É costume reduzir a ecologia – campo que contempla os estudos sobre a mudança climática no planeta Terra, questão central do nosso tempo – à relação entre humanos, animais, plantas e sistemas climáticos. Dois livros recém-lançados agora no Brasil vêm para reinventar esse pensamento sobre o mundo natural e nosso impacto sobre ele: O Pensamento Ecológico, de Timothy Morton, e Maneiras de Ser, de James Bridle.
Britânico radicado nos Estados Unidos, Morton é considerado um dos filósofos mais influentes da atualidade, principalmente quando o assunto é a relação dos humanos com o mundo não humano.
Publicado pela Quina, O Pensamento Ecológico, primeiro livro do autor traduzido no país e um marco na sua obra, propõe uma ecologia progressista, detida em uma dimensão macro da nossa concepção de meio ambiente – e não pequena, como concebemos o cuidado com o mundo natural durante muito tempo, restringindo-o a uma ingênua atuação individual (lugares-comuns como fazer xixi no banho, fechar torneiras, não atirar lixo na natureza etc.). “Pensar grande não contraria o esmero com detalhes minuciosos”, escreve Morton. Por outro lado, “significa perceber que sempre há mais do que nosso ponto de vista”. Muito já foi dito e reiterado sobre a crise ambiental e como mitigar e nos defender contra seus piores efeitos.
Mas nada parece ainda ser o bastante para nos convencer a mudar efetivamente nossa atuação, ou mesmo nossa compreensão, sobre o mundo que habitamos. Para muita gente, já não há mais o que fazer. Morton afirma que existe certo alívio perturbador nessa aceitação de uma catástrofe climática irreversível, o que nos exime de nos preocupar com o futuro. Afinal, se o fim do mundo está próximo, se a humanidade será extinta a longo prazo e em breve estaremos todos mortos, por que nos preocupar com a ecologia? Em outras palavras, aceitar a catástrofe climática significa recusar nosso próprio futuro.
Nosso senso de responsabilidade, portanto, deve ser ampliado: somos sempre responsáveis pelo “outro” – seja este uma pessoa, uma planta, um animal, uma rocha ou, para Morton, até mesmo uma máquina. “Ficar nos preocupando se somos zeladores, tiranos ou pilotos da Nave Espacial Terra é pura fachada. Se tivermos um futuro é porque teremos decidido cuidar de todos os seres sencientes”, explica.
O Pensamento Ecológico está repleto de referências às artes e à cultura pop, e é isso que faz com que os novos conceitos propostos pelo autor – como “malha”, “estranho estrangeiro” e “hiperobjetos” – ganhem concretude. Blade Runner, The Cure e Percy Shelley vêm à tona para falar, em termos filosóficos, de consciência ambiental. Dessa forma, o discurso de Morton se torna mais acessível mesmo para quem não está acostumado à leitura de filosofia, e talvez esteja aí a maior força do livro.
Também britânico, James Bridle já teve outro ensaio publicado no Brasil – A Nova Idade das Trevas, também pela Todavia. Maneiras de Ser, cujo subtítulo revelador é “Animais, Plantas, Máquinas: a Busca por uma Inteligência Planetária”, confirma o autor como um dos escritores mais atentos à reimaginação do futuro e de mundos possíveis.
Para o autor, é preciso mudar nossa compreensão sobre a inteligência, o que ela é e quem a possui, de modo a considerar a existência de uma diversidade de formas de pensá-la e fazê-la, além de desafiar a noção de que a inteligência humana é única ou mesmo especial em qualquer sentido. É a isso que Bridle se dedica em quase quinhentas páginas de análise e reflexão sobre Inteligência Artificial, sistemas de comunicação vegetal, linguagem dos animais e diferentes escalas espaciais e temporais para a compreensão do “mundo mais que humano”.
Categórico, Bridle nos mostra que existem vários tipos de inteligência, e não aquela que é definida apenas pela experiência humana. Trata-se de algo mais que humano desde o princípio. Ao longo da obra, são apresentados dezenas de exemplos para o reconhecimento das inteligências não humanas, desde relatos sobre o comportamento de primatas e lobos até de fungos e florestas inteiras, contemplando ainda a inteligência das máquinas e relacionando-as, todas, ao nosso próprio modo de compreendê-las.
