Um dos fatos históricos mais importantes noticiados no Estadão ao longo de sua existência é a abolição da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888. Publicado dois dias depois da Lei Áurea, pois o dia seguinte à abolição foi decretado feriado nacional, o texto “A Pátria Livre” exaltava o fim da “vergonhosa instituição” do direito de propriedade sobre o homem.
Na época, o jornal se chamava A Província de São Paulo. Leia a íntegra de “A Pátria Livre” com a grafia original da época e veja a edição original:
A PATRIA LIVRE
Já não há mais escravos no Brazil. A lei n. 3353 de 13 da Maio de 1888 assim o declara no meio de festas que se estendem por todo o paiz, para honra e gloria desta nação da America.
Desde hontem está em vigor o excepcional Decreto da soberania nacional que a princesa regente, em nome do imperador, sanccionou e seus ministros o fizeram publicar.
Ahi está uma victoria esplendida da opinião, a affirmação do quanto póde um povo quando sabe fazer valer a sua vontade.
Timidamente ella pronunciava-se no período anterior a 1869, e é dahi em diante que apparecem as primeiras afirmações contra o direito de propriedade sobre o homem e os ataques a mais directos á escravidão.
As opiniões dispersas, pelo correr natural das cousas, se concretisam sem combinações porque concorrem para um mesmo fim: de individuaes tornam-se collectivas e afinal toma uma fórma, unica, expressiva, inilludivel - é nacional.
Confirma-se mais uma vez esta lei sociologica — a solidariedade social das gerações nasce da somma de seus esforços relativos ao momento historico; o pobre legado de uma que passa constitue a riqueza de outra que vem.
Na massa popular somem-se muitos trabalhadores valentes e nas classes dirigentes perdem-se outros tantos, menos enthusiastas mas não menos influentes nos resultados das refórmas.
É o que se dá com a abolição da escravidão entre nós.
Na suprema direcção da sociedade, nas funções do governo, quatro homens representam as diversas phases do movimento libertador da raça negra, depois de extincto o trafico: Zacharias de Góes e Vasconcellos, chefe do gabinete que primeiro lembrou ao parlamento a reforma; o visconde do Bio Branco, do gabinete que conseguiu a liberdade dos nascituros, a lei de 28 da Setembro de 1871; o senador Dantas, do gabinete que propoz a libertação dos sexagenários sem indemnisação; o senador João Alfredo, do gabinete que completou a obra extinguindo a escravidão.
Nessa successão de factos era difficil descriminar a responsabilidade dos partidos, e a abolição fez-se na sua marcha ascendente com apoio dos conservadores, liberaes e republicanos.
Comprehende-se que os partidos do governo mais de uma vez tivessem de recuar de medidas definitivas, mas a verdade é esta: sempre que foi preciso votar uma lei, ella passou com o apoio dos partidos, porque exprimindo as anteriores um systema de transacção, os que pediam muito acceitavam a lei deficiente, certos de que logo depois alcançariam mais.
Chegou a vez de se obter tudo e os poderes públicos, competentes para legislar, camaras e corôa, eliminaram as leis de excepção e extinguiram a escravidão.
Está completo o trabalho de destruir e arruir de todo a vergonhosa instituição, mas é preciso agora não nos esquecermos do trabalho de reconstruir.
A Patria sem escravos não é ainda a Patria livre.
Agora começa o trabalho do libertar os brancos assentando a constituição política sobre bases mais largas e seguras para felicidade do povo e gloria nacional.
Devemos ser hoje mais felizes que hontem, mas convém que o sejamos amanhã ainda mais que hoje.
Abolicionistas
Dias antes, quando a lei saiu do Parlamento para ser encaminhada à regente, princesa Isabel, que a promulgou, o jornal já anunciava, no texto Glória à Pátria, de 13 de maio: ”Está extincta a escravidão no Brazil”.
Naquelas linhas são evocadas homenagens à luta abolicionista, saudações aos trabalhos de Aureliano Cândido Tavares Bastos, Luiz Gama, Américo Campos, Ferreira de Menezes, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e a lembrança dos exemplos das províncias do Ceará e do Amazonas, que aboliram a escravidão em seus territórios quatro anos antes, em 1884.
O tom da celebração expressa na cobertura pode ser melhor entendido com os artigos de Francisco Rangel Pestana, um dos fundadores do jornal. Redator e articulista, Rangel Pestana foi militante abolicionista e signatário do Manifesto Republicano de 1870.
Foi sua pena que, em abril de 1884, anunciou aos leitores da Província no texto “A escravidão e o abolicionismo” que a causa da abolição começava “a ser comprehendida como deve em todo o paiz: - é já uma arvore frondosa, cujas raízes vigorosas se estendem por toda a parte e, onde quer que cheguem, encontram alimento nos homens de tempera elevada”, e que declarou, em julho do mesmo ano: ”dentro de poucos annos a escravidão estará extincta. O seculo XX não encontrará escravos no Brazil.”
República
Para ele, as causas abolicionista e republicana eram indissociáveis. Pensamento refletido em sua atuação política empenhada em tornar a bandeira do fim da escravidão consenso entre os membros do Partido Republicano Paulista.
Dizia que “democracia e escravidão são cousas que se repellem” e criticava as “conveniencias de occasião” de políticos que se declaravam republicanos, mas não abolicionistas. Enxergava nos casos do Ceará e do Amazonas uma prova da força de um futuro sistema federativo, “pela abolição a cargo das províncias chegaremos à autonomia politica e à descentralização administrativa sob a fórma – Federação”, escreveu.