Entenda o movimento que leva artistas negros a ocupar os principais museus do Brasil

Em mostra com foco na pluralidade, museu do Inhotim reúne 34 artistas que olham o Brasil do futuro, o presente e o ancestral

PUBLICIDADE

Foto do author Matheus Lopes Quirino
Atualização:

Um dos mais jovens artistas a expor no Teatro Municipal de São Paulo, na exposição que celebrou o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o pintor Mateus Maia, conhecido como O Bastardo, fez uma releitura da famosa foto dos organizadores do evento. No lugar de Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, ele retratou Jaider Esbell, Gilberto Gil, Lázaro Ramos e grande elenco (ele, inclusive).

PUBLICIDADE

Aos 24 anos, o fluminense desponta no mercado das artes visuais como um talento admirado pelos pares e querido por suas referências, entre elas o ganhador do prêmio Pipa de 2018, Arjan Martins, de 62 anos. A trajetória dos dois se conecta em vários momentos. Ambos foram alunos da tradicional Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, tendo Martins sido o primeiro aluno negro da instituição.

Naturais de Mesquita, na Baixada Fluminense, eles trabalharam como serventes de pedreiro e garçons, entre outros ofícios pesados, mas a vontade sempre foi contar a história do País pela ótica do povo negro. Arjan fala em suas pinturas da diáspora do povo africano, do colonialismo – e, em uma de suas mais famosas obras, ressignificou As Três Graças, do pintor flamengo Pieter Paul Rubens (1577-1640).

O pintor O Bastardo um dos destaques da Mostra Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, no Inhotim Foto: Joao Sal

Já O Bastardo, que ficou conhecido pela série Pretos de Griffe, sua primeira individual na Casa Triângulo em 2021, lembra de ter pisado pela primeira vez na zona sul do Rio de Janeiro aos 18 anos, quando a mãe, recepcionista do Parque Lage, conseguiu para o filho uma bolsa de estudos de alguns meses na instituição. Lá, ele teve contato com a pintura, da qual no início não gostava, e hoje mostra sua força em pinceladas enérgicas: um caminho de cores que emanam luminosidade azul-cobalto e néon.

O brilho das madeixas das meninas da quebrada e os casacos da Nike tornaram-se suas marcas. “O retrato do Abdias do Nascimento (que está no Instituto Inhotim) foi o primeiro da série Assinatura dos Esquecidos, em que trago essa importância de resgatar ícones da história e da intelectualidade do povo preto para a própria comunidade”, diz ele, que começou no grafite, pois era uma das únicas formas de arte em que via propriedade. Hoje, O Bastardo expõe pela segunda vez (a primeira foi na Pina) na exposição Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, no Inhotim.

Publicidade

Nos últimos anos, museus de todo o Brasil têm buscado um diálogo com a descolonização. São exposições sobre vida e obra de artistas à margem do sistema tradicional de arte do País

Nos últimos anos, museus de todo o Brasil têm buscado um diálogo com a descolonização. São exposições sobre vida e obra de artistas à margem do sistema tradicional de arte do País – que historicamente privilegiou as fine arts das escolas europeias, desde a época em que a aristocracia portuguesa trouxe ao Brasil pintores franceses para retratar a vida local.

Foram séculos sob o prisma caucasiano, que ditava o belo seguindo padrões do naturalismo, a arquitetura art déco, entre outros estilos importados do Velho Continente para ganhar as cores quentes daqui. Aos poucos, essa hegemonia começou a ser questionada, tanto na academia quanto no métier das artes, e ganhou amplo debate público nos últimos anos.

Larissa de Souza, que tem suas pinturas na mostra Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, no Inhotim Foto: Denise Andrade/Estadão

Como na exposição Enciclopédia Negra, aberta no primeiro semestre de 2021, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, houve uma quebra de paradigma na história da instituição – com 36 artistas contemporâneos que retrataram personalidades da história do movimento negro.

Há alguns anos, tanto a Pinacoteca quanto outros museus têm investido na compra de obras de artistas negros, indígenas e não brancos. Com a questão identitária como pauta candente, os acervos são oxigenados por novas perspectivas e, aos poucos, vê-se a mudança concreta. No Inhotim, por exemplo, cerca de metade das obras da instituição é de artistas não brancos.

