Em 1970, em plena era das viagens místicas para Katmandu e da explosão da cultura hippie, um livro publicado pela Civilização Brasileira fez a juventude brasileira redescobrir a obra do alemão Hermann Hesse (1877-1962), Nobel de literatura de 1946: Knulp. Tão simples como o título era o protagonista do livro, um andarilho em busca de autoconhecimento que perambula de cidade em cidade reencontrando velhos amigos, antes de decidir voltar à cidade natal numa jornada interior que é ao mesmo tempo filosófica e religiosa. Força de hábito: os pais de Hesse foram missionários cristãos na Índia. O filho encantou-se pelos estudos eclesiásticos, até ser seduzido pela literatura.
Muitos dos seus livros tratam de homens que, como ele, se dividiram entre o risco da liberdade e o conforto burguês, optando, via de regra, pela estrada, pelo desconhecido, de Knulp a Demian, passando pelo monge de Narciso e Goldmund, que sai pelo mundo e só retorna ao mosteiro para reencontrar o antigo companheiro quando está à beira da morte. Knulp volta agora em plena era do medo, da pandemia do coronavírus, numa nova edição da editora Todavia, após ficar anos fora de catálogo. Se foi um guia da contracultura há meio século, hoje pode funcionar como uma advertência sobre os rumos do mundo contemporâneo, em que o mercado dita as regras e expurga os rebeldes que ousam se contrapor a uma lógica desumana.
Escrito em 1915, Knulp antecede em quatro anos um outro livro mais conhecido de Hesse, o já citado Demian (1919), também obra de juventude do escritor, que revela nítida influência do pensamento de Nietzsche – e, em igual proporção, da psicanálise, por refletir a imagem e os problemas de seu autor, que tomava, então, consciência do papel que as instituições (o Estado, a família) exercem sobre o indivíduo, privando-o da liberdade. A diferença é que o protagonista Emil, filho de pais piedosos, começa a defender, por demasiado crédito em Demian, que somos todos caimitas, inclinados mais para o mal que para o bem. Já o rebelde Knulp se esforça para não ser um fardo na vida dos outros, e sim uma bênção.
Dividido em três partes, ou episódios, Knulp é um livro que começa justamente num lugar onde a vida costuma terminar. O andarilho sai do hospital e encontra casualmente um velho amigo, Emilio Rothfuss, que lhe oferece abrigo em sua casa. Lá, Knulp, um homem atraente de cabelos negros, é assediado pela mulher de seu protetor, mas repele seus avanços. Parece mais interessado na empregada da vizinha. Sai com ela numa noite, dançam e, na manhã seguinte, o arisco jovem parte novamente sem rumo.
O segundo episódio é contado em primeira pessoa por um suposto amigo de longas caminhadas. Parece ser um alter ego de Hesse, um ‘wanderer’, como dizem os alemães, que errou pelas florestas da Alemanha com Knulp em tempos passados. Como sempre, o narrador é igualmente abandonado pelo protagonista, antecipando um recurso frequente da metaficção contemporânea – não sem razão Hesse virou uma referência para escritores da contracultura, quase sempre autores que usavam suas experiências pessoais em obras literárias à maneira de Kerouac (On the Road) ou John Fante (Pergunte ao Pó).
Finalmente, no terceiro e derradeiro episódio, Knulp reencontra um amigo de infância a quem ensinava Latim na escola, agora um respeitado médico, doutor Machold, que o leva para casa, lhe dá abrigo e um capote para se proteger do frio. Contra a vontade de Knulp, o médico busca um hospital para que o amigo seja curado da tuberculose. Veja como um século depois o drama se repete – há quem defenda a BCG (a vacina Bacillus Calmette-Guerin, usada para combater a tuberculose há 100 anos) contra o coronavírus.
Knulp desenvolve uma obsessão pelo retorno ao lar e pede ao amigo que use sua influência para que esse hospital seja em sua terra natal. O tísico expatriado, o filho pródigo bíblico, quer nela morrer. Antes, porém, topa com outro conhecido, um britador que o repreende por ter escolhido o destino de um pobre diabo quando poderia “ter sido coisa melhor”. O homem, simples e rude, Andres Schaibe, evoca o nome de Deus para tentar convencer Knulp a seguir por outro caminho. Este simplesmente esboça um inocente sorriso com indiferença pagã, continuando sua marcha sem rumo. “Para que fazer-te diferente do que és?”, pergunta Deus ao filho pródigo na floresta em que Knulp se refugia. A vida que ele julgava estéril e sem propósito ganha novo significado com esse reencontro.
Ao virar andarilho em nome do Pai, levando aos sedentários uma certa nostalgia da liberdade da vida nômade, tinha, enfim, cumprido sua missão. Knulp traz leveza a todos os que encontra, desprezando o conforto material, servindo como contraponto à vida doméstica avessa à liberdade. No entanto, Knulp está longe de ser classificado como um personagem unidimensional, como observaram vários críticos que refletiram sobre o personagem. Nada é leve em sua existência. Ele carrega o fardo da responsabilidade com seus semelhantes.
No segundo episódio, por exemplo, sem querer ofender o outro andarilho que vaga com ele pelas florestas, diz que nunca se casou por não acreditar na instituição (Hesse foi por três vezes casado, mas preferia ficar só na natureza). Dois seres, justifica, podem até se encontrar, dividir certa intimidade, mas suas almas, compara Hesse, são como flores de diferentes espécies que podem até dividir o mesmo terreno, mas preservando a autonomia de suas raízes. Só o vento é livre e vai para onde quer. As flores ficam presas ao chão. Assim também são os seres.
Knulp é o vento, que sopra solitário e desaparece na estrada. Seu isolamento é próprio da natureza daqueles seres inadaptados, que foram feitos para viver à margem da sociedade. É certo que Hesse escreveu o livro em meio a uma crise pessoal. Seu casamento ruía. O escritor, na época, era uma figura impopular na Alemanha. Pacifista em meio a uma guerra sangrenta, teve de se isolar, trocar o centro urbano pela solidão do campo, longe de seus pares intelectuais. Em seu confinamento encontrou uma resposta que o guiaria para a arte (ele era ótimo aquarelista, como prova a ilustração desta página) e o mundo literário.
Esse conflito se traduz de modo mais claro na segunda parte (ou episódio) do livro, quando Knulp reencontra o outro andarilho. São duas experiências nômades que não convergem. Knulp tem a música e a cultura como refúgio. Faz delas ferramentas para conquistar os outros.
No episódio final, ainda que um quarentão sem ilusões, ainda conserva um sorriso generoso diante de um mundo que se esfacela no isolamento compulsório. Não deixe de ler Knulp. E, naturalmente, as obras da maturidade de Hermann Hesse, de O Lobo da Estepe a O Jogo das Contas de Vidro, passando por Sidarta. É uma ótima companhia para os tempos sombrios em que se busca uma saída. Ou, ao menos, um interlocutor.
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