THE WASHINGTON POST - Desenhei meu caminho por entre as conhecidas torturas do ensino médio e além. Primeiro eram cinco dólares para cada retrato de Jimmy Dean (meu último empreendimento empresarial), depois retratos de Albert Einstein e Jawaharlal Nehru para minha mãe. Desenhei em todos os projetos que meus professores me permitiam: o estudo do cabelo humano, como eu imaginava a aparência de Deus. Décadas depois, já adulta, me envolvi mais com as cores. Trabalhei com giz, giz de cera, carvão, pastéis, aquarelas e tinta colorida, usei pincéis, dedos, mãos, tudo do meu jeito deliciosamente indisciplinado.
Quando tinha 70 anos, senti um desejo crescente – que logo se faria irresistível – de usar tintas “de verdade”. Achei que isso significava óleos. Mas um artista local me apresentou aos acrílicos, com os quais, no momento em que escrevo, tenho um caso de dez anos. Comecei com colagens, trabalhando na minha cozinha com papel pesado e multiuso até que a mesa não passasse de um estúdio improvisado, sem lugar para colocar nem uma xícara de café. Me mudei com minhas tintas para o que até então tinha sido uma casa de piscina sem isolamento.
Certo dia, resolvi pintar um retrato. Imaginando que levaria meses para dominar a técnica, pousei o pincel trêmulo na tela e descobri, para minha alegria, que os resultados não eram assim tão ruins. Passei a pintar retratos de pessoas que fizeram mudanças sociais por meio da não-violência – Gandhi ainda estudante universitário, o Dalai Lama quando menino, Martin Luther King Jr., John Lewis, Greta Thunberg e muitas outras. Desde então, fiz duas exposições bem-sucedidas.
Décadas atrás, não me lembro exatamente quando, comecei a fazer desenhos de cabeça para baixo. Cheguei aos desenhos invertidos por acaso. Em algum momento da minha adolescência, provavelmente por tédio, aprendi a escrever de trás para frente, começando com EINAOJ ZEAB, meu novo nome. Trabalhei no alfabeto grego: AHPLA ATEB, AMMAG, ATLED e assim por diante.
Ainda escrevo ao contrário como forma de terapia quando preciso chegar à raiz de um bloqueio ou acalmar o calor de um ataque de pânico. É como se os fios certos se cruzassem no meu cérebro quando escrevo ao contrário, o que permite que venham à tona informações que de outra forma não estariam disponíveis.
Eu odiava a escola e era uma outsider – diferente, esquisita, pele escura. Muito antes de pegar no ukulele e me refugiar na música, peguei no lápis e me refugiei no desenho.
Mais tarde, comecei a desenhar com a mão esquerda em vez da direita. Assim como escrever de trás para frente, usar a mão não dominante abriu um compartimento diferente no cérebro. Descobri que os resultados eram menos contidos e mais fluidos e, portanto, mais interessantes para mim. Não se pareciam com os objetos que eu estava desenhando, mas não importava.
O mesmo vale para o desenho de contorno, onde você deve manter os olhos no objeto que está desenhando, não no que o lápis está fazendo, verificando os resultados apenas de quando em quando – o processo tem uma espécie de emoção de corda bamba e é divertido, então você aceita o desequilíbrio do produto final. Depois de anos escrevendo de trás para frente e desenhando com a mão esquerda, desenhar de cabeça para baixo parecia uma progressão natural. Aqui vai o processo:
Começo a mover a caneta ou lápis de cabeça para baixo no papel – guardanapo, toalha de mesa, sucata – como se o desenho estivesse sendo feito para alguém sentado à minha frente na mesa. Às vezes, tenho uma ideia do que quero desenhar, mas geralmente deixo a caneta ou o lápis começar a deslizar pela página. Assim que começo a ver o que está se desenvolvendo, começo a embelezar, muitas vezes adicionando aleatoriamente uma forma humana, um peixe flutuante, uma flor.
Não precisamos de uma explicação para cada coisa. Há muito a ser dito sobre se deixar levar e fazer algo só porque é bom
Por fim, viro o desenho para cima e vejo se precisa de alguma coisa para completá-lo; nesse caso, viro de novo e adiciono retoques. Aí acontece a verdadeira mágica: escuto o que o desenho me diz. Quando uma frase (geralmente um trocadilho) vem à minha mente e ressoa, viro o papel mais uma vez e escrevo a frase de cabeça para baixo.
Por exemplo, um dos meus desenhos mostra uma menina de cabeça para baixo com flores numa cesta. Quando corrigidas, as imagens mais parecem palmeiras. “Day-o, day-ay-ay-o, Daylight come and me wan’ go home” emerge de alguma outra parte do meu cérebro: quando tinha 15 anos, memorizei todo o repertório de Harry Belafonte, e “Day-O” foi seu hit mais conhecido.
O pequeno elfo que deveria estar dançando acabou chutando [kicking] a garota, aí surgem as palavras “Oh, não ligue para ele, ele é só meu escudeiro [sidekick]”, e ali mesmo toda a progressão acontece antes mesmo de eu perceber o que estou fazendo.
Sei perfeitamente que existe uma explicação neurológica para todo esse método invertido. Simplesmente não estou interessada. Alguém provavelmente poderia explicar por que gosto de desenhar dessa maneira, o que acontece durante o processo e por que o desenho acaba como acaba. Também não estou interessada.
Não precisamos de uma explicação para cada coisa. Há muito a ser dito sobre se deixar levar e fazer algo só porque é bom. De Am I Pretty When I Fly?, de Joan Baez. Copyright 2023 da autora e reimpresso com permissão da Godine.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Am I Pretty When I Fly? - An Album of Upside Down Drawings
Joan Baez
Godine - 120 páginas - US$45
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