A infraestrutura reprodutiva inteligente de um tipo de bolor, os direitos civis de um elefante, as condutas estratégicas dos polvos e a proposição de máquinas mais ecológicas, por exemplo, nos levam a refletir sobre o lugar da nossa própria individualidade e como temos compreendido nossa atuação no planeta até agora. Dominação e controle, que pautam intensamente a relação entre humanos e o “mundo não humano”, têm de dar lugar a atenção e solidariedade.
Tudo está interligado, e a hiperconectividade, com a qual já convivemos bastante na última década e uma das bases dos pensamentos de Morton e Bridle, deixa isso claro. É difícil separar hoje público e privado, local e global. É difícil encontrar um centro para a questão ambiental – e, para os autores, talvez isso não seja nem mesmo desejável. Para o pensamento ecológico, é necessário enxergar o todo e, sobretudo, o que liga uma coisa à outra.
Não podemos permitir que a luta pelo ambiente se torne um subterfúgio para formas de opressão
A tendência humana de nos separar do mundo natural, portanto, tem de ser revogada – não existe “nós” e “eles”. Para Morton, o foco do pensamento ecológico não é a “natureza” ou os “animais” – definições também desconstruídas ao longo de sua obra. Temos de ver o mundo de um modo mais vasto e por isso mesmo mais insubstancial. “Tudo está emaranhado”, parece complementar Bridle, “e não existem hierarquias: nada ‘superior’ ou ‘inferior’, ninguém mais nem menos evoluído.” Somos levados a compreender, durante as leituras, que os humanos não estão no centro do universo.
Wislawa Szymborska, em um poema cujo título é O Silêncio das Plantas, escreveu sobre sua relação com elas: “Essa mesma estrela nos mantém sob seu alcance./ Projetamos sombras nas bases das mesmas leis./ Procuramos saber algo, cada qual ao seu jeito,/ e somos parecidos também no que não sabemos”. Reconhecer nos outros seres o que é incompreensível, também segundo Bridle, é uma forma legítima de compartilhar com eles este mundo. Na obra de Morton, as referências poéticas são inúmeras. “Ler poesia”, conclui o autor, “não vai salvar o planeta. Mas a arte nos permite vislumbrar seres que existem para além ou entre nossas categorias normais.”
Há outros pontos em comum entre as obras que merecem ser destacados. O primeiro é a adoção de ideias da teoria queer para a compreensão do mundo fora dos padrões binários, que nos ajuda a ampliar o conhecimento sobre outras formas de existência e de nomeação. Como Bridle deixa claro, “nossa maneira de falar com o mundo e a respeito dele como um todo também importa”.
O segundo é uma crítica ao capitalismo e às diferentes formas de exploração, que têm se apropriado da questão ambiental para atender aos interesses individuais de um grupo dominante. Escreve Morton: “ficarei feliz se o efeito da crise climática não for um capitalismo repaginado, mas sim um longo e árduo olhar sobre por que estamos vivos e o que queremos fazer a respeito disso, juntos”. Bridle parece concordar: “Nunca podemos permitir que a luta pelo meio ambiente se torne um subterfúgio para outras formas de opressão”.
Ao fim das leituras, a conclusão é clara: o que pode salvar o planeta é ciência sólida e política progressista. “A consciência ambiental tem algo intrinsecamente incômodo, como se estivéssemos vendo algo que não deveríamos ver, como se percebêssemos que estamos presos em alguma coisa”, explica o autor de O Pensamento Ecológico.
É hora de esse pensamento desagradável, então, que requer de nós reconhecer nossa própria falta de conhecimento, invadir a vida de todos nós e, com mais força, pautar as tomadas de decisão das autoridades políticas. Estas obras confirmam um chamado urgente e humilde para a nossa atenção: o futuro deste planeta, se quisermos ter um futuro no qual sobrevivamos e prosperemos, tem de ser pensado em conjunto com os outros seres que o habitam, aqui e agora.
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