A Pinacoteca, que no próximo ano abre um novo edifício, o Pina Contemporânea, promete espaço para artistas desse segmento, como Antonio Obá, que retratou o avô em Chico Rei, uma das obras do livro Enciclopédia Negra, que deu origem à mostra.

Publicidade

Obra de Antônio Obá 'Nos portões do Paraíso', que pertence ao Acervo da Pinacoteca de São Paulo Foto: Pinacoteca

Uma imersão visual no livro homônimo organizado por Flávio Gomes, Lilia Schwarcz e Jaime Lauriano, Enciclopédia Negra mostrava as 103 obras do volume ao público, com destaque para artistas da nova geração, como Kika Carvalho, Elian Almeida, Mônica Ventura (que ilustrou a capa do livro com um retrato de Joaquina Muniz, escrava liberta da Salvador do século 19), entre outros.

O retrato de Joaquina, à época, tornou-se símbolo da exposição. Em posição de destaque, por figurar em uma das instituições de arte mais tradicionais do Brasil, ao mesmo tempo que aparecia em livrarias, a jovem artista teve seu traço espalhado pelos quatro cantos do País.

O marinheiro Marcílio Dias, retratado por Dalton Paula, esteve presente também no livro 'Enciclopédia Negra' -- Foto: Alex Silva/Estadão

Do grupo da Enciclopédia Negra, o ex-bombeiro Dalton Paula, que retratou o líder da Revolta de Viena no livro editado pela Companhia das Letras, abriu no primeiro semestre deste ano uma individual no Museu de Arte de São Paulo, o Masp. Em Retratos Brasileiros, o brasiliense mostrou referências da cultura afro na sociedade, de líderes espirituais a literatos.

Foram 30 telas, 25 inéditas, tendo a primeira nascido justamente de uma encomenda da antropóloga Lilia Schwarcz, para o livro Lima Barreto: Triste Visionário, biografia do escritor abolicionista. O retrato de Lima pintado por Dalton tornou-se conhecido à época da Festa Literária Internacional de Paraty de 2017, dando visibilidade ao artista que começou tardiamente, há mais de uma década, vendendo seus retratos por um valor singelo e hoje é um dos principais artistas brasileiros, com obras adquiridas por instituições estrangeiras de peso, como o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA.

O pintor Dalton Paula, que expôs no Museu de Arte de São Paulo no primeiro semestre de 2022 Foto: Alex Silva/Estadão

Ilustrar a capa de um livro ou ser figura em destaque em museus se torna uma espécie de chancela, pois a imagem em evidência é, para alguns artistas, o pagamento tardio de uma dívida histórica, algo perpetuado na sociedade, a exclusão do povo negro.

Publicidade

Se há um século a Semana de Arte Moderna de 1922 rompeu com as vanguardas europeias para criar uma arte brasileira, sob o signo da Antropofagia, hoje se vê o nascimento de uma nova vanguarda por intermédio de artistas contemporâneos negros.

Na exposição Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, aberta em novembro na galeria Lago do parque do Inhotim, a curadora Julieta González ressaltou a importância da nova geração de artistas negros que expõem numa coletiva um diálogo com a obra do escritor, pintor e liderança do movimento negro mineiro Abdias do Nascimento, homenageado com uma sala em Inhotim.

A exposição Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, aberta em novembro na galeria Lago do parque do Inhotim Foto: ícaro Moreno

Intelectual que lutou contra o mito da democracia racial, ele se tornou uma referência para os que incorporam em sua pintura o poder da luta antirracista. A mostra do Inhotim é uma oportunidade de conhecer o lado ativista do dramaturgo e pintor, que ganhou este ano retrospectiva no Masp.

São 34 artistas negros de diferentes gerações que mostram seus trabalhos, de pintura a fotografia, obras interligadas pelo legado de Nascimento. Como nas telas de Larissa de Souza, com suas figuras femininas que resgatam elementos ancestrais, as obras de Kika Carvalho trazem uma paleta de azuis e brancos que fazem referência a elementos do candomblé – uma das pinturas mostra um grupo de pessoas prestando culto a Iemanjá numa praia.

