seria o caráter desinteressado dos estudos que nela se fariam, teriam ainda e forçozamente como resultado a imediata elevação do nível geral de cultura de todos quantos se dedicassem ás chamadas profissões liberais, o que não deixaria de ser uma imensa conquista, sobretudo para os países da América, onde o progresso material escessivamente fácil teve como consequencia uma orientação demasiado pragmatica e superficial da cultura.

Além disso, não devemos desprezar os efeitos benefícios que o desenvolvimento do espírito de solidarieddade que os acompanharia quando lhes coubesse constituir, do alto e baixo da hierarquia social, os quadros dirigentes da nacionalidade.

ARMANDO DE SALES OLIVEIRA E A CIDADE UNIVERSITÁRIA

Estes resultados, que Nação tem o direito de exigir de suns universidades, só poderão ser atingidos, é óbvio, com as cidades universitárias, isto é, com agrupamento de todos os institutos de ensino superior, segundo um plano geral prestabelecido e cuja estrutura urbano-arquitetonica corresponda exatamente aos fins tanto culturais como educativos do organismo universitário na sua totalidade.

São portanto capitais os frutos que o vosso paraninfo esperava de uma cidade universitária. Mas não são eles de ordem puramante intelectual. A concentração dos institutos culturais tornaria possível ainda uma notável economia tanto de pessoal como do material destinado ao ensino, o que não é de desprezar a se levar na verdadeira conta o preço elevadíssimo de um perfeito aparelhamento científico. A unificação de laboratórios, unificando, evitando a dispersão de meios favoreceria a aquisição de um aparelhamento evidentemente muito mais perfeito e, por isso mesmo, mais eficiente.

Neste terreno, não olvidemos as bibliotecas. A cidade universitária resolveria o problema construindo um edifício único para abrigar a biblioteca universitária. Nela se concentrariam as diferentes seções especializadas em que normalmente se subdividem. Cada instituto conservaria dentro de seus muros apenas os livros de consulta imediata e indispensáveis ao curso do dia e às pesquisas em andamento. Um tal sistema, como se vê, fala sobre si mesmo sobre a formidável redução de gastos, tanto em material como em pessoal.

Na ideação urbano-arquitetônica da cidade universitária prevista pelo governo de Armando Salles constituia preocupação de primeiro plano o problema da educxação física da juventude, e portanto, dos parques de esportes. Este lado da questão diz sobretudo respeito à extensão dos domínios de que, normalmente, necessita uma universidade.

É evidente que quanto maior for o espaço que lhe possa ser reservado, melhor será. E isso tanto mais quanto seria de toda conveniência que a seção de Botânica da Faculdade de Filosofia, Ciências Letras pudesse dispor de amplos hortos botânicos do mesmo modo que as seções de Biologia Geral e Zoologia só teriam de lucrar se acaso lhes fossem subordinados o Jardim Zoologico, estações de biologia marítima, museus especializados etc.

Prevendo esta face do problema, o estadista de longa visão que fundou esta universidade localizou a futura vila na fazenda do Butantã. A ele a mais ninguém se deve a ideia de ali construir-se a futura sede de nosso mais alto instituto de ensino.

Chegou o momento agora de abordar um dos mais interessantes aspectos do delicado e complexo problema. Referimo-nos à questão do estilo arquitetônico a que deverão obedecer as construções. Questão de somenos, dirão alguns. Questão capital, diria Sales de Oliveira. Se tivermos bem em mente o espírito geral em que vimos procurando explanar o que entendemos constituir o fundo e a forma do problema universitário, chegaremos, logicamente, à conclusão de que um único estilo poderá ser adotado na edificação da cidade: aquele que lembre a todos os momentos, tanto a estudantes como a professores, as nossas origens latinas ou ibéricas mais particularmente.

