Em 1831, um jovem aristocrata e juiz francês, Alexis Charles Henri Clérel, sentindo que sua carreira estava empacada, obteve permissão para viajar aos Estados Unidos. O pretexto era estudar o sistema prisional daquele país. A viagem até contribuiu para uma reforma das prisões francesas, mas seu principal efeito foi gerar um dos grandes clássicos da ciência política ocidental, o livro A Democracia na América. Hoje, uma nova biografia sobre o autor – mais conhecido pelo nome heráldico de Alexis de Tocqueville –, The Man Who Understood Democracy (O Homem Que Compreendeu a Democracia), por Olivier Zunz, acaba de sair nos Estados Unidos. Enquanto lia o livro, me perguntei como teria sido se, em vez de Estados Unidos, Toqueville tivesse (como seus conterrâneos Debret e Taunay), vindo ao Brasil. Com certeza, se escrevesse um livro sobre a experiência, o título não seria “A Democracia no Brasil”. Hoje, claro, as coisas mudaram. A questão é saber quanto.
No dia 8 de janeiro, o mundo assistiu a uma inacreditável baderna golpista em Brasília, que invadiu os palácios-sede dos três Poderes e provocou destruição em série. A comparação com a invasão do Capitólio norte-americano, ocorrida dois anos antes, foi inevitável, a ponto de alguns terem batizado o evento brasileiro de “capimtólio”. O que há em comum entre os dois casos, entre eles e nós?
Na verdade, traçar paralelos entre Estados Unidos e Brasil é uma obsessão antiga (nossa, não deles). Um pouco, talvez, por aquilo que Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-latas”, os brasileiros não largam a mania de tentar explicar os motivos de o gigante do norte “ter dado certo”, e o gigante do sul jamais ter deixado de ser uma promessa de “país do futuro”. Em 1954, por exemplo, Clodomir Vianna Moog publicou o livro Bandeirantes e Pioneiros: Paralelo Entre Duas Culturas, hoje esquecido, mas best-seller por décadas, no qual o autor tentava explicar o sucesso de um país e o fracasso do outro. O livro significou um grande avanço diante de explicações anteriores, pois desprezava as teorias racistas até então bastante aceitas.
Para Vianna Moog (que leu Tocqueville), a principal explicação, além das vantagens climáticas, hidrográficas e geográficas norte-americanas, e da superioridade da ética protestante sobre a católica (via Max Weber), estava nos modelos colonizadores: para as 13 colônias americanas emigraram pessoas querendo construir, com suas famílias, novas vidas, com liberdade religiosa e política, plantando raízes no novo país (pioneiros). Para o Brasil, vinham indivíduos, sem suas famílias, em busca de prear, enriquecer e, assim que possível, regressar à Europa (bandeirantes). É evidente que as explicações de Vianna Moog, além de algumas de suas premissas (como a de que no Brasil o racismo é inexistente), não resistiram ao tempo; mas o complexo de vira-latas, com a inevitável comparação com os Estados Unidos, continua firme, algo que o nosso “capimtólio” só fez alimentar.
Alexis de Tocqueville não apenas escreveu uma obra essencial, como foi, também, um sujeito interessante. Ele não era um aristocrata qualquer. Sua linhagem, tanto pelo lado do pai quanto da mãe, remontava às mais antigas famílias nobres da França. Antepassados estiveram na invasão da Inglaterra com Guilherme, O Conquistador, em 1066, e na derrota francesa na batalha de Crécy, em 1346. Em anos mais recentes, um bisavô de Tocqueville, o marquês de Malesherbes, ex-poderoso ministro de Luís XV, foi o único que teve coragem de atuar como advogado do rei Luís XVI, deposto na Revolução Francesa. Como se sabe, ele perdeu a causa e o rei perdeu a cabeça. Menos sabido é que o próprio advogado seria, ele mesmo, guilhotinado poucas semanas depois, assim como a esposa, os filhos e quase toda a família. O pai e a mãe de Alexis escapariam por pouco, pelo simples fato de Robespierre, o açougueiro-mor da Revolução, ter sido deposto – e decapitado – alguns dias antes da data marcada para os Tocqueville.
Tocqueville conheceu os EUA há quase 200 anos e o país já oferecia uma educação primária; no Brasil isso era privilégio
Com tudo isso, seria esperado que Tocqueville se tornasse um ressentido conservador linha dura – mas não foi o que aconteceu. Ainda que mantivesse boas relações com seus parentes conservadores, ele se tornou um democrata que detestava ser chamado pelo título de conde e, quando deputado, até mesmo tentou criar uma espécie de Bolsa Família na França (ainda que seja verdade, por outro lado, que Tocqueville jamais defendeu o fim da monarquia, e tampouco abriu mão das propriedades que herdou ou dos privilégios que sua posição lhe dava).
