Aclimatar o gótico na região do nordeste brasileiro foi um processo construído ao longo dos anos por Cristhiano Aguiar. O universo do terror sempre atraiu sua atenção, tendo ele uma queda por clássicos do gênero no Brasil, como Álvares de Azevedo, bastião do terror com seu Noite na Taverna, mas também os estrangeiros, como Mary Shelley e Robert Louis Stevenson. Vísceras, moribundos, aparições, putrefação, são alguns dos elementos que o autor utiliza em O Gótico Nordestino (Alfaguara), que acaba de entrar em reimpressão após o lançamento. Suas narrativas curtas trafegam entre o surreal, o gótico e o folclórico, sem pecar por excessos nos elementos do terror. Aguiar aposta na versatilidade da fantasia, com diálogos bem construídos e nem um banho de sangue a mais.
“Está acontecendo um boom no gênero insólito no Brasil, principalmente na cena independente, onde isso já estava forte há algum tempo, mas tive a ideia de começar os contos quando vi que havia um espaço, uma brecha, no meio editorial para o gênero, que ainda é novidade para os catálogos das editoras”, contou Aguiar ao Aliás, em entrevista por telefone. Há uma década, o escritor foi escolhido pela revista Granta um dos principais jovens autores brasileiros e, desde então, trabalha como ficcionista e professor universitário no Mackenzie.
A História Concisa da Destruição era o nome inicial de O Gótico Nordestino, um insight nascido a partir do conto Firestarter, o primeiro escrito, que traz um incendiário Brasil assolado por queimadas do desmatamento. A distopia reflete o cenário político e ambiental do País, é um dos caminhos evocados na seleta de Aguiar, que publicou junto com Anda-Luz e As Onças em um plaquete virtual da editora CEPE, em 2020, Trilogia da Febre, enquanto os outros contos vinham a galope. Da veia surrealista em As Onças, segundo conto da seleta, ao altar soturno construído em A Noiva, o autor explora nuances do terror em cada narrativa, ora investe em imagens clássicas da literatura de cordel, como o cangaço retratado em Anda-Luz, ora se rende ao arquétipo do conde Drácula de Bram Stoker, como no conto O Vampiro, que fecha o volume.
Escrito durante a pandemia, O Gótico Nordestino captura a atmosfera caótica em que vida e morte se fundiram em proporções bíblicas. Em Lázaro, Aguiar dá vida a uma avó que renasce no necrotério do hospital. O protagonista recebe um telefonema, “Sim, pode vir pegar, o corpo da sua avó acordou”, e a partir daí se dá uma nova etapa da vida para esses privilegiados com devidas aspas, os moribundos. “Famílias deixavam os seus lázaros em abrigos construídos às pressas pelo governo, a maioria perto dos cemitérios”, escreve o autor fazendo referência direta à parábola bíblica encontrada no evangelho de São Lucas.
Nascido de confrontos do autor com a vida, os contos góticos começaram a ser esboçados em meados de 2019 como uma resposta ao caos instituído pelo governo federal. Com inúmeros descasos com a educação, o meio-ambiente e a cultura, a literatura de Aguiar se potencializou no ano seguinte, com a chegada da pandemia de covid-19. “Em 2020 eu vivia uma crise, me perguntava que tipo de escritor queria ser". Voltou aos clássicos, como Poe e Shelly, e escreveu aleatoriamente sem intenção de que seu trabalho ia dar livro. Surpreso após a publicação, Aguiar saiu de uma espécie de cápsula do tempo, onde a atmosfera pestilenta da covid parece se dissipar conforme o livro se espalha por seus leitores. Dando aulas online há dois anos, agora ele vê os frutos de seu trabalho, presencialmente, enquanto pensa na próxima história.
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