Uma universidade valerá pelo espírito que nela venha a palpitar, pelo poder nacionalizador de que se mostre capaz, pela fé nos destinos da nação que saiba instilar no coração da juventude. A ciência, bem o sabemos, em si mesma, não conhece fronteiras. Não é menos verdade, porém

Não é menos verdade, porém, que o valor de um povo se mede antes de tudo pelo respeito e pelo amor que saiba dedicar às suas origens, às suas tradições. Se isso constitui um imperativo absoluto para todos os países sem exceção, muito maior o será para os que, por circunstâncias especiais, se vêm procurados por volumosas correntes emigratórias de todos os matizes, como acontece particularmente com o Brasil.

Por isso mesmo, impõe-se às suas elites não perder nunca a ocasião de afirma bem alto a mais intransigente fidelidade ao passado. E que melhor maneira de significar absoluta solidariedade aos nossos maiores do que construir a cidade universitária de tal modo que se lhes fosse dado volver do seio da eternidade, onde descansam, se sentissem dentro de seus muros em suas próprias casas?

O DEVER DE PRESTIGIAREM-SE AS UNIVERSIDADES

Com esse espírito - são palavras de Armando de Salles Oliveira - devemos orientar o movimento universitário no Brasil estimulando e prestigiando as universidades existentes e incentivando a criação imediata de uma universidade ao menos no norte do país.

Se todas essas instituições se alargarem e se consolidarem dentro de uma vigorosa organização teremos realizado não só uma obra cultural e científica de grande envergadura mas um progesso político de imenso alcance para a nação. As universidade criarão, entre os que se destinam aos altos postos do magistério, da administração e do comando, um traço de união, uma comunidade no espírito, nos métodos e no sentimento. Espalhadas pelo país, elas serão os centros de convergências das diferentes mentalidades, tendências e correntes de opinião nas quais se cristalizem, através da unidade de formação do espírito, os princípios e ideais da vida nacional.

Não se realizará uma obra desse vulto sem a assistência constante e a mão forte do governo, para que seja uma realidade a seleção, puramente democrática, dos mais capazes, e não se interrompa, entre essas universidades e os principais centro culturais do mundo, uma corrente espiritual alimentada por missões de mestres estrangeiros, pra professarem cursos no Brasil, e missões de professores nacionais, para se aperfiçoarem e se especializarem fora do País.

Essas medidas terão que ser articuladas com outras, se quisermos que a universidade seja, não uma criação artificial, mas um conjunto orgânico, governado pelo mesmo espírito e pelo mesmo idealismo. Devamos instituir condições favoráveis não só para o ensino superior, mas ainda para o trabalho de pesquisa, que depende tanto das instalações dos laboratórios quanto das garantias de que se cerque o professor do ensino universitário.

Desprovido dos órgãos de ensino e de informação que são as bibliotecas devidamente aparelhadas, e dos instrumentos de trabalho científico, o professor, por mais bem preparado que seja, está condenado a uma vida estéril, limitada à cultura adquirida, à transmissão da ciência feita e à rotina. Faltando-lhe os meios e os laboratórios, ele não poderá tirar proveito das inesgotáveis fontes de inspiração que são a ciência experimental e as grandes obras do pensamento contemporâneo.

Por isso, uma das medidas que a Armando Salles de Oliveira pareceu mais necessária, pela sua pronta repercussão no trabalho científico de pesquisa, e na elevação do nível do ensino superior, era a instituição do tempo integral, com o consequente aumento dos vencimentos dos professores universitários. Esses vencimentos devem ser correspondentes à importância da missão em que são investidos e que exige uma dedicação sem restrições, com o sacrifício de quaisquer outras ambições fora dos limites das atividades científicas.

O alcance social e político das instituições universitárias avulta nessa época de concorrência em que as nações procuram aperfeiçoar o seu aparelhamento cultural e técnico, para resolver os problemas internos e vencer nas competições internacionais.

