"Bicentenário da Independência chega sem projeto de nação", diz historiador

José Murilo de Carvalho fala sobre como os brasileiros destruíram seu paraíso terrestre e a urgência de mudanças

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O Brasil celebra 200 anos de vida independente em 2022 sem projeto de nação e longe da grandeza anunciada em 1500 pela natureza exuberante e sonhada no século 19 pelos que lutaram por sua Independência. A constatação é do historiador e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) José Murilo de Carvalho, que avalia com desânimo o panorama nacional hoje. Para ele, os brasileiros destruíram o seu paraíso terrestre. Poluíram ares, águas e praias e levam às terras, inclusive a Amazônia, à desertificação, sob o impulso do desmatamento e da mineração predatória. “O sonho de grandeza desvaneceu, não se transformou em política de Estado a ser implementada independentemente da mudança de governo, afirma, em entrevista ao Estadão. “Vamos levando sem termos um projeto (de nação), um fim a atingir, algo como o Manifest Destiny (Manifesto do Destino) dos norte-americanos.”

O historiador José Murilo de Carvalho Foto: Wilton Junior|Estadão

O historiador diz que o Brasil é um “país sem revolução”, no qual ocorreram movimentos apenas de “ajuste” entre as elites. Foi assim, considera, na Proclamação da República, para permitir a entrada dos cafeicultores na política; na Revolução de 1930, para quebrar o monopólio das oligarquias rurais; no golpe de 1964, para conter o trabalhismo criado por Getúlio Vargas. As elites brasileiras, afirma, desde o Império, tiveram enorme capacidade de se reproduzir e, em conluio, barram as medidas que envolvam redistribuição de renda no Brasil. “O Leopardo de Lampedusa concordaria: é preciso mudar para que nada mude”, diz. Ele se refere ao romance Il Gattopardo, do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1857), sobre a decadência da nobreza siciliana durante o Risorgimento, movimento que buscou a reunificação italiana no século 19. A frase (“É preciso mudar para que tudo permaneça como está”) é de um personagem do livro, o príncipe de Falconeri. O acadêmico avalia que o conservadorismo brasileiro é basicamente cultural, moral e de família, gênero e religião, não político, como “provavelmente as urnas” mostrarão, diz. O campo político, diz, é da elite econômica e financeira. O pesquisador afirma que os brasileiros deveriam seguir os chineses, que pensam seu país “para trás e para frente”.

Multidão participade uma marcha do Dia dos Direitos Humanos no distrito de Causeway Bay, em Hong Kong, na China. Foto: Laurel Chor / Reuters Foto:

“O que será do País quando completarmos 250 anos de independência?”, pergunta. Para ele, “com a história que temos, com a magra herança desses 200 anos, não é fácil prever o que podemos esperar.” A seguir, a entrevista do historiador ao Estadão.O que os brasileiros têm a celebrar nos 200 anos da Independência do País? Américo Vespúcio via nestas terras o paraíso terreal, no que foi seguido por outros cronistas coloniais. Às vésperas da Independência, José Bonifácio disse que voltara de Portugal para ajudar a fundar aqui um grande império. Na metade do século 19, Gonçalves Dias exaltou nossas riquezas e belezas em versos que cantamos no Hino Nacional. Em 1900, celebrando os 400 anos da chegada dos portugueses, o conde Afonso Celso escreveu Porque me Ufano de meu País. Os governos militares falaram em construir aqui uma grande potência. E o que têm a lamentar? A grandeza não passou de sonhos. Destruímos nosso paraíso terrestre. Nossos ares, nossas águas, nossas praias estão poluídas, nossas matas, destruídas, nossas terras, em perigo de desertificação, a Amazônia, ameaçada pelo desmatamento e pela mineração predatória. A grande população indígena da época da chegada dos colonizadores foi quase toda extinta. Grande parte da população ainda sofre as marcas da escravidão. O sonho de grandeza desvaneceu, não se transformou em política de Estado a ser implementada independentemente da mudança de governo. 

Escravas negras de diferentes nações, entre 1834 e 1839: a partir do século 18, era cada vez mais forte a influência da escravidão no cotidiano brasileiro Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo Estadão

A herança colonial lusitana ainda pesa ou os maiores culpados por nossos problemas somos nós mesmos? Nenhum país pode ignorar seu passado porque ele sempre deixa vestígios mais ou menos fortes. Em nosso caso, não há como ignorar a colonização portuguesa, a quase extinção da população nativa, a introdução de milhões de escravos trazidos da África, o desenvolvimento de uma economia agrária de exportação dominada por latifundiários, o forte papel de um Estado absolutista, o monopólio religioso do catolicismo. É uma herança pesada. É certo que os 200 anos testemunharam grandes mudanças. Os poucos milhões de portugueses, indígenas e africanos se transformaram em mais de 215 milhões de brancos, pardos e negros e imigrantes europeus, asiáticos e do Oriente Médio. Tornamo-nos um dos mais populosos países do mundo e uma de suas maiores economias. Mas, ao mesmo tempo, montamos um sistema de dominação política que excluiu a participação popular por mais de 100 anos. O povo só entrou em nossa vida política na década de 1930 e teve as tentativas de participação frustradas por duas ditaduras. Temos hoje uma democracia em que o povo político, embora possa votar, não orienta a política e boa parte dele se torna, pela pobreza, imensa clientela vítima de políticas populistas. Patrimonialismo, paternalismo, elitismo, estatismo têm raízes profundas e ainda dificultam a construção de uma sólida república democrática. O escravismo colonial e o racismo ainda moldam a sociedade brasileira, como no passado? A escravidão deixou marcas profundas que se manifestam ainda hoje em preconceitos, discriminações, exclusões. Só recentemente, com a adoção de políticas afirmativas de inclusão, como o sistema de cotas no acesso ao ensino superior, a situação está sendo combatida, e uma nação mais inclusiva se esteja construindo. Por muito tempo, a negação oficial da existência de discriminação racial e a imagem do convívio fraterno de três raças causaram um mal enorme, ao camuflarem o preconceito e a exclusão. 

