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Mestre da ficção climática, Kim Stanley Robinson imagina mundo pós-aquecimento global

'O capitalismo certamente tentaria lucrar até com o fim do mundo', diz o escritor ao 'Estado'

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As mudanças climáticas ocupam o noticiário, as pesquisas científicas e o debate público; a literatura não poderia passar incólume por uma questão de tamanha magnitude. Um dos principais ficcionistas a abordar o tema atualmente é o americano Kim Stanley Robinson. Recentemente Nova York 2140 (Planeta) tornou-se seu primeiro romance publicado no Brasil.

Projeção de Nova York permanentemente alagada graças ao aumento do nível do mar Foto: John Blackford

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Na obra, o derretimento das calotas polares provoca um aumento de 15 metros nos mares. Com isso, cidades costeiras ficaram parcialmente submersas. Sua inspiração mais clara é O Mundo Submerso (1962), de J.G. Ballard, um dos textos fundadores da tradição literária das catástrofes e que tem uma premissa semelhante. No entanto, Robinson se apoia em um evento real para embasar a reação das pessoas ao desastre: a crise financeira de 2008.

Em Nova York 2140, economia e ecologia se entrelaçam de modo intrincado. Os desastres ambientais são tratados como desdobramentos inevitáveis de práticas financeiras predatórias — a tragédia dos comuns, como os economistas chamam. Um dos protagonistas, Franklin Garr, é operador da bolsa de valores, e ganhou muito dinheiro ao encarar o aquecimento global como uma espécie de destruição criativa — da mesma maneira como o mundo financeiro tratou o colapso econômico em 2008.

“O nível do mar era objeto de apostas, claro. O nível, propriamente dito, servia como índice, e era possível investir nele ou usá‑lo como garantia; era possível escolher entre o longo e o curto prazos, mas tudo se reduzia em apostar”, explica Franklin a certa altura, com o cinismo de um especulador que lucra às custas do sofrimento alheio. O índice financeiro que ele inventou, intitulado IPPE, mensura a solidez dos investimentos imobiliários nas zonas entremarés, ou seja, prédios inundados. 

Quando um desses imóveis cai, quase matando outros personagens, Franklin recebe a notícia com preocupação pelos seus ativos: “De fato, o IPPE de Nova York caíra brevemente com a notícia do edifício que desmoronara em Chelsea, mas agora se estabilizara e até subia um pouco.” 

No aspecto formal, Nova York 2140 se divide em várias linhas narrativas que intercalam estilos distintos, replicando a polifonia de um romance panorâmico e a multiplicidade de vozes dissonantes de uma metrópole. Os trechos do ponto de vista de Franklin, por exemplo, estão em primeira pessoa, mas a maior parte do romance tem um narrador onisciente tradicional, que retrata o cotidiano de uma cooperativa instalada em um edifício submerso, sujeita às flutuações da maré — e do mercado imobiliário, quando se torna alvo de investidores gananciosos. 

Já em outra linha, o autor assume o estilo dramático de uma peça de teatro para retratar duas figuras, Mutt e Jeff, ex-operadores da bolsa arrependidos que tentam sabotar o mercado financeiro, dando início às outras tramas. A forma cai bem à caricata dupla, que soa como Vladimir e Estragon, os mendigos de Esperando Godot, de Samuel Beckett

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Há ainda trechos narrados por um cidadão nova-iorquino anônimo e de humor ácido, explicando diretamente ao leitor como a humanidade deixou as mudanças climáticas chegarem àquele ponto: “Publicaram artigos, gritaram e acenaram os braços, e alguns poucos escritores de ficção científica, sagazes e profundamente pensativos, escreveram relatos lúgubres sobre tal eventualidade, e o resto da civilização continuou queimando o planeta como se fosse a obra‑prima de um pirômano.” 

Apesar da catástrofe que tomou Nova York — as descrições dos barcos que transitam por entre os arranha-céus dessa “Super Veneza” são belíssimas —, a vida ainda prospera de alguma forma. “As pessoas continuam vivendo aqui, por pior que seja, e mais do que isso, as pessoas continuam vindo para cá, apesar da estupidez suicida disso, como se entrassem voluntariamente no inferno.” 

Outros autores já trataram do potencial fim do mundo: além de Ballard, Margaret Atwood (Oryx e Crake, O Ano do Dilúvio e MaddAddão), Cormac McCarthy (A Estrada) e Ian McEwan (Solar) são alguns dos nomes que usaram a literatura para meditar sobre as mudanças climáticas. Entretanto, a lucidez com que Robinson demonstra como o mundo segue em frente diante de crises, por piores que sejam, sugere que ele tenha consciência de que sua obra, até o fim do século, possa sair da prateleira da ficção especulativa para a da literatura realista.