Em que as análises de Tocqueville poderiam nos ajudar a analisar os eventos golpistas de Washington e de Brasília? É claro que, por mais inteligente e agudo que fosse, Tocqueville conheceu os Estados Unidos há quase 200 anos, no começo da década de 1830. A independência fora consolidada havia pouco, na guerra de 1812 contra a Inglaterra. O país, ainda concentrado nas ex-colônias atlânticas, era uma fração territorial do que viria a ser. A escravidão resistia, especialmente nos Estados do Sul; a Guerra da Secessão, que a encerraria, ainda levaria algumas décadas para acontecer (Tocqueville, que era visceralmente contra a escravidão, apontou que ali estava um grande risco de fissura para a unidade norte-americana).
De um jeito ou de outro, ele percebeu que a democracia americana era baseada nas comunidades, que não era algo decretado de cima para baixo, e que nisso residia a sua força. Era a partir dos municípios que se incentivava o empreendedorismo e se investia na educação básica. E, ainda que o país fosse jovem, os ricos se sentiam impelidos a patrocinar universidades (como Harvard, de 1636).
Não que Tocqueville não tivesse questões. A principal talvez fosse o receio de que a democracia acabasse criando uma ditadura da maioria, o que tornava fundamental a existência de contrapesos como a Suprema Corte e a imprensa livre.
Se, na mesma época, em vez da República norte-americana, Tocqueville tivesse visitado o Brasil, ele teria encontrado uma monarquia vivendo entre um imperador forçado a abdicar e outro, menino, aguardando a maioridade. Potencialmente rico, mas com a maior parte de sua população escravizada ou pobre, nada tinha de democrático e era pouco preocupado com educação: o Brasil ainda engatinhava com suas jovens faculdades de Direito (São Paulo e Recife) e Medicina (Rio e Salvador) e nossas primeiras universidades só viriam daí a um século no futuro. E a educação fundamental era quase inexistente. Ou seja, os americanos já formavam cidadãos, ao passo que nós, muito precariamente, formávamos, como médicos e advogados, os filhos das elites do café e do açúcar.
O debate sobre a escravidão, que lá opunha Norte e Sul, por aqui era praticamente ignorado, tanto que ainda levaríamos mais de meio século até que se fizesse a abolição. Na realidade, nas mais de 550 páginas de A Democracia na América, não há uma única menção ao Brasil. Embora eu possa ter deixado escapar algo, encontrei uma única referência, por Tocqueville, ao nosso país: em 1843, já deputado, ele pediu – sem sucesso – que a França aderisse ao esforço britânico no combate ao tráfico de escravos para Brasil e Cuba.
E as Forças Armadas? Nos Estados Unidos, Tocqueville encontrou um exército formado por cidadãos que lutara pela independência do país. Nas décadas seguintes, as Forças Armadas de lá foram paulatinamente profissionalizadas e utilizadas tanto para salvar a União quanto em guerras – não necessariamente justas – que garantiram a expansão do território (indígenas e mexicanos foram as maiores vítimas). No Brasil, o Exército era entidade sem relevância até a Guerra do Paraguai (1864-70). Mas depois que derrubou a monarquia, em 1889, jamais deixou de se intrometer na política.
Quando Trump tentou arregimentar o Exército para uma tentativa de golpe, foi sumariamente ignorado, ao passo que, no Brasil, os apelos de Bolsonaro por uma aventura encontraram, ao que parece, uma caserna dividida entre aventureiros e legalistas.
Nos Estados Unidos do começo do século 19, os municípios eram a base da vida política. Tocqueville chamou a atenção para o fato de cidades como Salém e Concord existirem muito antes de surgir um Estado de Massachusetts. Na origem, o poder estadunidense era organicamente descentralizado, favorecendo a democracia, com decisões tomadas em reuniões comunitárias. No Brasil, desde o descobrimento, as ordens partiam de Lisboa primeiro – e, depois de 1808, do Rio de Janeiro. O Brasil era um país novo assentado em valores coloniais arcaicos, que se recusava a evoluir; nos Estados Unidos, o Norte, dinâmico, pressionava o Sul, retrógrado, a mudar, mas o custo para isso ocorrer seria uma guerra de grandes proporções.
Nenhuma democracia está segura, como atestam as invasões de Washington e Brasília. Ainda assim, quando Tocqueville visitou os Estados Unidos ficou impressionado com a democracia que encontrou. A França daqueles anos, que já passara pelos banhos de sangue da Revolução e de Napoleão, tinha de novo um rei e estava longe de ser democrática.
Tocqueville vislumbrou, na força das comunidades e na participação dos cidadãos na vida pública, o regime político que deveria servir de modelo para o mundo. É verdade que os americanos jamais tiveram uma democracia perfeita (se é que isso existe), têm sérios problemas raciais e de desigualdade e tropeçaram feio com Trump. Mas por aqui, sempre à espera do retorno de algum d. Sebastião para nos salvar, somos inegavelmente mais vulneráveis a aventuras autoritárias.
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