Livro detalha consequências do aquecimento global

O jornalista americano David Wallace-Wells prevê 200 milhões de refugiados e 150 milhões de mortos até 2050 em decorrência das mudanças climáticas

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Por Rodrigo Petronio

É muito pior do que você imagina. Com essa frase retumbante, David Wallace-Wells, jornalista de ciência da revista New York e do jornal The Guardian, especializado em aquecimento global, abre A Terra Inabitável: Uma História do Futuro, sua obra mais recente que a Companhia das Letras acaba de colocar no mercado brasileiro, em uma excelente tradução de Cássio de Arantes Leite. 

Cena do documentário 'Earth Under Water' faz projeção de Nova York inundada Foto: BBC

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Em primeiro lugar, vale frisar que o autor não se considera um ambientalista. Descendente de judeus emigrados, passou a vida inteira em ambiente urbano, longe da natureza. A pesquisa sobre o aquecimento global começou a lhe revelar cenários bem mais desastrosos do que as versões correntes. Anos de investigação sobre o assunto revelaram algumas verdades inconvenientes. A obra é fruto de entrevistas com dezenas de especialistas e do cotejo de centenas de artigos científicos.

O termo efeito estufa surgiu em 1850, quando John Tyndall e Eunice Foote analisaram o primeiro pico industrial da América. O físico estadunidense Roger Revelle (1909-1991) foi o primeiro a anunciar o aquecimento global. James Hansen foi o primeiro a testemunhar o aquecimento global diante do Congresso dos EUA (1988). E Wallace Smith Broecker, ainda hoje em atividade, herdou-o e foi um dos divulgaores deste debate cuja importância cresceu de modo avassalador nas últimas duas décadas. 

O que é o aquecimento global? É um fenômeno de alteração do clima global comprovado cientificamente. Decorre do aumento da emissão de gases estufas, tais como o carbono e o metano, de origem humana ou não humana, que deterioram a camada de ozônio da atmosfera, responsável por filtrar os raios ultravioleta do sol e regular os ciclos de calor e frio nas diversas partes do planeta. 

Cascatas

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O autor adverte: essa obra não é sobre a ciência do aquecimento global. É sobre as alterações radicais dos modos de vida no planeta que o ele deve produzir, a curto e médio prazos. O grande problema de disfunções sistêmicas da Terra é que elas são agentes multiplicadores. Não se trata apenas de uma elevação de temperatura, com problemas maiores ou menores. Trata-se de uma gama de fenômenos correlatos, alguns catastróficos. Para descrevê-las, Wallace-Wells usa a imagem da cascata.

Quais os principais efeitos-cascata? A obra prevê a migração de até 1 bilhão de pessoas até 2050, dentre os quais 200 milhões seriam refugiados. Nesse mesmo intervalo de tempo, cerca de 150 milhões de pessoas devem morrer, o equivalente a 25 Holocaustos. Um aquecimento de 11°C ou 12°C produziria a morte de metade da população do planeta. Um aumento de apenas 5°C, partes inteiras do globo ficariam incompatíveis com a vida humana. É pouco provável um aumento de 5°C a 6°C até 2100. Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) preveem cerca de 4°C de elevação global.

Mais de dez mil pessoas morrem por dia em decorrência da poluição. Esta também pode estar na origem de doenças mentais em crianças. O dobro da taxa atual de carbono na atmosfera geraria uma queda da capacidade cognitiva geral da ordem de 21%. Atualmente 98% das cidades estão acima do limiar de segurança da OMS. Metade das espécies animais estará extinta até 2100, segundo o eminente zoólogo E. O. Wilson, criador da sociobiologia, que prevê a hipótese da Meia-Terra habitável. Outros autores lidam com a hipótese da Terra-Nenhuma. 

O aumento da emissão dos gases estufa é cem vezes maior do que em qualquer outro momento da história do sapiens. Os mamíferos são máquinas térmicas. Resfriar-se e se aquecer são os modos de ser dos organismos. Essas alterações não impactam apenas a vida em termos orgânicos. Produzem efeitos-cascata políticos, sociais, culturais, tais como crises hídricas e alimentares, violência, genocídios, distúrbios psíquicos, entre outros. Combates e guerras voltam a surgir no horizonte em decorrência do clima. 

