Na prosa de As Primas, nada está condicionado à ordem do convencional. O romance oficial de estreia da argentina Autora Venturini, lançado aos 85 anos da autora, se apresenta como a narrativa intimista de Yuna, jovem marcada pelas múltiplas deficiências familiares. É por meio da arte, da busca pela cura ao incurável e da negação dos laços de sangue que Yuna tenta escapar do ambiente doméstico, que considera sufocante para as suas aspirações.
Consciente do desvio com relação à normalidade que a cerca, Yuna escreve “mas na minha casa tudo era diferente porque nós também éramos, cada um na sua extensão, dimensão e hierarquia”. O núcleo familiar é composto pela depressiva mãe, que abandonada pelo marido, cria Yuna e a irmã, Betina – infantilizada e presa à cadeira de rodas – com a ajuda da empregada Rufina. A elas se juntam as tias Nené e Ingrazia, mãe das primas Carina e Petra, também deficientes, e o professor de arte José Camaleón, que ajuda Yuna em seu propósito.
Neste universo quase exclusivamente feminino, a primeira perda é a da matriarca, avó de Yuna, comparada na morte a um sapo. Impossível não recordar da afirmação de Vardaman Bundren diante da perda da figura materna no célebre Enquanto Agonizo (1930), de William Faulkner: “Minha mãe é um peixe”. Logo em seguida, a família de Yuna é confrontada pela morte de Carina, após um aborto malsucedido, realizado pelo medo da vinda de outra criança deficiente.
Com a aparente consciência de Yuna quanto aos fatos ao seu redor, restam dúvidas se o modo de lidar com as perdas é vestígio de uma frieza com relação à família ou da falta de percepção da realidade da morte. Mas, Carina causa um impacto na narradora, que transforma a cena do aborto em arte, além de tramar com a prima Petra um plano fantasioso de vingança.
O ofício de Yuna, ligado à sua prodigiosa habilidade artística, influencia sua técnica narrativa. Intimista, ela relata os fatos ocorridos na família em uma dicção quase diarística, mas que implica a existência de um possível leitor. Contudo, o que se destaca de súbito é a escrita visual da narradora, com acurada descrição de sua percepção da realidade. Assim, a pintura das cenas se mistura aos quadros abstratos da jovem.
Na busca pela superação da deficiência, que acredita ser passível de cura, Yuna treina a fluência da fala, principal marca de sua limitação. Por vezes, ela evita os sinais de pontuação, pois eles a cansam; em outras, deixa claro ao leitor que buscou o vocábulo empregado no dicionário. Isso se funde à tecitura do romance, uma vez que, em seu decorrer, a narrativa torna-se mais fluida e menos truncada, acompanhando o desenvolvimento da protagonista. Nesta cadência do livro, vemos a demonstração formal do peculiar romance de formação que é As Primas.
Longe de uma visão de mundo politicamente correta, Yuna vê com distinções as deficiências visíveis e não visíveis, como a sua própria
Longe de uma visão de mundo politicamente correta, Yuna vê com distinções as deficiências visíveis e não visíveis, como a sua própria. Ela não esconde o asco que sente da irmã e das primas, cujas corporalidades desviam do que considera normal. Para a narradora, como a sua limitação se mostra oculta aos olhos, ela é a única passível de salvação na família.
Peculiar como a sua seleção de personagens, Aurora Venturini é a grande protagonista do prefácio que a escritora – também argentina – Mariana Enriquez escreveu para o livro. Enriquez compôs o júri que entregou o prêmio Nueva Novela, organizado pelo jornal Página/12, para Venturini, em 2007. Fatos curiosos marcam a trajetória da autora, como as décadas de livros escritos sem, contudo, uma editora para publicá-los.
Segundo rumores, Venturini travou amizade com dois populares nomes das letras argentinas: Victoria Ocampo e Jorge Luis Borges. O insólito da autora caminha na esteira que Borges, junto do trio ABC – composto também por Adolfo Bioy Casares e Julio Cortázar -- deixou na literatura do país. As Primas também se aproxima da literatura, por vezes monstruosa, da irmã de Victoria, Silvina Ocampo, e de contemporâneas como Samanta Schweblin. Também ouvimos ecos da literatura grotesca produzida no Sul dos Estados Unidos no século 20, por nomes como William Faulkner, Carson McCullers, Truman Capote e Flannery O’ Connor.
Se Faulkner retirou o título do seu O Som e a Fúria (1929) dos versos de Shakespeare: “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, que não significa nada.”, Venturini, ao nomear o seu As Primas, centra-se na união das mulheres dessa peculiar família. Estamos diante de uma história repleta de som e fúria, mas neste livro ão há idiotas.
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