Prédios de luxo contrastam com favelas; eleição é oportunidade para País formar consenso pelo crescimento e pela redução da desigualdade social Foto: Clayton de Souza/Estadão

Por que o Brasil parece tão resistente a mudanças, apesar da brutal desigualdade social brasileira? São perguntas de um milhão de dólares. As elites brasileiras desde o Império tiveram enorme capacidade de se autorreproduzir. No Império, sob as asas do Poder Moderador, na Primeira República com a política dos Estados – renovando-se na década de 1930 –, mais tarde apoiando golpes. Façamos a revolução antes que o povo a faça, disse Antônio Carlos em 1930. O Leopardo de Lampedusa concordaria: é preciso mudar para que nada mude. Basta um exemplo: milhões de pobres votam. No entanto, os eleitos por eles, boa parte dos congressistas, no máximo dedicam-se a práticas clientelistas e populistas, sem promover reformas estruturais em favor da redução da desigualdade. Não representam os interesses de milhões de eleitores que neles votaram. A representação, vale dizer, a democracia, não funciona. A insensibilidade à desigualdade é marca de nossas elites. Veja-se o exemplo do Judiciário que abriga os marajás da República. Em meio à dura crise causada pela covid, vemos o STF reivindicar aumento salarial de 18% para toda a magistratura. Os juízes do STF que ganham R$ 39,2 mil, fora os penduricalhos, passariam a ganhar R$ 46 mil. Isto num país onde o salário mínimo é de R$ 1.212. É uma indecência que retrata a cara de nossa elite. Quem resiste mais a mudanças no Brasil? A elite econômica, a classe média? O topo dos negócios, da política e da burocracia estatal em conluio. Entre si conseguem barrar todas as medidas que envolvam redistribuição de renda. Em quais episódios históricos o Brasil mudou para conservar tudo como estava, como na assertiva de O Leopardo de Lampedusa? O Brasil é um país sem revolução. Alguns movimentos foram de reajuste, rearrumação do andar de cima. Alguns exemplos: a Proclamação da República, para entrar os cafeicultores; a chamada Revolução de 1930, para romper o monopólio das oligarquias rurais; o golpe de 1964, para conter o trabalhismo getulista. 

Fachada da sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil - 28/6/2021

Ao fazer 200 anos, o Brasil tem um governo que se diz conservador. Os conservadores venceram no Brasil? Diria que uma boa parte de nosso conservadorismo é de natureza cultural, tem a ver com valores relativos à moral, família, gênero, religião. Prova disso é o rápido avanço dos evangélicos. Politicamente, não vejo uma predominância conservadora, como provavelmente as urnas irão mostrar. O conservadorismo político talvez seja mais de setores da elite, sobretudo da elite econômica e financeira. O governo Bolsonaro é continuidade ou rompimento com a tradição brasileira de governos? De 1930, quando começou a entrar povo na política, a 1985, fim da ditadura, foram quase 36 anos de governo autoritário contra 19 de democracia. Qual seria, então, a tradição brasileira? Seriam os 37 anos de 1985 a 2022? É pouco para formar tradição. A consolidação de uma cultura política democrática exige mais tempo. Daí a importância de uma vitória democrática nas próximas eleições. Enquanto não houver consolidação da democracia, permaneceremos sob a tutela das Forças Armadas. Como o senhor avalia as ameaças autoritárias que o presidente tem feito justamente neste ano, dos 200 anos de independência do Brasil? Há algo de simbólico nisso? Simbólico de quê? A Independência foi uma libertação e teve envolvimento popular. A não ser que se esteja referindo ao fechamento da Assembleia Constituinte em 1823, nosso primeiro golpe político.

O Presidente Jair Bolsonaro assistiu a partida entre Palmeiras x Goiás no Allianz Parque, em São Paulo. Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

O que explica a nossa irrelevância nas relações internacionais? Temos também um corpo diplomático respeitado internacionalmente. Uma explicação para isso talvez seja o fato de não termos um projeto de nação. Vamos levando sem termos um projeto, um fim a atingir, algo como o Manifest Destiny dos norte-americanos. Por um tempo, pensou-se que deveríamos construir um soft power, participando de missões internacionais de paz. Não foi adiante. O nosso “complexo de vira-lata”, apontado por Nelson Rodrigues, ajuda nessa irrelevância? Não temos importância porque não nos damos importância? Volto ao projeto de nação. Há 200 anos tínhamos um projeto de nação: construir um grande império com base em nosso tamanho, em nossas riquezas, na pujança e beleza de nossa natureza. Faltava apenas população. Veio a população, uma das maiores do mundo, e não dissemos a que viemos. Nem a liderança da América Ibérica conseguimos exercer. 

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