Anne Carson ganha novas edições no Brasil

Escritora desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários, deixando o leitor em dúvida se lê um poema em prosa ou um ensaio

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Por Leonardo Piana

Um dia de manhã cedo faltavam palavras. Antes disso, nenhuma palavra. Havia fatos, havia rostos. Numa boa história, diz Aristóteles, tudo o que acontece é impelido por alguma outra coisa.” Assim começa a introdução de Anne Carson para o seu Falas Curtas, livro de poemas em prosa publicado originalmente há 30 anos, em 1992, por uma editora independente no Canadá, e lançado agora no Brasil pela Relicário simultaneamente a outro lançamento, Eros, da Editora Bazar do Tempo.

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De início, o leitor de Falas Curtas sabe: tudo o que acontecer dali em diante será projetado pelas palavras que faltavam. A introdução funciona como uma espécie de guia para o ambiente de flutuação que encontramos a seguir. Carson nos revela o seu método: “Comecei a anotar tudo o que era dito”. “Rastros e vestígios” são perseguidos pela autora de modo a evitar o tédio.

À primeira vista, tudo parece ser muito concreto e até plano no mundo recriado pela autora. E pode parecer óbvio, mas não é: se olharmos para as palavras de outro ângulo, tudo parece perder a sua forma primal para depois, aos poucos, reconquistá-la.

A escritora e poeta canadense Anne Carson, autora de 'Autobiografia do Vermelho' e 'Falas Curtas' Foto: Relicário

A sequência de 53 fascículos surge a partir de um encadeamento de reflexões e imagens que justamente repelem a obviedade. Vívidos e inconclusivos, os poemas apontam para lugares diversos, de Ovídio a Brigitte Bardot, passando por Van Gogh, Sylvia Plath, gueixas e a decolagem de um avião.

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Não se trata de uma obra passível a interpretações fáceis ou elogios despropositados. Antes, Falas Curtas é um livro que convoca o leitor para o estilo inconfundível da autora e para os meandros da linguagem poética. Desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários. Serão mesmo poemas em prosa ou talvez ensaios, narrativas curtas? A definição pouco importa diante do fascínio obscuro que os textos suscitam no leitor, com camadas diversas de compreensão, mal situados entre a erudição e o que parece, de imediato, banal. E é neste deslocamento que está a força do livro.

Cabe ao leitor ampliar sentidos para se deixar levar pela precisão das frases de Carson. E, como ela mesma já disse sobre a literatura grega antiga, é uma leitura que exige buscar a lição de cada frase. Não como uma cifra, mas como a contação de um segredo íntimo e ao mesmo tempo universal. Em sua Fala Curta Sobre Parmênides, Carson escreve, sobre um amigo italiano: “Receio não termos entendido o que ele dizia ou seus motivos. E se cada vez que ele dizia ‘cidades’ quisesse dizer “embuste”, por exemplo?”.

A poeta Sylvia Plath é uma das referências de Anne Carson, assim como Van Gogh e a cultural oriental  Foto: Knopf Books

Talvez por isso os fascículos possam ser lidos também como confissões. “Em toda história que conto chega um momento que não consigo enxergar mais à frente”, escreve na sua Fala Curta Sobre O Homo Sapiens. Lemos como quem espia pelo buraco da fechadura de um quarto. E no final descobrimos que o quarto era, esse tempo todo, o nosso.

Nascida em Toronto, Canadá, em 1950, Carson é poeta, ensaísta, professora de literatura clássica e reconhecida tradutora de grego antigo, tendo traduzido para o inglês peças de Sófocles e Eurípedes e poemas de Safo. Nos últimos anos, foi um nome frequente na lista de indicações ao Prêmio Nobel de Literatura. Original e diversa, a sua obra está localizada em grande parte entre o ensaio e a poesia, estabelecendo diálogos com outros escritores, pensadores e artistas, além de figuras bíblicas, históricas e mitológicas.

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Retrato do escritor francês Marcel Proust, outra referência literária na obra da autora Foto: Acervo Estadão

O Método Albertine (Edições Jabuticaba, 2017), por exemplo, primeiro livro da autora publicado no Brasil, sustenta-se pela paixão de Carson por Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust – em especial por Albertine, aprisionada pelo narrador no volume A Prisioneira. Albertine é a personagem que mais aparece no romance de autor francês – 2.363 vezes, em 807 páginas, adormecida em pelo menos 19% delas. Os dados estão no texto e lhe dão o tom bem-vindo de um exame obsessivo.

Autobiografia do Vermelho (Editora 34, 2021), por sua vez, reinventa a história de Gerião. Na mitologia grega, Gerião é um gigante detentor de um enorme rebanho de bois vermelhos, e Hércules, para tornar-se herói, tem como uma das suas doze tarefas matá-lo. Na versão irreverente de Carson, Gerião aparece como um adolescente gay apaixonado por Hércules. Nos Estados Unidos, o romance conquistou a crítica e os leitores.

Falas Curtas talvez seja o mais misterioso entre os três, e a sua leitura está sempre no limite do risco entre o que funciona e o que não funciona. Mas não se vale desse risco toda poesia? Para os mais afeitos ao gênero, o lançamento de 107 páginas é um mar que se abre. Nada-se a braçadas. Para quem não é fã de poesia, Falas Curtas – apesar da singeleza da linguagem – parece deter uma opacidade indecifrável e diz, com o perdão do trocadilho, pouca coisa. Saímos da sua leitura com mais perguntas do que entramos, e com um estranho sentimento de fidelidade à obra. Talvez possamos inclusive devolver ao livro a indagação essencial que, a certa altura, ele mesmo faz: “Quem é você?”. Mas, para uma pergunta tão grande, talvez nenhuma resposta seja correta ou boa o suficiente.

FALAS CURTAS

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