Fred di Giacomo, na busca de falar sobre algo que só ele pudesse contar, acabou caindo no próprio quintal: um romance histórico baseado na fundação de sua terra natal, Penápolis. No registro do realismo mágico, o autor cria a cidade fictícia Desamparo, que dá nome à sua obra e onde “as histórias mais absurdas são a realidade”, segundo diz em entrevista ao Aliás. Por cobrir da Revolução Liberal de 1842 à Crise de 1929, a pesquisa realizada foi extensa e reuniu cerca de oitenta páginas com informações de livros raros, acervo acadêmico e entrevistas com pioneiros da cidade. No meio de tudo isso, Giacomo teve contato com histórias reais curiosas, como a da viúva empreendedora dona de várias terras, um matador de aluguel homossexual no século 19 que lia filosofia e uma suposta ama de leite de Dom Pedro I.
Partindo desses dados jornalísticos, o autor ingressou na ficção. A primeira metade do livro, Viúvas, descreve as famílias da região, a colonização das terras e a relação conflituosa com os índios, além de mostrar a obsessão de pessoas influentes pelo progresso e ascensão social da cidade, que muda de nome diversas vezes e avança para um dia tornar-se sede de comarca. Giacomo admite ser ambicioso: entre as obras que o inspiraram estão Cem Anos de Solidão (1967), do Nobel colombiano Gabriel García Márquez, Pedro Páramo (1955), do mexicano Juan Rulfo, e Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves (2006). O começo do livro pode ser a parte mais difícil: ao todo são cem personagens apresentados com maior ou menor ênfase. “A história não é feita por um ou dois heróis, ela é coletiva”, diz ele, que tentou cortar e fundir as pessoas encontradas em suas pesquisas.
Foi impulsionado pela curiosidade que ele começou a investigar “o massacre dos 11”, a morte de uma família da cidade pela tribo Kaingang no século 19. Uma das versões encontradas dizia que a culpa havia sido do único fazendeiro negro liberto da região, que teria estuprado uma índia. “O engraçado é que os índios não mataram ninguém da família desse fazendeiro e nem ele. Então por que morreram outros?”, o autor se perguntou e, só então, achou a última explicação: a família aparentemente tinha assassinado alguns índios que colheram milho em suas terras.
Essa descoberta serviu para criar a protagonista Rita, filha do fazendeiro acusado e voz ativa na segunda metade do livro, Homem Pequeno. Os ‘causos’ das famílias contados na primeira parte dão fôlego para a narrativa seguir adiante e criar o clima de vingança pela memória do pai, além de explicar o extermínio dos índios na região. O resultado é que essa segunda parte possui um fluxo de leitura ainda mais saboroso, mostrando a utilidade de ter lido sobre os acontecimentos daquele povoado, o que é também um lembrete para o leitor não se esquecer do seu próprio passado. “As pessoas têm que ter as histórias delas contadas porque elas fogem daquele padrão de heróis”, afirma o autor.
Questionado sobre por que usar o elemento fantástico na narrativa, o autor indica que isso, na verdade, é um jeito de traduzir coisas que são difíceis de expressar e, ao mesmo tempo, falar sobre temas densos de um jeito mais palatável. “É muito difícil dizer ‘sou deprimida’; as pessoas falam: ‘tô com uma coisa no peito’”, explica. Já a inspiração para usar a fantasia na escrita veio, segundo ele, da “cultura caipira”. “As pessoas no interior contam histórias – hoje em dia menos – por meio de uma religiosidade e uma superstição intensas”. Não é à toa que os mortos são figuras muito vivas em sua história, como, por exemplo, o fantasma de um marido que some com a cesta de agulhas de sua mulher, Maria Capa Negra. Sobre isso, o autor diz que há também o fato de as pessoas do interior viverem uma cultura familiar intensa. “Todo mundo se conhece, você carrega a sua família e as correntes do passado o tempo inteiro”, observa.
Na narração há uma linha tênue entre a realidade e o fantástico, tudo pode ser apenas “um jeito de contar, um fato imaginado”. Por exemplo, há uma chance de o sumiço da cesta ser uma forma de ocultar a falha na memória da mulher, provavelmente causada pela velhice. Já em outro trecho, uma mãe tem um filho morcego, que pode ser interpretado como depressão pós-parto. A fantasia também é usada para retratar a violência, como quando o único sobrevivente de uma chacina dos índios feita pelos brancos é o pajé da tribo, Congue-Huê. “Tão velho e enrugado que foi confundido com uma árvore”, lê-se num trecho.
O livro chama a atenção, principalmente, para a violência presente até os dias de hoje. “Eu fui descobrir que Penápolis tinha uma história muito violenta, que era um microcosmo do Brasil”, reflete Giacomo. Para ele, ao escrever um romance histórico, o escritor não pretende ser uma referência em política ou sociologia, mas esbarra em questões que dão pistas das razões do estado atual da sociedade. “É quase uma coisa assim: vocês estão percebendo o absurdo que a gente vive?”
O absurdo também está presente no desamparo que os personagens sentem, principalmente os principais antagonistas – como Manoel Antero dos Santos, inspirado numa pessoa real e que, na ficção, é um homem frustrado por tentar escrever a versão brasileira de Hamlet. Ao não conseguir, torna-se um rádula sem escrúpulos que obtém terras para si por meio de inventários dos herdeiros. “Essa sensação de ser diferente nesse deserto de afeto violento que é grande parte do Brasil é muito comum. É um país duro de viver, principalmente nesses lugares do interior e periferia”. Assim, impulsionado por questões do passado, o livro causa uma série de dúvidas também sobre o presente, de forma que a obra pode ser resumida no trecho: “Sua primeira palavra fora uma expressão que tirou o sossego de sua mãe: ‘Por quê?’. Quem descobre o ‘porquê’ tem ocupação para uma vida inteira e nunca é envenenado pelo tédio”.
*Bruna Meneguetti é jornalista, escritora e coautora de 'Corações de Asfalto' (ed. Patuá)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.