Para Deri Andrade, curador-assistente da exposição, a reunião dos artistas é uma forma de dar continuidade à luta de Abdias: combater preconceitos. “A gente tem pensado essa produção (dos artistas negros contemporâneos) como vanguardista, pois há um interesse em resgatar figuras históricas a partir da subversão, tendo na pintura e, principalmente, no retrato o instrumento principal para solidificar essa nova vanguarda artística.”

Publicidade

A gente tem pensado essa produção (dos artistas negros contemporâneos) como vanguardista, pois há um interesse em resgatar figuras históricas a partir da subversão, tendo na pintura e, principalmente, no retrato o instrumento principal para solidificar essa nova vanguarda artística

Deri Andrade, curador-assistente

Um dia antes da abertura da mostra no Inhotim, o pintor Maxwell Alexandre, que está na exposição, criticou a equipe curatorial e pediu a retirada de sua obra por se sentir “constrangido em participar de exposições temáticas sobre o negro”, uma vez que Inhotim colocou em outra parte da mostra, na galeria Fonte, obras de três artistas brancos. A atitude do pintor foi rebatida pela instituição, que afirmou que houve comunicação com Maxwell em agosto, época em que ele recebeu o convite para participar da mostra e autorizou a exposição de sua obra, adquirida por Inhotim para seu acervo permanente. A obra não foi retirada.

Já para a pintora Panmela Castro, que integra o grupo, o espaço é oportuno por contemplar visões de vários artistas. “Quantas vezes a gente viu pessoas brancas que sempre retratavam sobre o outro; o preto, o índio, só que esse outro somos nós. Hoje, não se precisa mais de um outro com mais poder para falar por nós, agora podemos falar de nossa própria vida”, observa.

“É importante ressaltar que o título da exposição faz uma referência direta ao jornal O Quilombo (editado por Abdias), que funcionou como um periódico de vanguarda da imprensa negra no Brasil por trazer uma série de questões avançadas para a época, como a da luta antirracista a colunas e seções que davam espaço a pensadores e artistas negros”, explicou Deri Andrade, à frente da organização da mostra, feita em parceria com o acervo do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).

Abdias do Nascimento retratado por O Bastardo na mostra Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, aberta em novembro na galeria Lago do parque do Inhotim Foto: Galeria Triângulo

A diversidade de temas, interesses e linhas de pesquisa é fator que contribui para o conjunto da exposição, que mostra um diálogo de artistas estreantes com veteranos, como O Bastardo e Arjan. “Acho que um portal se abriu para uma geração que se aproxima dessa cena da arte contemporânea. Isso é saudável para o circuito porque dá uma arejada nessa questão de pertencimento, reparação histórica, inclusão. Esses novos protagonistas começam a desvelar uma nova cena”, contou Arjan, durante a abertura da coletiva em Inhotim.

“Quando percebemos grandes galeristas brasileiros, e do exterior, com interesse nessa arte, eu entendo que aí começa a se descentralizar a perspectiva da história oficial do Brasil.” Arjan cita Giulio Carlo Argan (1909-1992), crítico italiano que ajudou a promover a carreira internacional do pintor baiano negro Rubem Valentim. Para ele, a partir desse olhar decolonial, é possível reorientar práticas de trabalho e pesquisas para solidificar obras. “Já estou vendo hoje, por exemplo, minhas obras em livros escolares.”

Publicidade

O pintor Arjan Martins, que está na mostra Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, no Inhotim Foto: Iara Morselli/Estadão

É o primeiro momento em que Inhotim apresenta sua coleção com obras de artistas negros. “Muito do que vemos nessa produção faz referência à força de questões afrorreligiosas, como na pintura da Kika (sem título, coleção Inhotim 2022); esse tema circula de maneira diversa, como na obra de Moisés Patrício, que pinta sua mão com elementos do culto aos orixás”, esclarece o curador-assistente.

E Arjan completa: “Nessa reflexão sobre a questão brasileira, o período colonial, os novos artistas tentam trazer luzes para tentar cristalizar melhor esse processo colonial que outrora não era do interesse do circuito de arte. E isso transborda de valor na nossa arte, a partir do momento em que a gente passou a olhar para a nossa história, não só o eurocentrismo que guiava o circuito”.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.