A extensão que tomaram as atribuições do Estado; a complexidade da vida econômica moderna, que multiplica para os governos a ocasião de intervir; as novas condições industriais consequentes à aplicação das descobertas e das invenções à produção e distrubuição da riqueza, a tendência à concentração e, ao mesmo tempo, à especialização dos trabalhos; as mudanças de volumes, dos métodos e dos caminhos do comércio internacional, que podem resultar do maquinismo e de outros fatores – tudo isso obriga o Estado a pôr no primeiro plano de uma política de reconstrução as instituições destinadas a formar, enriquecer e renovar os seus quadros técnicos, para o estudo cabal dos problemas nacionais.

Os países organizados dispõem de técnicos e especialistas eminentes e não recorrem a projetos traçados no vago, em improvisações desorientadas, mas às luzes de estudos pacientes e de uma cultura longamente preparada – armadura de defesa dos elementos vitais da nação.

A utilidade prática e imediata das instituições universitárias resulta da necessidade, sobre todas urgente, de criar e alimentar seus quadros técnicos e culturais. Só por esse motivo, quando não existissem outros, ainda de maior alcance, nunca seriam excessivas as índigas nem as despesas que se empregassem na solução de um problema de tamanha relevância para o futuro da nacionalidade.

É somente pela alta cultura, de nível verdadeiramente universitário, que nos desembaraçaremos dessa meia cultura, a que submeteu o país o regime de autodidatismo da cultura pessoal, empírica, sem base e, quase sempre, sem horizonte: e é só nesses maravilhosos laboratórios de vida espiritual e de atividades científicas, que ser formará a nova mentalidade nacional, pela auto-crítica, pela pesquisa desinteressada, e pela constante revisão do pensamento e dos elementos de nossa civilização.

Por isso, o que constitui a medula dos sistemas universitários serão sempre os seus institutos prepostos à pesquisa e à cultura desinteressada: as suas Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Se o Estado, diante da crescente variedade e importância dos seus problemas, não pode prescindir dos técnicos e dos especialistas e dos grupos profissionais para uma ação comum, no interesse coletivo, só por meio da formação desse espírito de crítica e de síntese é que se podem completar as noções fragmentárias dos especialistas, adquirir uma visão da história da civilização, compreender-lhe as grandes linhas e as forças que operam na sua elaboração, de maneira a poder situar cada um dos problemas de conjunto de uma política nacional, de acordo com a sua importância e suas relações recíprocas.

Senhores bacharelandos: outras não seriam as palavras de vosso paraninfo Armando de Sales Oliveira se pudesse ter tido a ventura de vir aqui conversar-vos hoje. Que para ele ventura maior não havia do que falar aos moços.

Eu as transmito isentas, de qualquer cunho que pudesse trair o meu temperamento agreste de homem de luta, demasiadamente açoitado pela vida, mas nem vencido nem conformado.

Um destino miserável e injusto não permitiu que viesse proferi-las aquele que foi roubado de vós, de nós todos, privando o Brasil de um estadista cuja altura o nosso país talvez não tivesse compreendido bem, mas que orgulharia qualquer povo altamente civilizado.

Esse destino miserável e injusto, porém, aí de vós! Foi quem determinou viesse eu ser o portador do pensamento de Armando Sales de Oliveira, pensamento que conheci nos seus mais íntimos traços, mercê de um convívio de longos anos, estreitado indissoluvelmente até na peregrinação hostil do exílio, onde mais do que nunca, o homem entra em contato com a maldade dos outros homens.

Ele não resistiu ao choque de rever o Brasil. O seu espírito porém aí está para neutralizar o choque de destruir-se o Brasil. Os seus ensinamentos, sobretudo o seu exemplo inigualável nos guiarão, nos exercitarão nessa luta suprema, nesta luta heróica, nesta luta divina “para que o Brasil continui”.

[transcrito com a grafia original da época]

Páginas do Estadão de 28 de dezembro de 1945 com discurso de Julio de Mesquita Filho na formatura de alunos da USP. Foto: Acervo Estadão

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