No último mês, a norte-americana Lauren Elkin, autora do recém-lançado Flâneuse, foi visitar seus pais em Long Island. Quando retornou a Londres, onde vive, literalmente chorou – não apenas porque estava triste por deixar sua família, “mas também porque estava tão aliviada de estar de volta a uma cidade”. Para ela, existe uma independência e uma autossuficiência que são possibilitadas pelo espaço urbano.
No livro Elkin percorre cidades como Paris, Tóquio, Veneza e Nova York, além de Londres, para entender como se deu a experiência das mulheres na cidade nos últimos séculos.
São textos que mesclam crítica literária e ensaios pessoais, atravessados pelas figuras de autoras como Virginia Woolf, Martha Gellhorn e George Sand. “O argumento contra a flâneuse às vezes se baseia na questão da visibilidade”, escreve Elkin antes de afirmar: “Gostaríamos de ser invisíveis como um homem.
Não somos nós que nos fazemos visíveis, no sentido pretendido por Sante, no que se refere ao alvoroço que uma mulher sozinha em público pode causar; é sob o olhar do flâneur que a mulher que ingressaria em suas fileiras se torna visível demais para passar despercebida. Mas, se nossa presença é tão chamativa, por que fomos excluídas da história das cidades? Cabe a nós devolver nossa presença ao quadro, de todas as maneiras possíveis.”Na entrevista a seguir, Lauren Elkin fala sobre a gênese de Flâneuse, a escolha das escritoras que entraram no livro e como a internet tem ajudado as mulheres a se organizar, notadamente na repercussão do caso Roe vs. Wade.
Como você se apaixonou pelas cidades e como surgiu a ideia de escrever Flâneuse?
No mês passado, voltei à minha cidade natal, em Long Island, para visitar meus pais, que ainda vivem na casa onde cresci e, quando retornei a Londres, há alguns dias, eu literalmente chorei – não apenas porque estava triste por deixar minha família, mas também porque estava tão aliviada de estar de volta a uma cidade! Senti toda a alegria renovada de poder ir e vir, mais ou menos como eu quero (minha vida está mais limitada agora do que quando escrevi Flâneuse, porque tenho um filho pequeno), de ser capaz de sair pela porta e ir à loja comprar tomates-cereja se precisar, subir num ônibus para chegar mais rápido ao parque, sentir aquela alegria de ouvir uma música que eu amo no fone de ouvido enquanto caminho da parada de ônibus até o parque para encontrar meu companheiro e meu filho. Há um tipo de independência e autossuficiência que a cidade torna possível, que é completamente ausente em locais onde você precisa dirigir a qualquer lugar. Agora que estou chegando na meia-idade, tenho vários amigos que viviam na cidade comigo e se mudaram para os subúrbios. Fico feliz por eles, se isso dá o que precisam, e é claro que os subúrbios oferecem muito mais espaço, mas eu odiaria ficar dependente do carro de novo.
Flâneuse surgiu quando eu estava na universidade – a primeira vez que vivi numa cidade por minha conta. Estava descobrindo as alegrias de andar sem rumo em um ambiente urbano, o que se sobrepunha à minha própria independência burguesa, e acho que na época aquelas duas coisas se tornaram inextricavelmente ligadas. Me deparei com o termo flâneur em algum ponto dos meus estudos, e pensei – é isso! Há um nome para o que eu amo fazer. Então transformei o termo masculino em feminino – flaneuse – e tentei escrever minha dissertação final em cima desse conceito. Fui rapidamente repelida pela escrita crítica sobre a flâneuse, que argumentava (corretamente) que, porque as mulheres não tiveram historicamente a mesma liberdade de vagar pela cidade que homens, a flâneuse não podia existir. Então deixei o assunto de lado e escrevi minha dissertação sobre outro tipo de mulher em público – a prostituta.