Leia abaixo trechos da entrevista que Robinson concedeu ao Aliás por e-mail:

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Como foi o processo de pesquisa para compreender melhor o mercado de ações e torná-lo um elemento narrativo em seu livro?  Em 2011, fui a uma conferência chamada “Repensando o Capitalismo”, na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, e muitos palestrantes estudavam economia do ponto de vista sociológico e antropológico, e eram bem radicais. Alguns eram ex-operadores de bolsa em Nova York e foram para a academia para entender o que vinham fazendo. Esses foram meus principais consultores, mas também fiz muita pesquisa. Com o primeiro rascunho do romance, e o índice IPPE inventado, tive ajuda de amigos economistas para fazer tudo soar mais plausível. Inevitavelmente, meu livro é tanto sobre a crise de 2008 e nosso atual momento quanto é sobre o ano 2140. 

Por que mesclar estilos narrativos ao longo do livro? Eu quis sugerir a polifonia e a confusão mental que sinto quando estou em Nova York. Eu também estava interessado em tentar algo que Charles Dickens fez em A Casa Soturna, que é contar a maior parte do livro em terceira pessoa, mas ter um personagem falando em primeira pessoa. Eu não sabia qual seria o efeito, mas gostava da ideia. Então a situação beckettiana de Mutt e Jeff sugeria o narrador dramático, e o Cidadão emergiu ao longo da escrita, insistindo em tomar a palavra. Foi divertido descobrir que mesmo sendo californiano eu tinha um nova-iorquino interior. As citações sobre Nova York também foram surgindo aos poucos. A forma se fez enquanto eu escrevia o livro, e pareceu adequada.

Mesmo no cenário catastrófico de seu livro, a vida prospera e os operadores da bolsa ganham dinheiro sem se preocupar com a destruição ao seu redor. O fim do mundo é lucrativo? Talvez não. Ao longo do romance, Franklin aprende a agir diferentemente. Mas vamos colocar dessa maneira: o capitalismo certamente tentaria lucrar até com o fim do mundo. Haveria discursos sobre “destruição criativa” e outras justificativas, bem no momento da morte do capitalismo, tanto pelo surgimento de um pós-capitalismo quanto por um evento de extinção em massa que destrua a civilização. De qualquer forma, o capitalismo nunca reconhecerá que deveria ou poderia mudar, então vai continuar investindo capital onde haja a maior taxa de retorno, não importa qual seja a atividade sendo financiada. Se extrair carbono da atmosfera der um lucro de 5% enquanto cortar uma floresta trouxer 6%, o capitalismo vai bancar o lucro maior, independente das consequências para futuras gerações. A única regra é buscar o maior retorno possível — isso é o neoliberalismo. E qualquer coisa pode parecer lucrativa por um tempo, se você mentir sobre os verdadeiros custos de criar essa commodity; mas se os custos forem incluídos, pouco do que fazemos hoje seria verdadeiramente rentável, mesmo de um ponto de vista financeiro, sem falar do que é bom para nós. Não é uma situação sustentável, então vamos ter que mudar de uma forma ou de outra.

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Em outro de seus romances, ‘2312’, você retrata a humanidade espalhada pelo sistema solar. Você acredita que possamos colonizar outros planetas se seguirmos essa trajetória em termos ambientais? Não. Seria impossível. Meu livro 2312 é uma alegoria do nosso atual momento, com as colônias espaciais representando os ricos, e a Terra, os pobres. Não há diferença entre 2312 e hoje. Deixe-me explicar como acredito que a ficção científica funciona: é como um óculos 3D. As lentes mostram imagens diferentes e sua mente as mescla. Uma lente está mostrando um futuro potencial, enquanto a outra dá uma metáfora de como as coisas parecem agora. Quando você funde as imagens, o que aparece é a História, o tempo profundo. Isso é o que a ficção científica faz que outros tipos de literatura não podem. Então as pessoas que não conseguem mesclar essas imagens disparatadas ficam com dor de cabeça de tentar, e não gostam de ficção científica. Mas quem aprendeu a fazer tem um senso de ir e vir nos anos, com nossa era sendo apenas um momento em um longo espectro. Então em 2312, por exemplo, por um lado o sistema solar está lá e pode ser habitado por nós. Mas a outra lente do livro te dá um caminho para imaginar o mundo atual. Em ambos os aspectos, o livro diz que a Terra sempre será o centro da história humana e é nossa casa indispensável. Em Nova York 2140, a dupla ação de projeção e metáfora também ocorre — é tanto uma tentativa de imaginar a vida depois do aumento do nível do mar quanto de pensar nossa situação atual. É fácil alternar entre 2008 e 2140 enquanto você lê, mas isso deve ser parte do efeito.