Há problemas demográficos decorrentes do aquecimento, pois o limite de produtividade econômica e agrícola obedece a uma capacidade de carga populacional (Paul Ehrlich). Alguns autores propõem surtos de afogamentos: culturas inteiras transformadas em relíquias submersas (Jeff Goodell). Prevê-se também uma mudança do cinturão global do trigo, escassez e deslocamento da produtividade de produtos primários.

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A elevação do nível dos oceanos deve extinguir boa parte das praias. Milhões de anos serão precisos para o quartzo e o feldspato formarem novas praias. Há também o efeito albedo (Peter Wadhams): quanto mais o gelo derrete nos polos, mais luz solar é absorvida, gerando mais efeito estufa. Também estamos na iminência da morte dos oceanos e do branqueamento dos corais. 

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A corrida pela desextinção de espécies (Torill Kornfeld) não será feita apenas em laboratórios e nem gerará novos Jurassic Parks. Ela decorrerá do aquecimento. O capitalismo fóssil, um dos geradores do aquecimento, pode reativar camadas profundas de um passado pré-humano e meta-humano. Viveremos a ressurreição de pestes consideradas extintas. Vestígios da gripe de 1918 foram descobertos congelados e podem ressurgir. A Terra abriga cerca de 1 milhão de tipos de vírus ainda não catalogados. Uma diferença de 1°C a 2°C pode produzir alteração das bactérias e desses vírus, ativando-os e produzindo megamortes. 

Cognição

Se há tantas evidências, por que não ocorre uma mudança de atitude em relação a esses fenômenos? A resposta é simples: o Homo sapiens possui diversos vieses cognitivos de justificação. São mecanismos de adaptação e sobrevivência que se cristalizaram ao longo da evolução. A imagem definidora seria a seguinte: o sapiens atual observa os predadores como se estivesse em uma redoma de vidro. Acredita que esteja protegido, porque atingiu o topo da cadeia alimentar. Crê que esteja imune à natureza, porque a domesticou. E essa é a pior de todas as ilusões. 

O grande problema é que o oposto de cada um desses vieses cognitivos não é a superação da ilusão e a compreensão dos fatos. É a adesão a um viés cognitivo diferente. Estamos sempre vendo a realidade pelos prismas de um caleidoscópio. Isso impossibilita a interrupção da cascata dos autoenganos. O ponto de vista define a metáfora ou a narrativa que cada um tende a ressaltar. Isso dificulta o trabalho da ciência em expor as evidências como evidências. Os fatos rapidamente se convertem em metáforas. As metáforas passam a trabalhar a serviço do amálgama de sensações de cada indivíduo, não da sobrevivência coletiva. E assim se perde a dimensão real do desastre para o qual estamos caminhando. 

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A era da solidão

Talvez estejamos adentrando não o Antropoceno, mas o Eremoceno: a Era da Solidão (Wilson). Humano e solidão talvez venham a se tornar sinônimos daqui pra frente. Há uma cosmológica teoria baseada no Princípio Antrópico: haveria uma necessidade e um plano do universo na geração da vida humana. Sempre se esquivou ou desprezou o Princípio Antrópico. Ora, aqui mesmo deveríamos buscar a origem do problema e talvez alguma solução. A excepcionalidade humana e a extinção progressiva de todas as formas de vida da Terra, cuja culminação talvez seja a extinção do sapiens, talvez não sejam um enigma ou uma charada a serem decifrados. 

Talvez sejam a consequência de uma concepção narcisista do universo. Essa concepção se baseia na narrativa antrópica segundo a qual a existência humana é uma fatalidade e uma necessidade no cosmos. Esse egocentrismo seria empoderador e, ao mesmo tempo, destrutivo. Como em uma fita de Möbius, a crença na inevitabilidade dos humanos talvez seja a grande produtora da crença na inextinguibilidade dos humanos. 

A crença de que os humanos são irreversivelmente essenciais ao universo produziu as condições de possibilidade da extinção desses mesmos humanos. Para falar com o filósofo italiano Giorgio Agamben, o problema da potência não é a potência. É a ignorância da fragilidade. Nos prismas desse caleidoscópio, entre a centralidade do humano excepcional e o humano que pode vir a desaparecer, podemos escolher qual narrativa nos compete. Mas não podemos escolher outro planeta. Por estranho que pareça, mais do que racional, esta escolha parece ser mesmo autoevidente.*RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR, FILÓSOFO, PROFESSOR TITULAR DA FAAP E DESENVOLVE PÓS-DOUTORADO NA PUC-SP

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