Muitos anos após finalizar meu doutorado, me perguntei o que eu queria escrever, e a flâneuse surgiu passeando de volta. Dessa vez eu já tinha a capacidade de argumentar criticamente com os críticos que disseram que não poderia haver flâneuse – e devo dizer que, bem, sempre houve mulheres nas cidades, há todas essas narrativas e filmes e trabalhos de arte sobre andar nas cidades, então vamos começar do zero e ver quem a flâneuse pode ser por conta própria.
Como você concebeu a estrutura do livro – todas as idas e vindas ao redor de Paris e essa “flânerie” do texto?
Com muita tentativa e erro! O livro inicialmente seria um tipo muito mais convencional de não-ficção, com uma introdução expondo meu argumento e capítulos com estudos de caso provando a tese. Alguns elementos disso ainda estão lá. Mas o capítulo que escrevi sobre Jean Rhys, que foi uma das amostras enviadas aos editores com a proposta de publicação, era um misto de crítica sobre a flâneuse, Rhys e escrita pessoal sobre minhas próprias experiências como uma jovem em Paris, lendo Rhys, e depois como uma professora universitária em Paris ensinando Rhys. A editora que comprou o livro, Parisa Ebrahimi, me encorajou a fazer mais dessa escrita híbrida ao longo do livro. O arco narrativo se tornou uma questão de organizar a estrutura ao redor das cidades onde eu passei alguma quantidade significativa de tempo, na ordem em que eu tinha vivido. Então tive que estreitar meu elenco para mulheres com que eu me identificava de alguma forma, ou ler minha própria vida, o que significava cortar material que eu tinha rascunhado sobre Nella Larsen, por exemplo, ou Murasaki Shikibu. Escolhi um tipo de conceito-guia para amarrar o material discrepante – obediência, para Veneza e Sophie Calle, ou ficar presa dentro da Tóquio da Sofia Coppola, ou revolução para George Sand e Paris – e assim se formaram os capítulos.
Você se aproxima de muitas autoras e suas muitas flâneries, como Virginia Woolf, Martha Gellhorn e George Sand. Como – e por quê – você selecionou essas autoras? Há alguma que não entrou no livro?
Na época, não sentia que tinha a capacidade imaginativa para ler minha vida em paralelo à de uma mulher da classe alta no Japão do século 11, ou uma mulher birracial na Nova York dos anos 1920. Acho que o fato de eu não ter tentado com mais afinco é uma das oportunidades perdidas do livro. Mas eu amei poder escrever criativamente sobre os filmes de Agnès Varda, ou o tempo de Martha Gellhorn em Madrid; a mistura de escrita pessoal e crítica me deu um tipo de liberdade formal que a escrita acadêmica, ou a não-ficção convencional, não teriam permitido.
Nos últimos anos, a internet possibilitou às mulheres ter uma voz sem precedentes no debate público: na Argentina e na Colômbia, por exemplo, o aborto foi legalizado após uma intensa articulação das mulheres on e offline. Como você lê essas primeiras décadas do século, e a atual hiperconectividade, com o futuro da flâneuse?
Pra mim, a figura da flanêuse sempre foi a de alguém que insiste no direito da mulher de tomar o espaço público, de transformar este mundo em que habitamos, que é feito por e para homens, em algo que sirva a ela e a suas necessidades. Acho que a esfera online oferece restrições semelhantes e possibilidades às mulheres de afirmar-se, exigir serem ouvidas, direcionar a conversa para suas necessidades. Acho que o ultraje com a reversão de Roe vs. Wade no meu país natal é um exemplo disso – as mulheres puderam se encontrar online para se organizar offline, mas também para compartilhar histórias e conversar a respeito das consequências horríveis causadas pelas leis estaduais conforme elas foram entrando em vigor. Saber como intervir no espaço da internet pode ter consequências no mundo real.
FLANÊUSE
LAUREN ELKIN
TRADUÇÃO DE DENISE BOTTMANN
360 PÁGINAS
R$ 74,90 (LIVRO)
R$ 49,90 (E-BOOK)
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