Desde o começo da sua carreira, a ecologia foi um dos temas principais de sua obra. Você percebe alguma mudança na recepção de seus livros hoje em relação a quando você iniciou? Sim, certamente. Enquanto o aquecimento global se tornou um dos problemas centrais de nosso tempo, talvez o problema central, uma cruz na história humana e planetária, as pessoas precisam da ficção para pensar sobre ele. É uma necessidade cultural, um tipo de fome: nós sempre queremos e precisamos que a arte interprete a realidade para criar significados. Então agora nós precisamos disso que vem sendo chamado de “ficção climática”. Essa é uma das razões pelas quais eu venho dizendo que a ficção científica se tornou o realismo de nosso tempo. 

Como a literatura especulativa pode nos ajudar a enfrentar ameaças do futuro? Tem a ver com a apresentação de um cenário detalhado e personagens com os quais o leitor pode se identificar, o que significa experimentar as vidas de outras pessoas. Ficção científica nos dá o mesmo tipo de experiência mental que os romances sempre nos deram — eles nos permitem imaginar os outros, como um exercício mental prazeroso. A ficção científica acrescente o futuro, e frequentemente outras épocas e lugares. A literatura nos dá a viagem no tempo, teleporte e telepatia: nós vemos em detalhes como é a vida para pessoas em épocas e lugares diferentes, do Império Romano às luas de Júpiter, e vivemos o pensamento de outra pessoa, o que seria impossível de outra maneira. Essas são experiências ficcionais apenas, mas ainda são em certo sentido reais, porque estamos sempre vivendo no mundo pela forma que os nossos pensamentos se relacionam com os dados aos quais temos acesso. Então tudo na vida tem um aspecto ficcional, a história que nós contamos a nós mesmos e os sentidos que designamos às coisas, e a literatura é parte disso. A ficção científica não tenta prever o que realmente acontecerá, isso seria impossível, mas sim submergir o leitor em um cenário possível, para que haja essa troca de experiência. Isso é muito valioso para o que meu professor Fredric Jameson chamada de “mapeamento cognitivo” — orientar-se no mundo social, com a ideia de que posteriormente será mais fácil compreender quais ações tomar.

Você acredita que a colonização da Lua, de Marte ou de outros planetas pode ser uma boa opção para a sobrevivência humana a longo prazo? A sobrevivência da humanidade depende inteiramente de nós entrarmos em um equilíbrio sustentável com a biosfera na Terra. Nós evoluímos nesse planeta, coevoluímos com sua biosfera ao transformá-la desde que nos tornamos humanos. Graças a essa coevolução, o que inclui aspectos como gravidade e radiação, nem a Lua nem Marte serviriam como um abrigo de emergência. Nós podemos instalar estações de pesquisa nesses lugares como fazemos com a Antártida, e espero que o façamos, mas eles são mais perigosos do que a Antártida. Nós nunca poderíamos nos adaptar a eles, porque somos expressões da biosfera desse planeta e nos mesclamos a outras espécies em uma simbiose que não podemos levar a outros lugares. Marte pode ser uma recompensa para a humanidade, como eu mostro na minha trilogia marciana. Em outras palavras, se criarmos uma civilização equilibrada com a biosfera terrestre, podemos nos presentear com a terraformação de Marte. Isso pode levar 5 mil ou 50 mil anos, mas não há pressa, porque Marte nunca será crucial para a humanidade — é apenas uma espécie de grande projeto artístico, como construir um jardim ou uma catedral. Quanto à Lua, nem isso. E se a humanidade na Terra for completamente extinta (isso é extremamente improvável, e uma das acepções impensadas da má ficção científica nessa noção de “não deixe todos os ovos em uma cesta”), qualquer colônia externa também morreria. Nós precisamos da Terra. Quanto a planetas fora do nossos sistema solar, não há chance alguma. Não podemos alcançá-los. Meu romance Aurora é sobre todos os problemas e impossibilidades inerentes a esse projeto, que não são tão difíceis de notar. Ir às estrelas é uma fantasia escapista. É verdade que a ficção científica frequentemente expressa escapismo, principalmente de nossa realidade social. E às vezes o escapismo pode ser bom, como quando se está preso. Mas mesmo sendo indulgente com essas fantasias, temos que lembrar que a Terra é nosso único lar, que não há um planeta B para nós.

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